Niemeyer para estudantes
Poucos sabem, mas o arquiteto fez um protótipo de moradia popular na Universidade de Brasília. Na casinha, que já foi abrigo de estudantes, funciona uma barbearia. Quem já passou por lá tem muita história para contar
No auge da ditadura, a vida na Universidade de Brasília (UnB) era uma barra, mas ele não escondia o orgulho de dizer que morava em uma casinha projetada pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer. Apesar da repressão, entre 1968 e 1971, o estudante de arquitetura Tancredo Maia podia tomar banho de sol nu, cuidar de dois cachorros, ouvir Rolling Stones a todo volume e dormir com a namorada. Tudo isso sem sair do campus da UnB.
Os primeiros moradores desse espaço foram funcionários da própria instituição. Entre eles, André, um ex-porteiro da reitoria, tipo boa-praça, que morreu esfaqueado no Núcleo Bandeirante, em 1967. Diz a lenda que o crime foi passional. Com a morte do inquilino, o mato cresceu em volta do prédio, que ficou esquecido até ser redescoberto por um grupo de alunos que o transformou numa república. O estudante de comunicação Henrique Goulart Gonzaga Júnior, conhecido como Gougon, liderou seus companheiros com o grito “Avante, meus bravos!”. “Nós éramos um bando de porras-loucas. Levamos nossas coisas e ocupamos a casa”, lembra o hoje artista plástico. Com 40 m², o espaço com sala, dois quartos, banheiro com banheira e cozinha era suficiente para alojar quatro estudantes e servir de ponto de encontro de amigos.
O convívio entre os moradores era pacífico e tinha regras curiosas. Quem levasse a namorada para a casinha e desejasse privacidade, deveria estender um cobertor vermelho do lado de fora da janela. “Quando víamos o sinal, tínhamos de matar o tempo e esperar o colega liberar o alojamento”, diverte-se Maia.
Ele ainda se emociona ao falar sobre o local onde morou há 45 anos: “Acho que o espaço não foi bem aproveitado, ficou degradado. Poderiam montar um negócio mais interessante, um museu ou uma gibiteca, por exemplo”. No ano passado, ele apresentou um projeto ao então reitor José Geraldo para transformar o espaço no Museu da Habitação Estudantil, mas a ideia não saiu do papel.
Tadeu Maia saiu de lá antes de dar os primeiros passos, mas lembra as boas histórias contadas pelos pais. “Eu dizia aos meus amigos que, de certa forma, minha vida estava ligada àquela casa. Minha história com a UnB é muito forte. Meu pai e minha mãe se conheceram lá, nasci no Hospital Universitário, ia às festinhas no campus, me formei em sociologia, fiz mestrado e trabalhei na Faculdade de Educação”, resume Tadeu, que hoje trabalha na Secretaria de Educação do DF, em outro prédio pouco conhecido de Niemeyer.
Recém-chegado à UnB, Tancredo Maia viu no protótipo o local perfeito para morar. Em 1968, ele se mudou de mala e cuia. A nova ocupação veio junto com a determinação do então vice-reitor José Carlos Azevedo de demolir o lugar. Com as obras do estacionamento da Ala Sul, Azevedo decidiu acabar com a farra e com a casa.
A resposta dos alunos foi imediata. Maia e três amigos da arquitetura tomaram posse da casa na véspera da derrubada e botaram a boca no trombone. “Mostramos que era um absurdo derrubar um projeto único de Niemeyer. Criamos um problema e conseguimos o apoio de colegas e arquitetos”, conta Maia.
Com a repercussão, o vice-reitor recuou e ordenou a transferência da casa, que ficava ao lado do Instituto Central de Ciências (ICC) Sul, para o local onde está hoje. A retirada foi orientada por um antigo colaborador de Niemeyer, o arquiteto João Filgueiras de Lima, o Lelé, executor da obra original e um dos precursores do concreto pré-moldado no Brasil. O trabalho pesado foi feito com um guindaste da construtora Rabello, que na época erguia o Minhocão. Só o gigante braço de aço foi capaz de içar o protótipo de 42 toneladas.
Quase 30 anos depois, em 1997, o próprio Azevedo relembrou com bom humor o episódio em uma conversa informal com jornalistas. “Tive de ceder. Mandei guindar aquela porcaria. Não adiantava comprar briga para derrubar uma obra de Niemeyer que, diga-se de passagem, era desconfortável e quente como o inferno”, ironizou o polêmico ex-reitor linha-dura.
O protótipo de Niemeyer não está na lista das obras mais famosas do arquiteto, mas faz parte de um momento em que o Brasil estava na vanguarda do uso da pré-fabricação. A professora da Universidade de Brasília Sylvia Ficher explica que a intenção do arquiteto era produzir unidades pré-moldadas em concreto armado, que pudessem formar módulos empilháveis e garantir a construção de conjuntos habitacionais de forma acelerada e econômica. “A casinha faz parte de uma preocupação do começo dos anos 1960. Era uma tendência pós-guerra, de estabelecer linhas de montagens nas moradias, como se fossem automóveis. Hoje, a questão habitacional é pensada de outra forma, com mais flexibilidade”, diz Sylvia.
Em maio de 1967, Francisco Bertoldo Amorim decidiu trocar a caatinga pelo cerrado. Há 46 anos, ele deixou a pequena São Miguel, no Rio Grande do Norte, para fazer a vida na capital do país. Com 21 anos, veio trabalhar como cabeleireiro na UnB. Dez anos depois, a loja feita de madeira pegou fogo, mas as tesouras, navalhas e as velhas cadeiras foram salvas com a ajuda dos estudantes. Naquela época, o protótipo habitacional de Niemeyer estava novamente abandonado, depois da saída dos alunos e de servir por um tempo como posto de saúde. Foi assim que o projeto de moradia popular do arquiteto abrigou a Barbearia do Chico.
Paulo Motta também é cliente antigo. Ele morou na Colina em 1967 e conhece a história da casa, mas discorda da ideia de transformar o lugar em uma espécie de museu. “É uma referência na UnB. Meus filhos são alunos e cortam o cabelo aqui. E o filho do barbeiro também segue o mesmo caminho”, defende Paulo, deitado na cadeira de Rodrigo, o único herdeiro de Chico que trabalha com o pai. Se depender da UnB, a destinação do espaço não vai mudar. “As pessoas que tocam os serviços são muito queridas por aqui”, afirma Alberto de Faria, do Centro de Planejamento Oscar Niemeyer, órgão responsável pela organização arquitetônica da universidade.