O vilarejo que respira arte
A 100 km de Brasília, há um pequeno paraíso chamado Olhos D'Água. O atrativo principal é o artesanato, mas há muitos outros encantos a serem conferidos lá
Nas mãos de Lourenço, que molda o barro com maestria e suor; na genialidade de Fatinha, que transforma a palha em delicadas imagens sacras; na doçura do sorriso de Dona Nêga, a senhora que cria bonecas de pano com um estilo próprio, fiel às raízes do campo; na habilidade de Madalena, que se debruça sobre o tear. O ar bucólico do povoado erguido em um vale e cercado por cachoeiras, o charme do restaurante que é uma galeria de arte e o aconchego de pousadas têm atraído cada vez mais visitantes.
Em Olhos D'Água, o respeito à natureza e a reciclagem parecem ditar o ritmo da vida. Os artesãos têm por filosofia extrair recursos sem agredir o meio ambiente. Filha e neta de tecelãs, Maria de Fátima Dutra Bastos (mais conhecida como Fatinha) sempre escolhe a lua minguante para colher o milho e as plantas do cerrado, como o cedrinho, a folha da magnólia, a douradinha e o ingá. Nas colheitas, ela seleciona as folhagens respeitando o rebrotamento. “A natureza me ensina muito. Se você planta o milho na lua certa, não terá problemas de fungo. A fibra de bananeira tem de ser aberta, lavada no cloro, secada à sombra e coberta por impermeabilizante”, explica, ao revelar que segue os conselhos recebidos da avó.
O talento de Fatinha lhe rendeu três vezes o Prêmio Top 100 de Artesanato, concedido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), e uma participação no programa de TV global Mais Você, de Ana Maria Braga. O gosto pela arte começou quando criança; hoje, ela emprega cerca de 10 pessoas e, além de trabalhar como artesã, comanda a pasta de Cultura e Turismo do município de Alexânia, na qual firmou o compromisso de resgatar a Feira do Troca, o mais tradicional evento do vilarejo.
A cerca de 100 metros do ateliê de Lourenço, Maria Araújo da Silva, a Dona Nêga, chega a chorar ao falar de seu trabalho. Aos 76 anos, é a bonequeira mais conhecida do lugar .“Eu fazia bonecas para minhas meninas brincarem. Em 1974, participei da Feira do Troca e vi que podia vender”, conta. Questionada sobre como ela dá vida às bonecas com vestidos de cores diversas, que remetem à mulher do campo, ela responde, com simplicidade: “Ué, é de cabeça mesmo”. Dona Nêga aproveita o retalho de algodão para fazer o corpo e os vestidos. Os preços de suas obras variam de R$ 3 a R$ 10. A paixão pela arte foi herdada da mãe, Dona Regina: “Eu fico fazendo assim e lembrando de minha mãe. Ela ficava perto de mim e falava que a minha tinha ficado melhor que a dela. Colocava nome nas bonecas todas”, conta. A fidelidade a um estilo próprio e à identidade goiana são as marcas de seu trabalho.
As peças que mais saem são os móbiles de bruxa, de saci, de bailarinas e de violeiros, todas elas criações próprias, comercializadas a R$ 35. Os tapetes, feitos com barbante soberano, são vendidos a R$ 15. Madalena ensinou vários tecelões do vilarejo, algo que ela diz ter sido “gratificante”.
Basta atravessar a rua e dar mais alguns passos para chegar ao ComTradição Restaurante, Galeria e Bistrô. A casa é fiel ao estilo rústico. Uma parede reproduz, inclusive, o adobe e os móveis coloniais. Não menos surpreendente é a gastronomia praticada pelo casal Paulo Sérgio Barbosa e Ana Isabel Nunes Barbosa. “Procuramos resgatar a forma tradicional de preparo dos alimentos feitos pelos portugueses, indígenas e negros. Evitamos o uso de alimentos industrializados e a comida leva até oito horas para ficar pronta, em um cozimento lento no fogão a lenha", explica Paulo Sérgio, proprietário, que também é o chef de cozinha. O carro-chefe do ComTradição é o barreado, preparado com carne de porco, de vaca ou galinha caipira. Custa R$ 50, e o cliente pode se servir à vontade.
Feira do Troca
A comunidade de Olhos D'Água se mobiliza com vários meses de antecedência para a Feira do Troca. Moradores de Brasília e de outras cidades costumam prestigiar o evento, durante o qual são trocados produtos da cidade, como roupas e utensílios domésticos bons, por artesanato.
“Na 79ª edição, que ocorre entre 31 de maio e 2 de junho, nós pretendemos resgatar a nossa feira. Será um resgate da música, da comida e do artesanato. Teremos shows com músicas de raiz, vamos valorizar os produtos da roça e montar um rancho de biscoitos antigos e de comida típica”, conta a artesã Fatinha, secretária de Cultura e Turismo de Alexânia.
Haverá atrações inclusive para crianças e oficinas de fiandeiras, tecelãs, cerâmica, bordados e trabalhos em palha. A Feira do Troca acontece sempre nos primeiros domingos de junho e de dezembro.
Quando Drummond citou Olhos D'Água
“Anunciada de casa em casa, e depois de grande expectativa, realizou-se a feira. Como o nome indicava, não era preciso dinheiro para obter qualquer coisa. Bastava trazer um objeto feito pelo próprio morador, e a compra se fazia em termos de permuta. Um tear feito a canivete foi barganhado por um terno completo e um par de calçados. Outro artista achou colocação para a sua escultura em madeira representando a cena hoje quase impossível de se ver: dois homens serrando uma tora com grupião, para fazer tábuas. Esgotada a produção artesanal, os locais passaram a oferecer ovos e galinhas: fim de feira e festa. Uma mulher muda exprimiu sua alegria com sinais, pedindo um beijo.”
Carlos Drummond de Andrade, em artigo publicado pelo Jornal do Brasil, em 21 de janeiro de 1975
COMO CHEGAR
Siga pela BR-060 (Brasília-Goiânia) e dirija 87 km até chegar a Alexânia. Vá até a avenida 15 de Novembro e vire na Presidente Juscelino. Em seguida, à esquerda, vá em frente até chegar à Rodovia GO-139. Siga cerca de 10 km até a rotatória. Vire à esquerda e dirija por mais 4 km.