A imagem de um dos boeings que pode ser leiloado para o Projeto 767 revela: o sonho não é menor que o espaço físico do avião
De tempos em tempos, alguém aparece com uma ideia que parece impossível. Imponderável, diriam alguns. Grandes são as chances, então, de a ideia ser engavetada pela opressão do não. “Não é viável.” “Não é assim que se faz.” “Não é real.” A criatividade e a inovação, sufocadas pelo ceticismo. Brasília que o diga. Poucos deram crédito a Juscelino Kubitschek quando ele anunciou a construção da nova capital. No fim, JK venceu.
Passados 52 anos, a cidade já não tem o apelo de desbravamento de antigamente. Tornou-se a meca dos candidatos à estabilidade, ao emprego público. Contra essa regra, um grupo de brasilienses desenhou um ambicioso e ousado projeto para acordar o empreendedorismo e a criatividade na capital federal. Para isso, eles precisam de um avião. Não serve qualquer um. Precisa ser um dos três Boeing 767 da extinta e falida companhia aérea Transbrasil, aqueles estacionados há 10 anos no Aeroporto Internacional de Brasília. Os integrantes do Projeto 767, como o movimento acabou batizado, querem arrematar o avião em leilão e transformar a sucata em uma usina de criação baseada no trabalho colaborativo. O plano de voo já está pronto.
Faz mais ou menos um ano que André Soares, um advogado não praticante, levantou a ideia de criar em Brasília um polo de fomento ao co-working, modelo pelo qual profissionais desenvolvem projetos e iniciam negócios inovadores explorando a potencialidade de cada um. Tudo à base da colaboração. “Percebemos o incômodo das pessoas com o fato de Brasília ser conhecida como árida aos inovadores”, diz.
A colaboração já faz parte da vida dele há algum tempo. É a alma da Ajuri (“mutirão”, em tupi-guarani), empresa de treinamento em inovação e mídias sociais tocada por André, com os sócios Renan Carvalho, cientista da computação, e Rafael Dutra da Silva, psicólogo. Eles sondaram algumas possibilidades para criar o espaço, pensaram até em erguê-lo em um contêiner. Até o dia em que André viu a notícia de que o Conselho Nacional de Justiça leiloaria as aeronaves sob custódia judicial por meio do Programa Espaço Livre. Além de desobstruir o terreno dos aeroportos no Brasil, é um dos meios encontrados para levantar recursos para pagar parte da dívida trabalhista das empresas aéreas que quebraram.
Mesmo depois de descobrir que o lance inicial de R$ 17 mil que tanto lhe chamou a atenção se referia a um modelo de pequeno porte e que o 767 custaria mais caro (em 2008, o mais depenado deles valia R$ 100 mil, mas foi retirado do leilão), André foi arrebatado pelo ideal. “Tem tudo a ver com Brasília e um enorme poder de imagem. Além do espaço grande”, explica.
Nem todo mundo partilhava o pensamento. Pelo contrário. “As pessoas riam. Achavam legal, mas depois davam aquele tapinha nas costas”, conta André. O empresário venceu pelo cansaço até os parceiros de negócio e amigos próximos. “Nós chegamos a estabelecer que só ia falar sobre avião durante meia hora por dia”, diz Rafael. Era março de 2011. “Ri muito da cara do André. Depois comecei a pensar como seria. De repente eu era um dos caras que estava junto, procurando as respostas para essa pergunta”, conta o cientista político Gustavo Amora. Concursado pela Câmara dos Deputados, a meta dele é em breve abrir mão das benesses públicas para ganhar a vida com inovação e tecnologia.
Foram muitos tapinhas de descrédito, de mãos amigas e desconhecidas, até conseguir viabilizar um projeto sério, pronto para ser exibido para investidores e patrocinadores, efetivamente os financiadores da compra da carcaça do Boeing. Cada um fez um pouco. A aptidão de publicitários, designers, arquitetos, engenheiros e (um) cientista político resultou em um plano de voo de um espaço destinado ao incentivo à economia criativa e colaborativa.
O projeto é inovador em vários aspectos. Hoje, agências de publicidade e promoção, além de alguns investidores, dão suporte à instalação de um local de estruturação de empresas startup, ou seja, que tentam viabilizar novos modelos de negócios. As empresas embrionárias dividiram os 160 m² de área interna do avião. Pelo croqui, a carcaça seria dividida em dois andares. Além disso, na área externa haveria locais para exposições, áreas comunitárias e restaurante. “A Brasília do meu avô era inovadora, dava orgulho. Hoje, Brasília só é vista como governo e política. Queremos restaurar o espírito de criação da cidade”, diz Renan, um dos homens faz-tudo do projeto.
Somando entusiastas, devidamente conhecidos como tripulantes, o Projeto 767 conta com a ajuda de mais de 40 pessoas. As apresentações no Campus Party de 2011 e no Ossobuco, circuito de minipalestras de compartilhamento de experiências, em fevereiro deste ano, ajudaram a alistar mais gente a bordo. Mais visibilidade veio após o grupo construir um avião e lançá-lo no Lago Paranoá durante o Red Bull Flugtag, em agosto. A página do grupo no Facebook tem mais de 1,8 mil seguidores.
Parte da equipe que tripula o plano de comprar uma aeronave para abrigar trabalhos colaborativos: eles se incomodaram com o fato de Brasília ser considerada árida aos inovadores
Por enquanto, os tripulantes estão na primeira das três fases previstas do projeto. Ela deve se estender até o dia do leilão, que ainda não tem data marcada. Se a vida seguir o plano e o arremate for certeiro, o segundo passo é fazer do transporte da carcaça um grande evento. O frete, por enquanto, está mais caro que a aeronave. “Já pediram até R$ 300 mil. Estamos tentando uma parceria com o Exército”, conta Rafael.
A aeronave deve então cruzar Brasília até ser estacionada. O terreno que a receberá não está definido, mas o grupo negocia com o governo uma parceria para que o gigante faça parte do Parque Tecnológico Cidade Digital, perto da antiga Rodoferroviária. A ideia é convocar a comunidade para participar da reciclagem da sucata, promover palestras e debates sobre inovação e empreendedorismo. A última etapa é o lançamento do espaço.
Caso tudo dê certo, a tripulação quer que o patrimônio construído pertença a uma associação sem fins lucrativos que arrende o espaço para entidades de financiamento da economia criativa. Ali funcionaria então uma aceleradora, ou seja, um local onde empreendedores e investidores experientes podem guiar profissionais com ideias promissoras a alavancar seus negócios.
Independentemente do que acontecer, se conseguirem comprar o avião ou não, os tripulantes dizem que o que vale é o processo. “O projeto em si já é a colaboração em funcionamento. Daqui surgiram milhões de outros projetos porque pessoas que nunca se viram antes se uniram e começaram a trocar ideias, a trabalhar juntas. Só isso já vale”, garante a publicitária Heloísa Machado. André Souza completa: “Somos recém-formados, sem um tostão para dar de entrada no avião, mas nos unimos em torno de uma causa e investimos nossa capacidade de trabalho e criação para que esse projeto se tornasse possível. Queremos passar a mensagem de que se você tem uma ideia, por mais maluca que ela seja, se essa ideia vale a pena, o que você precisa é encontrar outras pessoas que estejam dispostas a colaborar com esse propósito”. Depois do leilão, talvez o sonho de todos eles escape do sono para a realidade. Tudo depende de um lance.