A informalidade sobre rodas
Veículos se transformam em ateliês de costura, lojas de roupas, chaveiro, frutaria e até lava a jato, e tomam conta do cenário da capital federal. Conheça algumas histórias de pessoas que fazem de Kombis e outros utilitários o seu ganha-pão diário
Maria Berenice circula elegante pelas ruas do Distrito Federal. Vestida de branco e repleta de detalhes floridos, ela chama a atenção por onde passa. Maria Berenice tem requinte, não dá para negar. Há gente que acena de lá, manda um alô e logo ela estaciona para atender aos mais curiosos. Poucos resistem aos seus encantos. Afinal, Maria Berenice é um brechó sobre rodas, um micro-ônibus que oferece bolsas, carteiras, cintos e acessórios femininos que não se vê em outro lugar. A bordo do veículo da marca Invel (essa, nem existe mais), estão os produtos com a assinatura da dona do negócio, a atriz e artesã Adriana Bruno.
Barraca, tenda, quiosque, tabuleiro, pouco importa. O que caracteriza o trabalho informal é mesmo o improviso. Mas, em alguns casos, o ambulante abusa do termo que o define e encara o serviço sobre rodas. No Distrito Federal, onde mais de 225 mil empresas estão na informalidade, segundo projeção do Sebrae-DF em 2012, só é preciso dar uma voltinha pelas ruas para encontrar os mais diversos tipos de negócio montados em Kombis, vans, furgões e todo tipo de utilitário.
Na capital do Brasil, esses automóveis, originalmente criados para o transporte de passageiros e de cargas, servem para tudo. Tudo mesmo. Chaveiro, lanchonete, restaurante, brechó, corte e costura, lava a jato, frutaria. Qualquer que seja a atividade, a estrutura do veículo, de fábrica ou modificada, adapta-se ao gosto do consumidor e ao bom humor do comerciante, e auxilia milhares de brasilienses a garantir o sustento da família.
A geografia de Brasília ainda ajuda na aproximação entre o informal e a clientela. Na entrada da 202 Sul, uma costureira de 63 anos atende aos pedidos de consertos de roupas desde 1991. Na Avenida Comercial do Sudoeste, as Kombis viraram sinônimo de lava a jato. Mas também há espaço para quem se vira com o motor ligado. Nesse caso, o vaivém de roupas e acessórios femininos ocorre em vans e micro-ônibus. É o retrato da variedade dos ambulantes do DF.
A costureira é Ana Maria Bispo de Oliveira Silva, que comanda o corte e a costura da SQS 202. Logo na entrada da quadra residencial – a maioria dos moradores é militar –, fica a Kombi azul-claro, tão antiga quanto os anos 1960. Ana Maria estacionou o veículo (de placa amarela) ali há 21 anos e desde então cuida das roupas e dos uniformes de quem vive nas imediações. “Conheço a história da quadra e das pessoas. Vi muitos crescerem. Quando vim para cá, tinha um rapazinho que hoje é pai”, conta.
Luiz Moisés trabalha no mesmo ponto desde o início da construção do Sudoeste, nos anos 1990. O lavador de carros testemunhou um dos mais novos bairros de Brasília deixar a época de barro e lama para trás e chegar à completa urbanização. “Comecei aqui só com um balde e morava nos edifícios em obras. Era só mato. A gente se vira como pode, né?” Após quase duas décadas, o agora morador de Ceilândia vibra com a expansão do negócio. Já vendeu duas Kombis para logo comprar outras mais novas. O que ainda o incomoda é a informalidade do empreendimento. Preferia pagar impostos a trabalhar com o receio de ter o material de limpeza recolhido pela fiscalização. Enquanto isso, segue à risca alguns requisitos obrigatórios para quem toca esse tipo de negócio no Sudoeste, como a lavagem ecológica – ou a seco. “Tem cliente que não gosta, acha que arranha o carro, mas não é assim, não. É seguro. O importante é fazer benfeito”, afirma Luiz.
A expansão dos negócios também anima outros profissionais. Apesar do improviso imposto pela Kombi – há pouco conforto, não tem água e falta banheiro –, o chaveiro Carlos Roberto da Silva Dias ganha o suficiente para investir na expansão do negócio também no Sudoeste. Comprou uma Sprinter, que garante o atendimento em domicílios.
Inclusive, a bateria do furgão fornece energia elétrica para a Kombi. “É meio precário mesmo, mas já tive loja e a despesa é realmente muito grande. Não valeu a pena”, diz. Para o futuro, ele projeta um novo quiosque a fim de melhorar a situação do comércio informal. Abriu uma empresa, por exemplo, e agora acredita ter um pouco mais de tranquilidade para atender aos clientes. Carlos Roberto conta ainda que tem autorização da administração regional, renovada a cada ano. “Não tenho medo (da fiscalização), não, mas é sempre bom ter segurança para trabalhar”, explica.
O veículo também se mostra essencial para o futuro do negócio de Lili Brasil. É com a van que a agora empresária se tornou ainda mais conhecida no Distrito Federal. “É só chamar que paro em qualquer lugar para apresentar os meus produtos. Atendo os mais variados clientes. Tenho roupas que vão desde o PP ao XXL”, diz. Em 2013, Lili – e o marido, companheiro de empreitada – se prepara para mais ousadia: aposta, agora, em peças de fabricação própria.
Dedicação também não falta à rotina diária de Everaldo José da Silva dos Santos, o Baiano dos Livros. Segundo ele, são cerca de 300 clientes por dia, de empresário a professor, de bebum a morador de rua. A cada minuto, alguém passa para tentar vender ou comprar um livro escolar ou uma coleção fora de catálogo. Machado de Assis, Fernando Sabino, Jean-Paul Sartre, enciclopédias e revistas enriquecem a biblioteca ambulante que esse apaixonado por literatura montou dentro de uma Kombi azul-escuro 1979. Segundo ele, a procura maior é por literatura em geral. E há grande saída para livros espíritas, evangélicos e de autoajuda. “Tenho loja, mas é aqui, no Kombão, que vendo mais.”
E se em Brasília se podem comprar roupas, livros, chaves e até lavar o carro, é possível também ir às compras para abastecer a casa com frutas. Às segundas, quartas e sextas, Manoel Moreira estaciona a frutaria itinerante na 203 Sul. Às terças e quintas-feiras, na 208 Sul. Com locais fixos, ele garante a clientela. “Tem gente que paga por mês, por semana, e sabe que eu estou sempre aqui. O que permite isso é a Kombi. Sem ela, não tem trabalho. É a minha principal ferramenta”, explica. No caso dele, o veículo funciona como transporte, depósito e expositor, e ganha o auxílio improvisado de uma banquinha erguida com madeirite pintado de azul.
Moreira também trabalha de olho na fiscalização. Já perdeu muita fruta em ações do governo contra o serviço informal. Mesmo assim, ele não desiste do ofício a que se dedica há pelo menos quatro décadas. O comerciante está na oitava Kombi e satisfeito da vida. Essa última passa por uma pequena reforma. Revela uma parte enferrujada ali, outra acolá, mas, segundo ele, ainda tem muito quilômetro a percorrer pelas quadras do Plano Piloto.
DE SÃO PAULO AO DF
A história de Maria Berenice – uma homenagem à avó materna – começou em São Paulo. Foi em 2006, ano de incertezas pessoais e profissionais na vida de Adriana Bruno, que o brechó sobre rodas ganhou forma. “Comecei a fazer umas bolsas, mais por distração. As amigas gostaram e tive a ideia de ir para as ruas com o micro-ônibus”, conta Adriana. Até então, o enferrujado utilitário, usado como apoio e camarim ao antigo grupo de teatro de Adriana, estava encostado. Reformado, pintado, repaginado e batizado de Maria Berenice, o veículo ano 1980 ganhou as vias da capital paulista. Logo na primeira saída, causou alvoroço por quem passou. Era o que a futura empresária precisava para perceber que tinha um negócio em potencial nas mãos. A partir daí, a iniciativa ganhou fôlego e expandiu.
Em 2009, Adriana trocou São Paulo pelo DF. “Participei de um evento em Brasília por causa da Maria Berenice. Em seguida, o Sebrae me convidou para fazer palestras aqui e não saí mais. Sempre quis isso, pois fui criada em Brasília”, explica. Por aqui, o sucesso se consolidou. Há seis meses, Adriana abriu uma loja na Feira da Torre de TV, onde confecciona inúmeros acessórios femininos ao lado da artesã Regina Freitas. E a Maria Berenice? Ah, passa por outra reforma para continuar a colorir as ruas da capital.
A COSTUREIRA DA QUADRA
A costureira Ana Maria Bispo passa o dia diante de uma máquina Elgin, segundo ela com 70 anos de uso. “Só eu estou com ela há duas décadas. É boa demais, nunca dá problema, graças a Deus.” A louvação ao Senhor, aliás, acompanha quase todo fim de frase de dona Ana – bem pertinho dela, fica um radinho portátil ligado em estações religiosas.
A moradora de Santa Maria se apresenta ao serviço informal de sexta a sexta. Começa às 10h e não tem hora para terminar. “Aqui, o trabalho não para. Graças a Deus”, diz. Tantos anos de trabalho e dedicação rendem elogios sinceros da clientela da 202 Sul. A Kombi da mineira de Paracatu tem nome. Chama-se Costureira. Mas sofre com o tempo. Expõe ferrugem e alguns buracos na lataria, inclusive no piso. Parece cansada do ofício. “Um dos meus maiores desejos é uma Kombi nova”, diz. Mãe de três filhos, dona Ana logo volta a atenção ao serviço que garante parte do sustento da casa. Ao lado da inseparável Elgin, ela apronta mais alguns pontos da calça cinza.
O CHAVEIRO MULTIUSO
O veículo multiuso auxilia no sustento de Carlos Roberto há 13 anos. Nesse período, é o segundo cuja estrutura e lataria ele adapta para o trabalho com chaves e carimbos. A Kombi, que fica estacionada na Quadra 304, conta com balcão, portinhola e suportes para os equipamentos. Servem de base para as mais de 10 horas diárias de labuta às margens da Avenida Comercial do Sudoeste. “Só assim para ganhar a confiança e formar uma clientela”, explica.
O LAVA A JATO DO SCOOBY-DOO
Segundo o jovem lavador, que mantém o empreendimento com a ajuda de quatro sócios, a Kombi virou referência no Sudoeste. “É bom para o negócio”, comemora. Em dias bons, a maioria na época da seca, ele faz 10 lavagens por dia. Cobra R$ 25 para limpar “por dentro e por fora”, como ele mesmo explica. “Em fim de semana bom, forma fila aqui. Mas o melhor mesmo é que já temos uma clientela feita”, diz.
A BUTIQUE MÓVEL
Apesar da formação profissional, Lili resolveu arriscar. Juntou R$ 100 e comprou peças de roupas e uma sacola na Feira dos Goianos. Vendeu tudo em uma semana. “Com o tempo, R$ 100 viraram R$ 1 mil, com muito esforço. Não era nada fácil, mas em um ano comprei um carro”, revela. A professora ainda dava aulas, rotina que dividiu com o bico da venda de roupas até 2011. A partir de então, a vida de Lili mudou completamente. Largou a profissão de 10 anos, entrou para a faculdade de moda, expandiu os fornecedores, aumentou a clientela e trocou o Ford Ka por uma van. A butique móvel ganhou o nome de Eva, além de desenhos e marca personalizados. Faz sucesso por onde passa.
A FRUTARIA ITINERANTE
O negócio das frutas oferece o sustento de Manoel e da família desde 1972. Com ponto montado sempre no Plano Piloto, acompanhou das ruas o amadurecimento da capital federal. “Posso dizer que Brasília mudou para melhor e para pior. A cidade se desenvolveu, mas a violência e o trânsito atrapalham demais. Antes, eu voltava para Taguatinga sem trânsito. Agora, não dá mais. Deixo a Kombi por aqui e retorno de ônibus”, conta.
O SEBO DO BAIANO
O Kombão, apelido da terceira Kombi de Everaldo, fica estacionado no centro de Taguatinga. Para transformá-lo em expositor, Everaldo fez poucas adaptações no veículo, como a instalação de uma cobertura e algumas estruturas para receber as principais obras. São elas que, logo cedo, vão colorir e enriquecer a cidade. “Não tem jeito, só me sinto bem, realmente, quando monto o Kombão”, diz o empolgado Everaldo.