Iguais, mas diferentes
Asa Sul e Asa Norte têm a mesma configuração e tamanho. Guardam, no entanto, algumas peculiaridades: de um lado, mais tradição; do outro, mais juventude
Elas são gêmeas univitelinas. Gestadas no mesmo ventre – as mãos de Lucio Costa –, foram desenhadas para serem idênticas. As asas que dão equilíbrio para Brasília voar e se desenvolver têm o mesmo projeto, com medidas simétricas. São 16 quadras residenciais para cada lado, todas com um centro comercial vizinho e com exatos 500 m de comprimento. A configuração física é, de fato, muito parecida. No entanto, ambas cresceram, receberam diferentes influências e, apesar das similaridades, criaram personalidades próprias.
Que as asas Sul e Norte são diferentes, ninguém nega. Mas, como bairros com o mesmo projeto ficaram com características tão distintas? Quando o assunto é o Plano Piloto, o brasiliense, conhecido por morar numa cidade cosmopolita, que une diversas culturas, torna-se bairrista. Cada um puxa a sardinha para o seu lado. O casal Felipe Murrieta, bancário, e Vanessa Cortines, jornalista, ele, morador da Asa Sul, ela, da Asa Norte, encarnam bem essa disputa e enumeram as diferenças. “A Sul é mais antiga, por isso é mais desenvolvida. Tem mais bares, mais opções de lazer”, acredita Felipe. Ela ressalta: “A Asa Norte tem mais gente jovem, é mais agitada”.
Affonso Heliodoro, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do DF, tem 96 anos e veio para Brasília na época da construção. Segundo ele, muitas das diferenças entre os bairros se devem à forma como foram ocupados. “A Asa Sul foi feita para que Brasília pudesse comportar servidores públicos e políticos, que vinham morar na nova capital. Já a Asa Norte foi sendo construída à medida que Brasília crescia, foi se desenvolvendo ao longo do tempo. Apesar de ter quadras como a 312, que existe desde 1960, a Asa Norte é, como um todo, mais jovem”, constata. Para ele, a Norte acabou sendo beneficiada. “Fizeram a Asa Sul às pressas, pois a cidade tinha data para ser inaugurada”, rememora.
Quando Lucio Costa pensou Brasília, definiu que o Plano Piloto seria dividido por superquadras que teriam o conceito de unidade vizinhança. Os moradores não precisariam sair dali para nada. Teria comércio, igreja, posto de saúde, biblioteca, colégio e um espaço de cultura e lazer para a integração dos moradores. A 308 Sul foi escolhida para ser a quadra modelo e seguiu à risca o conceito do urbanista. Contudo, somente ali foi seguido o plano original.
Geralda destaca a liberdade que o horizonte livre sonhado por Lucio Costa proporciona. “Várias crianças se reuniam debaixo dos blocos e brincavam livremente até anoitecer. É bom que elas podiam correr, fazer o que quiser. Não tem grade, nem nada para atrapalhar a visão. Ficávamos de longe cuidando deles”, conta.
Edinho Magalhães, de 40 anos, sobrinho de Ivone, é prefeito da 308 Sul e lembra como foi a infância no Plano Piloto. “Na minha adolescência, ir para Asa Norte era uma viagem. E, quando chegávamos lá só tinha poeira e construções para todos os lados”, relata. Não à toa, durante algum tempo, brincavam com os apelidos Asa Morte e Asa Susto.
Como prefeito da quadra modelo, Edinho fala da responsabilidade e das dificuldades de manter a originalidade do que fora pensado por Lucio Costa. “Tentamos manter tudo intacto, pois a quadra faz parte até da rota turística da cidade. Mas nem sempre conseguimos. Quando fazemos uma reforma estrutural em algum bloco, não encontramos mais os mesmos materiais, aí procuramos algo parecido”, diz.
Na autobiografia Registros de uma vivência, de Lucio Costa, há um texto da filha dele, Maria Elisa Costa, que explica bem o conceito da livre circulação. “Estruturalmente, uma superquadra é um conjunto de edifícios residenciais sobre pilotis, ligados entre si pelo fato de terem um acesso comum e de ocuparem uma área delimitada. O chão é público – os moradores pertencem à quadra, mas a quadra não lhes pertence.” A abundância do verde também foi defendida pelo urbanista e posta em prática na cidade.
Na Asa Norte, as primeiras quadras a serem construídas foram a 306 e a 312. Nelas, as amizades passam de geração para geração. As donas de casa Mariângela Junior e Janice Monteiro são amigas de infância. Brincavam juntas nas décadas de 1960 e 1970 e lembram como o bairro era praticamente despovoado. “Como é tudo plano e não tinha nenhum prédio, daqui conseguíamos ver a 306. Na 311, havia um córrego onde passávamos a tarde tomando banho. Pena que o destruíram para levantar edifícios muitos anos atrás”, lamenta Janice.
Uns porque os pais eram amigos, outros porque vieram morar aqui e acabaram se integrando”, diz Lucas. E eles têm orgulho de morar em uma das primeiras quadras do Plano Piloto. “Não importa o que vamos fazer, temos somente uma certeza: tudo começa e acaba na 312”, finaliza Eduardo.
A Colina, conjunto residencial de professores da UnB, é exclusividade da Asa Norte. Um minibairro longe das superquadras. A universidade é proprietária de todos os apartamentos e os aluga para funcionários. Cenário de filmes nacionais, era um dos locais que Renato Russo e companhia se reuniam para tocar e cantar. Claudia Porto, professora de arquitetura da UnB, já morou na Asa Sul e está há oito anos na Colina. “Prefiro a Asa Norte. Principalmente a Colina. O ambiente aqui é familiar. Parece uma pequena vila”, diz.