O artista dentro do cangaceiro
Faceta pouco conhecida do cineasta Vladimir Carvalho, o trabalho com escultura e xilogravura revela outros talentos. Em breve, suas obras serão expostas
De qualquer pedaço de madeira abandonado, ele arranca pungentes figuras de São Francisco, São Miguel, Jesus Cristo, Nossa Senhora, Dom Quixote, Sancho Pança, Antônio Conselheiro, beatos, Lampião, Maria Bonita e Corisco, provocando o espanto diante da beleza que só os verdadeiros artistas conseguem suscitar: “Mas tem certeza de que foi você mesmo quem fez estas esculturas?”, indagou, de olhos arregalados, incrédulo, ferido pela beleza, Caetano Veloso, colega de Vladimir no curso de filosofia em Salvador, nos anos 1960. Em um debate no Centro Cultural Banco do Brasil, Vladimir levou algumas esculturas de Antônio Conselheiro, dos beatos e de cangaceiros, como se fossem personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme em que o ator Othon Bastos fez uma interpretação antológica do Corisco: “Não é possível, esse cangaceiro sou eu?”, indagou Othon Bastos.
Mas, se quisermos conhecer um pouco dessa faceta de Vladimir temos de evocar, inapelavelmente, a figura do seu pai, Luis Carvalho, um paraibano de Itabiana, mistura desconcertante do visionarismo de Dom Quixote com um certo senso pragmático empreendedor de Sancho Pança. Luis Carvalho ou Lula, para os íntimos, era jornalista, ilustrador, cinéfilo, entalhador, pintor, inventor, dono de uma fábrica de móveis e esquadrias e escultor: “A minha infância recendia a cedro”, lembra Vladimir, pois o pai sempre estava entalhando ou extraindo algum personagem da madeira.
Certo dia, um amigo empresário, dono de uma fábrica de conhaque em estado de falência, o procurou desesperado em busca de ajuda: “Você, que é cheio de ideias, me ajuda a sair dessa”. Lula pegou uma revista Life, extraiu as figuras de um negro que se insinuava para uma bela negra e bolou um rótulo. Resultado: as vendas do conhaque explodiram e o amigo foi salvo da bancarrota. Durante as festas de São João, Luis editava um jornalzinho chamado O Balão, em que as seções editoriais eram divididas por cores diferenciadas, com 100 exemplares em azul, verde, vermelho ou amarelo. Em uma delas, Vladimir escreveu o seu primeiro artigo, em 1947, sobre os repentistas nordestinos.
A preferência pelos santos surpreende em alguém com a imagem de comunista. Todavia, ele próprio trata de injetar um pouco de contradição humana: “O meu pai era comunista e a minha mãe era muito religiosa, imbuída de grande compaixão. Levava comida para os pobres e os presos. Então, sou um comunista indeciso entre essas tendências. Adoro santo, em todos os meus documentários, se tiver uma imagem por perto, eu filmo”. O que o fascina nos santos? A paixão. O santo é esteticamente translúcido. Vladimir é especialmente sensibilizado pelas figuras de São Gabriel e de São Francisco, o santo que doou todos os bens e desvelo aos pobres: “Em um encontro, eu propus que São Francisco fosse adotado como o patrono dos documentaristas, pois somos a parte pobre do cinema”.
Nos tempos em que se mudou para o Rio, Vladimir conversou com Glauber Rocha e, no seu tom tipicamente conspiratório, ele olhou para os lados desconfiado, pôs a mão no ombro do amigo e ordenou: “Pode vir porque nós te daremos cobertura”. Quando chegou ao Rio, Vladimir se dirigiu à praia de Copacabana e ficou com o único e surrado sapato exposto à maré. Glauber advertiu: “Tome cuidado, Vladimir, porque você não tem dinheiro para comprar outro”. Ao abrir o livro Revolução do Cinema Novo, de Glauber, Vladimir levou um susto quando leu seu nome: “Lembro de Vladimir Carvalho, o Rosselini do sertão, Vertov das caatingas, Flaherty de Euclides da Cunha”.
A produtora Objeto Sim está organizando uma exposição com a obra plástica de Vladimir para ser apresentada em Brasília e em outros estados. A formação estética enriquece muito o trabalho dele nas filmagens dos documentários. “A culpa toda é do mestre Lula, foi ele quem me transmitiu todas essas inquietações”, declara Vladimir.
Depoimentos
"Vladimir é um amigo que eu via muito na universidade e vejo pouco hoje. No entanto, é um amigo constante. Há pessoas que parecem engrandecer-se ao aderir à luta pela justiça social. Ele engrandece os ideais com sua adesão. Isso pode-se sentir em seus filmes” Caetano Veloso, músico
"Lembro-me de Vladimir Carvalho, o Rosselini do sertão, Vertov
das caatingas, Flaherty de Euclides da Cunha” Glauber Rocha, cineasta