Ele é o cão!
O que fazer com o bichinho que destrói tudo o que vê pela frente? Filhote adora devorar objetos, mas, se continua com o comportamento depois de crescido, é preciso repensar a rotina dele
Dentro do canil ou da grade da pet shop, eles parecem pequenos anjinhos à espera de um lar. Olhos grandes, jeito estabanado, pelos macios. Um filhotinho lindo e inofensivo. Você o leva para casa e, mais dia ou menos dia, começa a perceber que dentro daquele anjo existem dentes e unhas quase insaciáveis. Vão-se um chinelo, um tênis, o pé da mesa, a ponta do tapete. Quando menos se espera, o cachorro está diplomado na arte de devorar seus pertences e a maioria dos donos não tem ideia de como driblar a situação. Chegam, então, as dúvidas: escolhi a raça errada? Mimei demais? Devia tê-lo adestrado? Ainda dá tempo de corrigir os maus hábitos?
Para o especialista em comportamento animal e adestrador Lucas von Glehn Duty, uma série de fatores corrobora para o temperamento destruidor e cada um deles deve ser analisado. “A questão da raça influi, claro, mas uma boa criação sempre será uma boa criação. A raça não necessariamente é um fator determinante. Não existem raças incorrigíveis. Existem donos despreparados. Acho que mais de 70% dos donos de cães não sabem criar seus cães como devido, de acordo com as técnicas mais atualizadas da psicologia comportamental”, afirma .
Por exemplo: escolher um cão de pastoreio para morar em um apartamento de 50 m² é, automaticamente, bloquear sua quase infinita energia. Logo, mastigar sapatos e móveis pode ser a forma que o cão encontra de gastar essa energia. O dono preparado sabe que, se quer ter uma raça de pastoreio em um apartamento, deverá investir tempo e boa vontade em longos passeios e muitas atividades. Do contrário, o cão estressado pode descontar tudo no ato de mastigar as coisas. A máxima se entende para as raças agitadas. Sem atividade física, as chances de prejuízos materiais dentro de casa são enormes.
Além de devoradores, os cães com o tino para a destruição são espertos. Costumam aprontar sem deixar testemunhas. Basta sair de casa para ter a certeza de que algo será comido no tempo em que ficará sozinho. Para os animais, porém, a lógica não é exatamente a do crime perfeito, ou, como alguns donos dizem, a da “vingança” por estarem sós. Como cachorros são animais que viviam em matilhas, a solidão também se torna um fator preponderante de estresse. Quando você sai de casa e o deixa cinco, seis, ou até sete horas sozinho em um local fechado, ele encontra na destruição de objetos uma forma de passar o tempo e “enganar” a solidão. Nesses casos, a dica é melhorar a qualidade do tempo que passa com o animal ou, até mesmo, contratar serviços terceirizados de passeadores.
Na casa da analista de telecomunicações Jéssica Alencar, de 33 anos, a rotina é basicamente essa. Nietzsche, seu schnauzer branco, já não é mais um filhotinho, mas a ânsia por devorar tudo o que vê pela frente é a mesma dos velhos tempos. O cachorrinho chegou a ser adestrado quando jovem, mas a mania de morder tudo nunca foi sanada. Nessa brincadeira, o prejuízo estimado é de mais de R$ 5 mil assim, fácil, fácil.
Ni, como é chamado, tem predileção pela coleção de armações de óculos da dona. Ele comeu pelo menos três. Cada uma na faixa de R$ 800. Os sapatos, clássicos do cão devorador, também têm a atenção do cachorro. Além dos inúmeros chinelos, cinco sapatos queridos foram direto para o lixo. Dois deles, inclusive, acabavam de ser devorados na hora em que a equipe de reportagem chegou ao apartamento.
Além de objetos de estimação, Nietzsche já mastigou duas almofadas da sala, o tapete, um livro, a beirada da porta e quebrou copos. “No início conseguia controlar a agitação com brinquedos e dicas de adestramento. Mas ele passou a ser mais destruidor após minha separação e minha volta ao trabalho. O grande tempo que passa sozinho o faz procurar coisas para destruir. Parece que quer protestar contra minha ausência. Tento isolá-lo na sala e na cozinha quando saio, mas quando me esqueço de fechar as portas sempre tenho surpresas desagradáveis. E o pior é que não consigo brigar. Apenas começo a rir e isso piora a situação. Ele é muito mimado e domina a casa”, confessa Jéssica, afegando o cãozinho que mastigava sua sapatilha nova. “A verdade é que a gente quer adestrá-lo, mas é ele quem vai ‘adestrando’ a gente a ser mais organizado e não deixar as coisas espalhadas.” O adestrador Lucas concorda: “Guarde o que for caro, ou o que for realmente muito precioso. Lembre-se de que a culpa da mordidinha não será do animal e sim do descuido do dono”.
O Marley brasiliense
Jimmy já devorou a cortina da sala de estar, destruiu duas vezes o sofá da sala (na primeira, ele comeu praticamente todo o estofado e o sofá foi para reforma. Semanas depois, Jimmy o devorou pela segunda vez). Comeu o tapete. Roeu toda a lateral da mesa de centro. Arrancou o papel de parede novinho da bancada da sala de jantar, roeu o rack. Comeu inúmeros fios e cabos. Engoliu uma caneta (fato confirmado quando ele foi “ao banheiro” e deixou tudo azul). Certa vez, foi mastigar uma embalagem de sapólio que encontrou e espalhou o pó por toda a casa. Gerou reclamações da vizinhança com latidos e motivou os donos a se mudarem para uma casa com quintal. “O sofá destruído pela segunda vez foi o maior choque. Decidimos nos mudar. O Jimmy e a Lisa, nossa outra cachorrinha, são muito mais felizes. A única coisa que ele destruiu até agora foi uma vassoura que deu sopa no quintal”, comemora Thiago.
Segundo o veterinário Jon Geller, do Dog Channel, perder objetos da casa pode ser o menor dos problemas. Boa parte dos cães acaba na mesa do veterinário e pode, até mesmo, ser submetida a cirurgias abdominais. “Na maioria dos casos de excessos é comum certo inchaço abdominal, gases e desconforto. Se a frequência cardíaca do cão aumentar muito (você pode obter um pulso na parte interna de uma perna) e ele apresentar muito inchaço abdominal, é necessário procurar um veterinário”, explica.
O que fazer com um cão sem limites
Especialista em comportamento animal, Lucas von Glehn Duty responde a três perguntas
1. Bater e gritar resolve?
Bater? Jamais. Gritar? Para quê? Qual é a concepção cognitiva de um filhote, para que esse seja tão rechaçado? Nenhuma. Filhotes são filhotes. Crianças não fazem suas artes até serem corrigidas? Os filhotes, da mesma forma, estão descobrindo um mundo inteiro, seja através da textura dos objetos, seja pelo olfato. Cães são coerentes e amáveis. Seja coerente, assertivo e correto com seu cão, e você terá o melhor cão do mundo. Bater é ultrapassado, errado, abominável e promove uma obediência por medo, apenas.
2. Já viu casos de cães mais velhos que mudaram radicalmente de comportamento com adestramento?
Sim, mas normalmente o cão segue a linha da educação que foi lhe dada. Cães não erram gratuitamente. Se promovem uma possível interpretação de erro, fazem na tentativa do acerto ou seguindo a coerência dos anos de educação que recebeu do dono. Se o cão mata o faz por trauma, violência e abandono sofridos, ou pela análise da defesa da matilha, até mesmo envolvendo a defesa do território da família. Cães praticamente não erram. Eles seguem a coerência imposta e condicionada por seus criadores, homens, mulheres e crianças.
3. Existe uma técnica padrão que evite a destruição de objetos em casa?
Um dos problemas grandes que tenho encontrado é essa onda de seguidores televisivos, que fazem tudo sozinhos, mas acabam por estragar seus cachorros. Enfim, ossos em couro são uma ótima alternativa, assim como a queima da energia desses cães. O resto acaba sendo adquirido com o acompanhamento e a técnica empregada. Foge um pouco de uma dica-chave, por exemplo. Os donos precisam queimar a energia de seus cães e ter paciência com seus filhotes. Filhotes fazem arte mesmo.