Nova regra simplifica registro de bebês gerados por doação de material genético ou barriga de aluguel

Registro de crianças geradas por reprodução assistida passa a ser automático no país

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Agência Estado Publicação:21/03/2016 10:41Atualização:21/03/2016 12:56
Antes, famílias dependiam necessariamente do despacho de um juiz para poder registrar seus bebês. Processo demorava em média 2 anos e, até a decisão final, a criança não tem nome, não entra no plano de saúde, não pode viajar ou ser matriculada em uma escola  (SXC.hu)
Antes, famílias dependiam necessariamente do despacho de um juiz para poder registrar seus bebês. Processo demorava em média 2 anos e, até a decisão final, a criança não tem nome, não entra no plano de saúde, não pode viajar ou ser matriculada em uma escola
Casadas há 14 anos, as brasilienses Marília Serra e Vanessa Bhering tiveram de encarar um longo processo judicial para poder garantir a seus três filhos um direito básico: a identidade. A luta das duas foi semelhante a de centenas de outros casais que geraram seus bebês com uso de material genético doado, com ou sem barriga de aluguel, e tiveram de recorrer à Justiça para registrá-los com a filiação correta. Mas, agora, se cumprida decisão publicada nesta semana pela Corregedoria Nacional de Justiça, o registro de crianças geradas por reprodução assistida será automático no País.

O provimento é considerado uma conquista para as famílias que, antes, dependiam necessariamente do despacho de um juiz para poder registrar seus bebês - o que poderia levar até dois anos, segundo estimativa da vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam), Maria Berenice Dias. "Até a decisão final, a criança não tem nome, não entra no plano de saúde, não pode viajar ou ser matriculada em uma escola. Além disso, mães e pais não têm direito à licença parental", diz.

Esta é uma demanda antiga de várias organizações, como a Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh) e o próprio IBDFam. "Impedir que o registro seja levado a efeito quando do nascimento viola um punhado de direitos fundamentais, entre eles o respeito à dignidade humana", diz ofício encaminhado pela OAB à Corregedoria, que ainda destaca as "enormes discriminações" advindas da falta de regulamentação. "A negativa da anotação registral impede casais homoafetivos de realizar o sonho de serem pais, inviabilizando a realização do projeto pessoal de terem família e filhos."

Marília e Vanessa planejavam ter a experiência da gravidez, com doador anônimo de sêmen. O primogênito, Samuel, nasceu em 2011, depois de ser gestado por Vanessa. No ano seguinte, Marília deu à luz aos gêmeos Mateus e Felipe. Na letra fria da lei, Samuel era enteado de Marília e os caçulas, de Vanessa. "O que mais nos incomodou foi a situação insólita de, pela inexistência de instrumentos jurídicos mais precisos, termos tido de adotar nossos próprios filhos", afirma Marília. "Há casais que acham uma afronta entrar no processo habitual de adoção, optando por outras vias judiciais. Mas achamos que seria o caminho mais rápido, queríamos resolver isso logo", completa Vanessa.

A decisão judicial favorável saiu em janeiro de 2015, após mais de um ano em tramitação. Elas receberam visitas de assistente social e tiveram de provar, perante um juiz, que eram uma família. Responderam a perguntas como tempo de duração do relacionamento e métodos usados para engravidar. "Foi até bem simples. Mas, se já houvesse a norma, seria uma chateação a ser evitada", diz Vanessa.

Na frente
Os estados de Mato Grosso e Bahia já tinham o registro regulamentado desde 2014, assim como a cidade de Santos que publicou portaria semelhante no ano passado. Mas só agora a norma é válida para todo o território nacional. "Isso reduz o número de processos e também é fundamental para as famílias. O principal beneficiário do provimento é a criança, que tem reconhecido o seu direito de identidade", afirma Maria Berenice Dias, especialista em Direito homoafetivo.

O documento da OAB assinado por ela salienta que "não mais se pode mais fechar os olhos para a evolução da sociedade e suas mudanças. O Estado tem o dever de proteger as crianças". A carta também cita a Constituição Federal, que "ampliou o conceito de família", contemplando o princípio da igualdade de filiação.

Na certidão dos filhos de homoafetivos o documento deverá ser adequado para que seus nomes constem sem distinção quanto à ascendência paterna ou materna, inclusive para o campo dos avós. Os oficiais registradores não poderão se recusar a registrar uma criança, sob pena de repreensão, multa, suspensão ou até mesmo perda do cargo.

Gays
Para o secretário da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, o avanço é mais um passo para a "conquista da cidadania plena" dos homossexuais, que cada vez mais, segundo ele, têm desejado ter filhos, precisando encarar uma "dolorosa espera" pela Justiça. "Estamos caminhando lentamente. Enquanto o Judiciário colabora com decisões como essa, nosso Legislativo ainda prefere não tocar no tema, pecando pela omissão e 'invisibilizando' a comunidade gay", afirma.

Nome de doadora sairá de documento da criança
Uma das inovações do provimento diz respeito ao nome da "barriga de aluguel" nos documentos do bebê. No registro civil, ao contrário do que ocorria antes, não constará o nome da gestante, informado na Declaração de Nascido Vivo (DNV), feita no hospital. "Éramos obrigados a seguir a DNV e inserir o nome da gestante. Isso só poderia ser retificado depois, com decisão judicial", diz a oficial de cartório Letícia Franco Maculan Assumpção.

Legalmente, a chamada "doação temporária de útero" pode ser feita desde que a gestante tenha parentesco de até segundo grau com alguma das partes - pode ser avó, tia, filha, mãe ou prima, por exemplo.

Homossexuais, no entanto, têm jornada dupla com a Justiça. Para poderem usar um banco de esperma ou de óvulos, é imprescindível a análise judicial e autorização expressa do Conselho Regional de Medicina. Depois do nascimento, a luta é pelo registro do bebê.

Para Letícia, por fortalecer a visão de que o mais importante é a paternidade socioafetiva, a norma é uma "mudança de paradigma" - que demorou para chegar. "Poderia ter sido junto com a autorização do casamento homoafetivo", diz, sobre o acórdão proferido em 2011 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). No mesmo ano, em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, equiparada à união estável.

"Sempre entendi que poderia registrar mas, como não havia autorização expressa, era necessário que submetêssemos aos juízes."

Embora nos procedimentos de doação de gametas estejam assegurados o anonimato e o sigilo dos doadores, em situações especiais - por motivação médica -, podem ser fornecidas informações sobre suas origens genéticas. A norma cita que, nessas hipóteses, o conhecimento da ascendência biológica não significará vínculo de parentesco entre doador e bebê. "Portanto não haverá entre eles quaisquer deveres ou obrigações relacionadas ao poder familiar ou ao direito sucessório", disse a corregedora nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi.

Se os pais forem casados ou viverem em união estável, basta que um deles vá ao cartório registrar o bebê. Se a reprodução assistida for feita após a morte de um dos doadores, deverá ser apresentado um termo de autorização prévia específica do morto para uso do material biológico preservado.

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