A corrida inaugural
Há uma parte da história de Brasília que poucos conhecem e agora vai ser contada em filme: as provas automobilísticas que agitavam as largas ruas da recém-inaugurada capital atraíam pilotos de todo o mundo
A capital do país não foi inaugurada com uma partida de futebol, mas com uma corrida de rua, com carros possantes. O circuito improvisado tinha duas longas retas e dois curtos retornos, demarcados por prosaicos cavaletes. Passava pelo Eixo Monumental, pela Rodoviária do Plano Piloto e pela antiga Torre de TV. Principal evento esportivo nos anos 1960, chegava a atrair mais de 100 mil pessoas por prova – quase o número de habitantes do Distrito Federal na época. A boa notícia é que, neste ano, os brasilienses vão poder reviver os primórdios do automobilismo candango ao vivo, nas ruas da capital, e nas telas de cinema de todo o país.
Em meio às comemorações da inauguração de Brasília, ainda um grande canteiro de obras, quatro corridas de automóveis realizadas em 23 de abril de 1960 foram algumas das atrações. As categorias disputadas eram Mecânica Nacional, Carros Esportes Bipostos, Turismo Geia até 1.330 cilindradas e Turismo Geia acima de 2.000 cilindradas, sendo essas duas últimas uma vitrine da nossa recém-nascida indústria automobilística. Houve ainda desfiles, convidados e autoridades do mundo todo, e intensa cobertura jornalística nacional e internacional. Era o começo da paixão dos brasilienses por carros de competição.
Com largada em frente à Rodoviária, a primeira corrida envolveu oito bólidos nacionais de até 1.330 cilindradas. Com seu DKV Vemag, o paulista Eugênio Martins tornou-se o primeiro campeão do automobilismo de Brasília.
Logo em seguida, 25 carros se alinharam no grid para a segunda prova do dia. “Entre os concorrentes, estava uma das lendas do automobilismo nacional: Francisco Sacco Landi. Mais conhecido como Chico Landi, o paulista já gozava de enorme fama quando a empreitada de JK começou sua história”, destacam os jornalistas Paulo Rossi e Luiz Roberto Magalhães no livro Ponto de Partida, sobre os 50 anos de esportes no DF.
Landi era filho de um italiano com uma ítalo-brasileira. Ganhou duas vezes (em 1948 e 1952) o GP de Bari, na Itália, a mais famosa competição de automóveis no mundo à época. Foi ainda o primeiro representante do nosso país na Fórmula 1. Correu somente seis provas, todas na década de 1950. Nunca venceu na categoria, mas pilotou lendárias Ferraris e Maseratis e se tornou ídolo nacional. Em Brasília, chegou de forma fácil e triunfal ao topo do pódio, para delírio da multidão que lotava as margens empoeiradas do Eixo Monumental.
Com 29 anos, ele tinha no currículo apenas dois anos de provas no Brasil, tendo vencido corridas em Pirajuí (SP) e na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Em Brasília, Jean Louis ganhou com uma Ferrari Testa Rossa. “Fui fotografado, entrevistado, abraçado, uma loucura. Os jornais e a tevê deram enorme destaque à notícia. Para coroar, houve uma cerimônia nos estúdios da Rádio Nacional em que Fangio me entregou a taça! Ele disse: ‘Você tem mãos de profissional’. Me senti como um soldado raso a quem Napoleão, depois de uma batalha, tivesse dito: ‘Você é um bravo!’”, escreveu Jean Louis, 51 anos depois.
Em 22 dias, quatro brasilienses, que tinham entre 16 e 17 anos, construíram um protótipo de carro, em condições totalmente adversas. A engenhoca ficou pronta um dia antes da prova, em setembro de 1967. A corrida fazia parte da programação da Semana da Pátria. Sem testes, em 33º e último lugar no grid de largada, parecia impossível que, em 182 voltas e mais de 6h de percurso, a geringonça conseguisse chegar em primeiro a uma velocidade média de 80 km/h. Mas ela terminou em segundo, vencendo sua categoria. A plateia foi à loucura e batizou o automóvel de Patinho Feio.
Agora, a história do quarteto e seu estranho possante será contada em filme. O documentário, que começou a ser gravado com depoimentos dos jovens pilotos candangos, vai reviver a prova de 1967. Em março, carros de corrida antigos serão trazidos de todo o país para as filmagens em uma competição fictícia nas largas avenidas de Brasília. Em meio a eles, estará o Patinho Feio. “Vamos convidar o público para assistir às filmagens com roupas de época. Serão os nossos figurantes”, antecipa o diretor da obra, Denilson Félix.
O documentário, que se chamará A Turma da Camber e a Fantástica História do Patinho Feio, está sendo rodado em Brasília e em São Paulo, com previsão de lançamento para julho. Entre os entrevistados estão os criadores do Patinho Feio, João Luiz da Fonseca, José Álvaro Vassalo, Alex Dias Ribeiro e Helládio Toledo Martins. Participam também personagens que fizeram parte desse momento histórico, como Nelson Piquet e Emerson Fittipaldi.
A recriação da primeira prova do Patinho envolverá muita computação gráfica. “Vamos ter de limpar o cenário, tirar prédios, faixas, cartazes que não existiam”, explica o diretor. Já os carros de corrida serão os mesmos que disputam as duas provas anuais da Classic Cup, realizadas no Autódromo de Interlagos. Orçado em R$ 350 mil, o longa está em fase de captação de recursos.
OS CRIADORES E CRIATURA
O Patinho Feio foi sendo aprimorado ao longo dos anos e hoje é uma máquina reluzente, ainda em circulação pelas ruas de São Paulo. O carro fica sob os cuidados de Alex Ribeiro, um de seus inventores e ex-piloto de Fórmula 1. O veículo desembarcou na capital federal na primeira semana de dezembro passado para uma das fases de filmagem do longa. Alex e os demais criadores passearam com ele por pontos do extinto circuito de rua dos 500 km de Brasília.
O Patinho Feio surgiu de um Fusca batido, cedido pelo pai de Alex. As ferramentas e o material necessário para montar a oficina vieram de São Paulo, de uma mecânica desativada. “Pegamos tudo de lá e começamos a mexer no carro de amigos e familiares. O que ganhávamos, investíamos nos nossos projetos de velocidade”, lembra Helládio Monteiro.
Os próprios criadores nunca acharam o carro atraente. “Era vermelho-ferrari, terrivelmente feio. Os quatro faróis de milha esbugalhados para fora dos para-lamas davam-lhe o ar de um gafanhoto de quatro olhos. A enorme tomada de ar frontal parecia a boca de bicho-papão. Os para-lamas traseiros em forma de asas de abelha completavam o quadro: era um formigão mecânico, de um filme de ficção científica, mas depois foi batizado carinhosamente de Patinho Feio”, comenta Alex. A Camber abriu as portas em dois endereços: um na Asa Norte e outro na Asa Sul, até encerrar as atividades em 1975, quando cada um decidiu seguir caminhos independentes.