Muito mais que um ponto turístico: o Templo da Boa Vontade é visitado por pessoas de diferentes crenças que buscam se energizar por um cristal de 21 kg
Em 1883, o padre franciscano salesiano – hoje considerado santo – Dom Bosco (1815-1888) sonhou com uma depressão larga e comprida, partindo do ponto no qual se formava um grande lago, entre os paralelos 15 e 20 do Hemisfério Sul. Uma voz repetidamente lhe dizia: “Quando vierem escavar os minerais ocultos no meio destas montanhas, surgirá aqui a Terra da Promissão, fluente de leite e de mel. Será uma riqueza inconcebível”. Por isso, muitos dizem que Dom Bosco foi quem profetizou a criação de Brasília, décadas antes de ela se tornar realidade.
O retrato de Jesus Cristo: imagem
central no Templo da Boa Vontade
A cidade que respira espiritualidade e carrega o simbolismo da harmonia entre as religiões nasceu de um sonho premonitório. Hoje, a capital federal e seu entorno congregam adeptos do catolicismo, protestantismo, espiritismo, crenças afrobrasileiras, vertentes com influência xamânica e movimentos religiosos marcados por uma linha doutrinária original e, ao mesmo tempo, sincrética.
De acordo com o sociólogo Amurabi Oliveira, professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas, as religiões que emergiram e emergem em Brasília têm chamado a atenção de diversos pesquisadores não só no Brasil. “Esta ‘vocação espiritualista’ mostra-se ímpar, ainda que possamos pensá-la em termos sociológicos, afinal, uma cidade formada por migrantes tende a criar mecanismos e espaços que possibilitem a construção de novas identidades”, diz. Para ele, as pessoas têm a necessidade de se sentir conectadas, e a religião fornece mais que uma conexão com o sagrado, possibilita que elas se conectem umas com as outras.
Considerada o maior cristal do mundo,
a peça foi doada por garimpeiros goianos
para José de Paiva Netto,
fundador do Templo da Boa Vontade
A 45 km a Nordeste da praça dos Três Poderes, na cidade satélite de Planaltina (DF), há um imenso vale salpicado de pequenas casas. À direita, palavras talhadas em um morro chamam a atenção: “Salve, Deus”. A entrada do Vale do Amanhecer está marcada por um imenso portal nas cores amarela e azul, com as imagens de uma estrela, um sol e um índio. Mais adiante, homens e mulheres vestidos com roupas coloridas e com uma espécie de capa nas costas se perfilam em círculo, com as mãos postadas para a frente, durante um ritual de energização. São os jaguares e as ninfas, médiuns a serviço da obra criada por Neiva Chávez Zelaya, conhecida como Tia Neiva. Às 11h, a sirene toca, convocando-os para o início dos trabalhos no Templo Mãe – uma construção erguida no centro do povoado de 23 mil habitantes e diante de uma enorme imagem de Jesus Cristo.
José de Paiva Netto: "O TBV
tem portas abertas para todos"
Os adeptos da doutrina cultuam o cacique Pai Seta Branca, o mentor espiritual que liderou a missão dos equitumans, um grupo de espíritos missionários que desembarcou na Terra há 32 mil anos para moldar o planeta para receber a humanidade. Cinco mil anos depois, um povo chamado Tumuchy teria chegado do planeta Capela, trazendo a energia cósmica. Para os seguidores do Vale do Amanhecer, todos nós nos originamos daquele planeta e hoje vivemos uma espécie de exílio na Terra.
No interior do Templo Mãe, os médiuns convocados para os trabalhos primeiro se dirigem à Pira, uma representação da presença divina e o centro energético do templo. Os espíritos sofredores são chamados para serem doutrinados. Então os aparás (médiuns de incorporação) recebem os médiuns de cura, que manipulam a energia em favor de cada paciente. Para recebê-la, os doentes precisam estar com sal na boca e com perfume de madeira do Oriente na fronte.
"Eu sou o emissário do pai", diz Inri Cristo,
e imediatamente seus discípulos se ajoelham
Em 8 de novembro de 1959, Tia Neiva fundou a União Espiritualista Seta Branca (UESB), na Serra do Ouro, próximo a Alexânia. Os adeptos da doutrina acreditam que o número de médiuns chega a 100 mil. Raúl Zelaya, filho de Tia Neiva, é hoje o responsável pela Ordem Espiritual Cristã Vale do Amanhecer. “O que nossa mãe deixou é que o homem precisa ter Deus no coração e a doutrina que mais lhe convier”, afirma. “Nós combatemos muito o fanatismo. Procuramos o equilíbrio do homem. O paciente tem o conforto de falar com os pretos velhos e de possuir um ombro amigo para desabafar”, relata.
De acordo com ele, no Vale do Amanhecer não existe milagre nem dízimo. As pessoas recebem a cura por meio do merecimento. “Nossa doutrina é única, criada pela nossa mãe, Tia Neiva. O Pai Seta Branca, nosso mentor, já foi São Francisco de Assis e um guerreiro indígena tupinambá”, explica Raúl. Maria Lúcia da Silva Pimentel, filha adotiva de Tia Neiva, diz que o fundamento da doutrina é a caridade: “Fazer o bem sem olhar a quem”.
Adeí Schmidt (dir.) é discípula residente
de Inri Cristo. Em sua página no Facebook,
ela o classifica como pai: "Nasci para isso", diz
Ao lado do Grande Lago da Mãe Iemanjá, fica o Templo da Estrela Candente, onde os trabalhos são realizados diariamente às 12h30, 14h30 e 18h30. Ao fundo do lago, uma pirâmide tem a função de captar a energia extracósmica e expandi-la, antes de distribuí-la – é o ponto de ligação entre o mundo físico e o mundo espiritual. Tudo é misticismo no Vale do Amanhecer. Até a forma de cumprimentar. “Salve, Deus!”, afirmam os médiuns, ao se encontrarem pelas ruas.
Ritual: homens e mulheres
se vestem com roupas coloridas
e se perfilam em grandes círculos no
Vale do Amanhecer
E se os seguidores do Vale do Amanhecer creem que Jesus intercede nas curas espirituais, por meio dos mentores, os adeptos de outro grupo religioso da capital juram estar diante do próprio Messias. No núcleo Rural Casa Grande, que fica no Gama, um muro alto não parece sugerir a morada de alguém que se considera a encarnação de Jesus Cristo. No portão azul, uma frase faz a saudação: “Só os filhos de Deus são bem-vindos”. Dois homens de barba, vestidos com túnica azul e calçando sandálias, vêm ao encontro da reportagem. Com um walkie-talkie em mãos, um deles anuncia o número de visitantes. O portão se abre e pode-se avistar uma área ampla, com uma casa ao fundo e uma piscina à direita. Logo à frente, há um ambiente onde três fileiras de cadeiras estão dispostas diante de uma grande cortina vermelha. Ao menos 12 discípulos, entre homens e mulheres, estão sentados e ouvem música sacra.
A cortina se abre e eis que ele surge. Cabelos compridos e desalinhados, uma “coroa de espinhos” feita de borracha, túnica branca, manto vermelho e sandálias. Está sentado sobre um imenso trono branco. Acima de sua cabeça, a expressão “Rei dos Reis” rodeando uma espécie de olho inserido numa pirâmide. No braço direito da cadeira, a frase “Agnus Dei” (“Cordeiro de Deus”, em latim).
No outro braço, “Leo Iudae” ou “Leão da Judeia”. Ao lado do trono, a imagem do rosto do Sudário confrontada com um retrato dele próprio.
Ao fundo do Grande Lago da Mãe Iemanjá,
no Vale do Amanhecer, uma elipse
é o ponto de ligação entre o
mundo físico e o mundo espiritual
O homem magro e alto anuncia sua bênção e os discípulos imediatamente se ajoelham. “Eu sou o emissário do pai. Reconheço o vosso direito de pensar e de dizer o que quiserdes, desde que respeiteis o direito e o dever de esclarecer quem sou. Não escolhi ser Cristo, não posso vos obrigar a saber quem sou, mas isso não altera minha realidade”, diz.
Durante mais de uma hora, Inri Cristo falou à Encontro Brasília sobre a Suprema Ordem Universal da Santíssima Trindade (SOUST), o movimento religioso criado por ele em 28 de fevereiro de 1982, depois do chamado Ato Libertário – durante uma missa, em Belém (PA), ele invadiu a catedral e arrancou uma imagem de Cristo da cruz: “Eu sou o libertador. Voltei a esse mundo para libertar o meu povo do jugo dos falsos religiosos, dos grilhões da falsa idolatria”, diz.
A paranaense Adeí Schmidt é uma de suas discípulas residentes. Ela trabalha como voluntária e tem seus afazeres administrativos e domésticos. “Conheci o Inri em 1982, mas estou como discípula desde 1998. Ele é o mesmo Cristo de há 2 mil anos, mas eu o defino como o emissário do Cosmos, da verdade e das coisas de Deus”, comenta.
Maria Lúcia, filha adotiva de Tia Neiva,
fundadora da seita, prega a caridade:
"Importante é fazer o bem sem olhar a quem"
Ela afirma que a “família biológica” aceita sua condição. “Eu faço o que gosto, nasci para isso. É mais do que normal”, comenta. Em sua página no Facebook, ela cita familiares e classifica Inri Cristo de “pai”.
O líder da SOUST garante que Brasília é “a nova Jerusalém citada pelo Apocalipse 21”. A revelação teria sido feita por Deus em fevereiro de 1980, quando Inri Cristo esteve na capital pela primeira vez. “Eu estava hospedado no Hotel das Américas. Abri a janela, de manhã cedo, e o Senhor disse: ‘Aqui é a Nova Jerusalém do Apocalipse 21. É para cá que, depois de instituído na Terra o meu reino, você irá me transferir”, relata. Inri considera Brasília a “capital mística do mundo” e afirma que existem 5 mil seitas na cidade.
De acordo com ele, a SOUST se opõe à “chantagem do dízimo”. Questionado sobre como o movimento sobrevive, ele explica que os discípulos beneméritos “compreendem a vantagem de ter parte no reino” e contribuem com a obra. “Fazemos uma economia de guerra.
Tudo é misticismo no Vale do Amanhecer:
"Salve, Deus!", dizem os médiuns ao
se encontrarem pelas ruas
Somos vegetarianos e cultivamos nossa própria horta”, diz. Na chácara que abriga a seita, também vivem 20 seguidores. Além das bênçãos e das preleções, não existem cerimônias ou cultos na SOUST. “As igrejas carecem de rituais para preencher o vácuo da minha ausência”, diz.
Já no Plano Piloto, um ponto turístico é, na verdade, um templo de portas abertas a pessoas de qualquer religião. Quadros com imagens de 86 missionários de várias correntes religiosas estampam a parede do Templo da Boa Vontade (TBV). Ao centro, o retrato de Jesus Cristo. Assim como no Vale do Amanhecer, ali a pirâmide tem uma importância vital. No topo dela, um imenso cristal tem a função de gerar energia e de purificar o ambiente, enquanto os visitantes caminham pela espiral negra desenhada no centro da pirâmide – um símbolo da busca do ser humano pelo equilíbrio, em sua difícil jornada. O retorno é feito pela espiral branca, sinal de iluminação pelos valores morais e espirituais.
“Em certa madrugada, refleti: se existe a necessidade de um teto para as pessoas se protegerem das intempéries atmosféricas, urgente se faz um local que as abrigue das tormentas do sentimento, esquecidas as suas diferenças religiosas, ideológicas, políticas e econômicas”, afirma José de Paiva Netto, que fundou o TBV em 21 de outubro de 1989. A ideia era estar disponível para o próximo. “Todos têm uma dor que não contam a ninguém, desde o mais poderoso ao mais simples dos homens, até mesmo os irmãos ateus. O TBV tem portas abertas para todos.”
Raúl Zelaya, filho de Tia Neiva, é
responsável pela Ordem Espiritual Cristã
Vale do Amanhecer: combate ao fanatismo
Paiva Netto tomou conhecimento da existência do “maior cristal do mundo” por meio de uma reportagem exibida pela extinta TV Manchete, em 16 de março de 1989. A peça de 21 kg foi encontrada em Cristalina (GO), a 131 km de Brasília. “Desde os planos iniciais da construção do TBV, contemplávamos uma pedra no ápice da pirâmide, a qual refletiria a luz do sol para o interior da nave”, relata. O garimpeiro Chico Jorge e sua mulher, Maria de Lourdes, decidiram doar a pedra ao TBV e, desde então, acredita-se que tudo no projeto do TBV tem sua razão de ser, unida a uma proposta ecumênica. “É um ponto de encontro da educação, da arte, do esporte, da ecologia, da medicina científica e espiritual superior, da cultura em geral, harmonicamente dispostos para inspirar os mais nobres sentimentos da criatura humana”, explica Paiva Netto. Não por acaso, é também um dos maiores símbolos do misticismo, do sincretismo religioso e da espiritualidade em Brasília.