Aventuras das noites brasilianas
Wagner Hermusche fez da capital uma fonte de inspirações. O resultado é um trabalho único, que vai do bucolismo aos dramas do homem contemporâneo
A noite de Brasília é silenciosa e espacial. Mesmo nos horários de rush, o barulho dos carros soa distante e as figuras humanas carregam algo de espectral. Em vez de pintar a claridade solar dos horizontes abertos, o artista Wagner Hermusche sempre preferiu a magnitude das noites brasilianas, quase que permanentemente refratadas pelas luzes da cidade. A arte de Hermusche é inspirada numa visão impressionista, fragmentária, cinematográfica e estilhaçada de Brasília.
Ele desenha a capital com o gesto visceral dos grafites, das granulações do vídeo, das rasuras do traço e da inconclusão de um esboço. Há algo de erro nesses desenhos que humanizam Brasília. O que reponta nas noites brasilianas é uma outra Brasília, refundada em cima da Brasília criada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer: cinética, eletromagnética, lisérgica, impressionista e expressionista. Hermusche injeta uma alma elétrica na paisagem silenciosa e noturna da cidade.
O espaço em que ele se move nas noites brasilianas e o seu posto de observação são as janelas do apartamento, do ônibus ou de seu carro em movimento. Sua visão evoca o ritmo instável e a sensibilidade elétrica do rock'n'roll. É como se fossem retratadas por Renato Russo, se ele tivesse habilidade plástica.
Seus primeiros desenhos tinham uma dose de bucolismo, ocupados com uma mera representação plástica da cidade, mas já emanavam sinais que sugeriam a opressão do concreto e do vazio. Mais adiante, ele mergulha num ambiente mais complexo, imprimindo uma dramaticidade e uma crítica contundente. O Cidadão X, de 1986, mostra um motorista algemado ao volante de seu automóvel sob o bombardeio caótico das luzes do tráfego da cidade. Em outra obra marcante dos anos 2000, Neons, substitui as logomarcas dos neons do Conjunto Nacional de Brasília. Em vez das propagandas luminosas, escreve em um poema visual as palavras: Sexo, Dúvida, Carne, Amor, Tesão, Corrupção, Mentira, Poder, Amor, Vida, Perda, Ambição, Liberdade. “Essa obra refletia as questões planetárias primordiais nos valores do homem contemporâneo e no Brasil, o que se experimentou entre 1980 e 2004, com as esperanças da abertura política da Nova República e o desencanto com os desdobramentos da participação social.”
Hermusche começou a desenhar aos 22 anos ouvindo rock: “Zappa embalou toda a minha criação na década de 1980. Elétrica, crítica, nervosa, angustiada, inquieta e urbana. Obsessivo com a luz, os riscos sugerem mostradores digitais piscando. O cosmos, o universo, dando uma real dimensão da pequenez da condição humana e, ao mesmo tempo, a grandeza da criatividade, sensibilidade, inteligência e imaginação do Homo Sapiens”.
A arte de Hermusche desdobra-se em quatro vertentes simultâneas: as noites brasilianas, os ruídos contemporâneos, o abstracionismo na pintura e a tradição nipônica. Na série Hashira-e Brasília, de 2011, seguindo a tradição da gravura vertical japonesa, inseriu, na figuração do espaço urbano, os ipês, os cambuís, os pepalantos, as caliandras, entre outras flores do cerrado. São cenas poéticas que, às vezes, compõem ambientes de contemplação e meditação. Uma pausa para o estresse e o drama cotidianos. Um quarto de dormir, uma cena de amor entre um espectro e sua parceira de carne e osso. Uma janela onde em primeiro plano vemos uma flor de lótus e um livro espiritualista sobre uma mesa e lá fora o trânsito implacável.
Com os originais de suas obras em coleções privadas e públicas, o artista publicou gravuras e múltiplos de suas obras. Esses múltiplos são encontrados nas livrarias da cidade, em tiragens maiores, planejadas para facilitar o colecionismo pelo público jovem nascido em Brasília que estabeleceu intensa identidade com as obras. Num evento, um jovem, questionado sobre o porquê de adquirir as gravuras, respondeu com ar de surpresa: “É minha cidade! Nasci aqui!”.
Numa visão remota, Hermusche se lembra em Brasília, montado na Vespa cinza do pai, observando soldados na Esplanada dos Ministérios. Outra evocação é a de andar de bicicleta pela terra vermelha das trilhas do cerrado.
Com uma herança multiétnica e multicultural, cresceu em um ambiente favorável aos devaneios da imaginação e começou a desenhar no curso científico do Colégio Elefante Branco. Garatujava cartuns e caricaturas, inspirados no traço nervoso dos fradinhos do Henfil. Fez vestibular para biologia. Aos 21 anos, já com dois filhos, deixou a universidade para desenhar e produzir móveis para viver. Tornou-se desenhista, pintor, fotógrafo, produtor, editor gráfico e designer de moda. Hoje tem um empório/galeria na Asa Norte do Plano Piloto, onde vende os múltiplos produtos de sua arte.
Morou na Alemanha de 1986 a 2007, sempre vivendo de sua arte. Voltou a Brasília pelo sol do Planalto Central do Brasil, da vegetação, da qualidade de vida. Embora seja crítico em relação ao futurismo formal de Brasília: “Brasília foi concebida de forma bucólica, romântica, sem uma noção realista sobre o impacto que o futuro traria. Ainda considerada melhor qualidade de vida urbana no Brasil, não é referência para uma cidade ecocibernética, na qual poderia ter sido direcionada para o século XXI.”
Simultaneamente à sua produção artística, Hermusche ocupa-se com projetos de grande envergadura, tais como a pintura mural Botânica do Cerrado, na fachada sul do Conjunto Nacional de Brasília e uma exposição temática sobre a mitologia e cultura dos rios brasileiros: “O artista contemporâneo não separa arte de ideologia, ética e consciência ecológica. Não podemos ruminar ideias importadas e produzir uma arte anacrônica e descontextualizada. Há que se criar um verdadeiro pensamento brasileiro, coerente com nosso meio, nossas enfermidades e potenciais. Nossa vocação.”
Mas, dentro dessa trama que se desenrola nos cenários das noites brasilianas, há também – e principalmente – as janelas de fuga, as janelas que se abrem para a consciência, para a beleza e o amor. Janelas que apontam para perspectivas de mudanças de paradigmas na psique, nos corações e mentes do homem contemporâneo.