No alto dos prédios comerciais, um pequeno oásis: o coreto foi revitalizado e transformou-se em um lugar aprazível
Existe um pedacinho de Brasília que foge ao padrão das quadras do Plano Piloto. Apenas a tipologia do endereço, Comércio Local Norte (CLN), e a quantidade de blocos seguem o modelo tradicional. Essa parte tão distinta é composta pelas comerciais 205 e 206 Norte. Experimentais, elas têm suas plantas datadas de 1978 e foram inauguradas em 1979. Uma diferença essencial do projeto arquitetônico de Doramélia Marra da Motta é interligar as duas quadras, que não são independentes entre si. São administradas pelo mesmo síndico, fazem parte de um só condomínio e são ligadas por, acredite, duas passagens subterrâneas.
Nesse intrincado conjunto arquitetônico, os blocos comerciais são emendados um ao outro e não têm letras de identificação aparentes, o que dificulta a vida de quem precisa encontrar endereços no local. Além disso, até subir ao primeiro e ao segundo pavimentos torna-se um desafio. Às vezes, depara-se com becos sem saída. Às vezes, as escadas encontram-se ao final de labirintos. As rampas de acesso estão do lado de fora dos prédios. Em meio a esse, aparentemente, abandonado fragmento de cidade, surgem sempre surpresas.
As donas do ateliê ÔdeCasa, Alessandra Cardoso e Vera Guadalupe: responsáveis pela reforma do terraço
À tarde, um acordeão toca uma melodia de Luiz Gonzaga. Seguindo o som encontra-se quem dedilha as teclas do instrumento na única escola de música da quadra. Trata-se do militar Elijohn Sousa, que aprendeu a tocar o complicado instrumento com o mestre Gonçalo Aquino Cardoso, mais conhecido como Sivuquinha. Frequentador da comercial, o sanfoneiro acredita que um bom restaurante mudaria a cara do lugar, se tornaria um ponto de encontro e, por que não, daria mais espaço para apresentações culturais. Na escola, estão ainda outros dois discípulos de Sivuquinha: o comerciário Anderson Amaral e o analista ambiental Júlio Azevedo. O último aponta uma das qualidades da quadra. Há abundância de vagas. Ali, até os estacionamentos são diferentes, ficam no subsolo, que é aberto para a rua.
A sala de aula onde os musicistas tocam pertence à Tupiniquim Musical, inaugurada em 2005. O lugar leva, inevitavelmente, a um corredor. Quem vê a passagem do lado de fora nem imagina que, por detrás do concreto rachado e da pintura desgastada, encontra-se um belo terraço. Colorido, cheio de flores bem-cuidadas, jogos de amarelinha e até uma rede para descansar. O acolhedor local foi totalmente revitalizado pelas parceiras do Ateliê ÔdeCasa. Alessandra Cardoso e Vera Guadalupe são as responsáveis pelo projeto que transformou a cara desse pequeno espaço. A repaginação está entre as propostas das donas para o ateliê, que usam o local para a renovação de mobílias e a criação de objetos de arte. A aparência do ambiente destoa do restante da quadra até na sua placa de boas-vindas. Enquanto grandes cadeados e grades reforçadas estão presentes em quase todas as salas comerciais, o local tem vidros transparentes e uma placa convidando: "Pode entrar!".
Mária do Carmo Bello, dona do petshop Armazém Rural, detém o recorde de permanência na quadra: 22 anos
Do outro lado da rua, encontra-se o espelho da 206 Norte. A imagem refletida é a CLN 205. Lá, uma das lojas que mais chama a atenção é o petshop Armazém Rural. Não só pelo tamanho (ocupa duas lojas), mas também pelo tempo em que sobrevive na quadra. São 22 anos de funcionamento. A dona do comércio, Maria do Carmo Lancini Bello, conta que, em 1991, quando o Armazém chegou à área, poucas lojas estavam ocupadas e a rotatividade era muito grande. Havia uma loja de refrigeração, um pequeno sacolão e uma padaria, que logo fechou. De acordo com a empresária, muitas pessoas, inclusive clientes, desestimularam a permanência do comércio na quadra por ser um local onde "nada vai para frente". Ela contrariou a fama e prosseguiu com suas atividades. Hoje, promove desfiles de pets e outras festividades, tirando proveito da arquitetura diferente do lugar, que garante muito espaço livre à frente da loja.
Hoje, os 72 espaços comerciais (36 em cada quadra) estão ocupados, e apenas três são usados como residência, de acordo com o síndico Aluísio Pereira. Um desses ambientes é o Espaço Cena, centro cultural inaugurado em 2005. Guilherme Reis, diretor do local, lembra que, quando o espaço começou a funcionar, a quadra era escura, abandonada. Só havia eles, o petshop e uma barraquinha de macarrão. O diretor até brinca dizendo que parecia ter uma caveira de boi enterrada na entrequadra, já que tudo que se abria lá não dava certo.
O piauiense Gonçalo Aquino, conhecido como Sivuquinha de Brasília, pode ser visto por lá: aulas
de acordeon
Para Guilherme, a cultura foi o vetor de transformação do ambiente. Com as intervenções artísticas, as noites do local foram iluminadas e tornaram-se mais animadas, deixando a comercial mais segura e frequentada. Outra ação do Espaço Cena foi a transformação artística em uma das passarelas subterrâneas. Ela foi limpa, iluminada e decorada com a arte de grafiteiros da cidade. O resultado foi tão surpreendente que a passagem virou cenário de documentário. Babilônia Norte é o nome do filme que usa a ligação como uma de suas paisagens. A película trata da relação entre as artes e os artistas da cidade com essas quadras da Asa Norte.
Produzido pelo Coletivo Capadócia, o filme terá a exibição inicial, em 27 de março, projetado no terraço do Ateliê Ôdecasa.
A passarela subterrânea foi revitalizada e virou cenário do filme Babilônia Norte: a realização é do Coletivo Capadócia
E se as quadras não fossem peculiares o suficiente, as histórias que as cercam já contribuiriam bastante para a estranheza do local. No estacionamento da 205, por exemplo, há um senhor que mora em alguns carros do local. Há 15 ou 20 anos, dependendo de quem conta a lenda, ele vive em companhia de inúmeros gatos e pombos. Até aí, nada de excepcional. Mas os frequentadores da quadra, entre comerciantes e transeuntes, afirmam que ele é o sucessor de outro homem que morava ali, nas mesmas condições. À diferença do atual morador, o antigo carregava uma peixeira e dizia-se o defensor da quadra. Infelizmente, o homem ficou doente e foi hospitalizado. Desde então, não houve mais notícias dele e logo o substituto tomou seu lugar. Outro estranho acontecimento foi a aparição de um bar, que rapidamente fez muito sucesso. Lotava todos os fins de semana e tinha uma cantora muito talentosa, com futuro promissor. E tão veloz como surgiu, da noite para o dia, sem qualquer aviso, o comércio fechou e nunca mais se ouviu falar da mulher que cantava.
Visão geral das comerciais da 205 e 206 Norte: modelo arquitetônico experimental esconde sempre surpresas
Assim é o cotidiano das CLN 205 e 206. Permeadas por cultura, petshops, arquitetura alternativa e alta rotatividade. As placas penduradas nos prédios nem sempre indicam comércios que ainda existem no lugar. A antiga sinagoga e igreja protestante já se mudaram, mas os sinais de sua passagem continuam nas marquises. Uma única instituição religiosa permanece no lugar: um centro espírita. Restaurante com marmita a R$ 8, açougue, gráfica, loja de jogos, papelaria. Nada garante que daqui a uma semana tudo isso esteja lá. Tudo é muito inconstante nesse peculiar pedacinho de Plano Piloto.
Para Guilherme Reis, do Espaço Cena, a cultura mudou a cara da quadra: noites mais iluminadas e frequentadas