O caso Feliciano
Nunca se falou tanto sobre direitos humanos quanto agora, quando um deputado contrário aos interesses dos gays assumiu a comissão que deve lutar contra os preconceitos. Especialistas explicam por que ele está, de fato, sentado na cadeira errada
"Desde 1945, com a instituição da Organização das Nações Unidas, vivemos fase de reconhecimento da necessidade de inclusão. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara trabalhou nesse sentido até a nomeação do deputado Marco Feliciano. No mínimo, um parlamentar tem de ser aberto ao diálogo. Parece-me que esse senhor está apenas usando a comissão como uma plataforma de visibilidade”, diz a professora Rosa Oliveira, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e membro do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Há a tendência em se reconhecer que o elenco dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais é indivisível, inalienável e imprescritível. “Mas a discussão está em aberto. Há os problemas decorrentes do multiculturalismo, como construir uma agenda comum, sem etnocentrismo dos mais fortes, sem a imposição do Ocidente sobre o Oriente”, explica Ricardo Rezende Figueira, padre e professor de direitos humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ele, no entanto, a nomeação do deputado Marco Feliciano é retrocesso no tema. “O fato revela algo grave; revela que tipo de parlamentares estamos elegendo e os riscos que daí vêm”, opina.
Os especialistas argumentam que o conceito direitos humanos no Brasil deve abranger a luta contra a discriminação em qualquer instância social. Segundo Rosa Oliveira, uma instituição como a CDHM da Câmara precisa trabalhar nesse sentido: “As noções apresentadas pelo deputado Marco Feliciano estão recrudescendo em todo o mundo. Muitos evangélicos, inclusive, são contrários às opiniões explicitadas por ele. A pesquisadora ressalta que, apesar de muitos – inclusive ele próprio – argumentarem a favor do deputado em nome da liberdade de expressão, esse direito termina onde começa a necessidade de respeito pela escolha do outro. “No caso de uma figura pública, essa relação é ainda mais delicada. O radicalismo, as injúrias e a agressão são perniciosos para a política em geral”, analisa Rosa Oliveira.
O uso de normas internacionais é comum para auxiliar na resolução de questões difusas, como a dos direitos humanos, porque são construídas coletivamente. Os principais documentos acordados no nível internacional a influenciar a política brasileira são a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, e a Declaração Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José, de 1969.
O Pacto de San José, também assinado pelo Brasil, cria para os países-membros o dever de respeitar os direitos e as liberdades de todas as pessoas sob sua jurisdição sem discriminação de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião, nacionalidade e origem social, status econômico ou qualquer outra condição social. A Declaração Interamericana tem por objetivo garantir entre os Estados americanos a liberdade pessoal e a justiça social.
Mesmo a existência desses dois e de diversos outros documentos, no entanto, não assegura a universalização do conceito. Muitos países, por exemplo, assinam acordos com ressalvas que diminuem direitos de certos grupos ou minorias em seus países. “É o caso de alguns países muçulmanos em relação aos direitos das mulheres”, exemplifica a especialista em direitos humanos do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Simone Rodrigues.
DE ONDE VEM ESSA HISTÓRIA
A origem dos estudos sobre direitos humanos é anterior à Carta da ONU. Apesar de não haver consenso, estudiosos apontam uma das origens do conceito no século 13, quando o padre e filósofo Tomás de Aquino, que mudou a forma como pensava o Ocidente, disse que Deus colocou no coração das pessoas direitos que precedem as leis. Quase 500 anos depois, a visão contratualista de Jean-Jacques Rousseau levou ao conceito de cidadania. Baseava-se na ideia de que certos sujeitos são excluídos de direitos em relação a outros. “Em estado natural, diria Rousseau, o homem era livre e lutava pela vida. Esses seriam direitos naturais”, explica Ricardo Rezende Figueira, da UFRJ. Os direitos naturais incluíam a vida, a liberdade, a propriedade e a segurança.
Ainda no século 18, a presunção de direitos inatos do cidadão tornou-se norma em dois fatos marcantes da história do Ocidente: a independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. A Declaração da Virgínia, nos Estados Unidos, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, traziam para o nível legal a consideração dos direitos humanos e a obrigação do Estado em garanti-los.
No século 20, depois das grandes guerras, foi fundada a ONU e, com ela, surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Após 1968, novas perspectivas foram acrescentadas, como os direitos das mulheres, direitos étnicos, de minorias, de liberdade religiosa, de livre opção homoafetiva, além dos direitos ecológicos”, detalha a historiadora das Universidades de Brasília e Federal de Minas Gerais Lucilia de Almeida Neves. Sobre a questão da homofobia, Lucilia reconhece que muitas pessoas de influência e visibilidade não aceitam o direito de homossexuais. Para ela, no entanto, é muito importante para a dignidade humana o respeito às escolhas. Esse direito faz parte das conquistas que não podem recrudescer, seja quais forem as opiniões e os valores de determinados grupos. Para a historiadora, os direitos humanos estão em processo de evolução no Brasil visto que, no século 19, por exemplo, negros ainda eram escravizados e as mulheres não tinham direito à vida pública. “Conquistamos muito, mas ainda temos muito a conquistar.”