A alquimia de uma paisagem
Um mergulho na obra do artista plástico Luiz Gallina, que retira do cerrado e dos sonhos um farto material de pesquisas, de vivências e de arte
Essas vivências resultaram nas seguintes fases de sua arte: As Paisagens Brasilienses (em xilogravuras), Cascas e Carcaças (em pintura), Assemblages (colagem de desenhos, objetos e vestígios da flora e da fauna do cerrado) e a Tábua Esmeralda de Hermes Trimegistos (em que o universo simbólico da alquimia é frequentado por animais cerratenses).
Gallina sempre sonhou muito, chegou a anotar mais de 400 sonhos. Mas, no início, a dimensão onírica ainda não entrava em seu trabalho. Quando tinha 16 anos, inscreveu um desenho em um salão de artes de São Paulo. No júri, estava o artista plástico iconoclasta Flávio de Carvalho, que vislumbrou algum talento no garoto e selecionou o trabalho para a exposição do evento: “Vamos dar uma chance a ele”. Em 1969, Gallina chegou, pela primeira vez, a Brasília e tomou um choque de silêncio, de espacialidade e de natureza. Tudo levava a um mergulho interior: “Brasília é um espaço aberto, é uma calota celeste, você fica com medo de que o céu caia em sua cabeça. Brasília parecia uma cidade para se passar as férias naquele tempo. As pessoas paravam nas ruas e ofereciam carona sem você pedir” .
Registrava as imagens das árvores descabeladas e as transformava em gravuras, explorando o jogo de luz e sombra e acentuando a carga dramática da região. Era uma outra beleza crispada completamente diversa da inscrita nas cidades que ostentam paisagens de cartão-postal. Batizou essa série, elaborada entre 1978 e 1983, de Paisagens Brasilienses, que incluía a vegetação e cenas da cidade. Os trabalhos chamaram a atenção do artista plástico Athos Bulcão e do designer pernambucano Aloísio Magalhães, à época, diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que se tornaram colecionadores. “Eu passava o dia inteiro no meio do mato ou das cachoeiras, anotando, desenhando. Na época, o Lago Sul era longe, era preciso dar uma volta grande, não havia tantas pontes.”
O “desejo-natureza” impulsionou Gallina a comprar uma chácara em uma área do cerrado mais bravo e a se mudar para lá. Imaginava que abriria a janela e pintaria quadros vivos. No entanto, insolitamente, essa mudança teve um impacto em sua obra e ele se desinteressou das paisagens. A sua arte abandonou a linguagem da gravura e, sob a dupla influência do artista norte-americano Robert Rauschenberg e do brasileiro Wesley Duke Lee, assumiu a forma da assemblage, composição artística muito mais livre, que realiza uma colagem das linguagens tradicionais (pintura, desenho, gravura, aquarela) com objetos cotidianos deslocados do seu contexto original. Gallina incorporou em seu trabalho carcaças desidratadas de lagartixas, cobras, galhos retorcidos, pedras pontiagudas, resíduos de ossos de animais e aves: “A beleza do cerrado não é de belas artes”, comenta. “É uma beleza torta e tortuosa, é arte contemporânea. As coisas do cerrado não são belas, mas são sensacionais, incomuns, surpreendentes. Você só apreende a beleza neste território pela vivência.”
Ele produz os objetos em um ritmo muito lento e não faz nenhuma questão de vendê-los. Só vendeu um e confere tanto valor que pretende comprá-lo novamente. Coleciona, cuidadosamente, carcaças de folhas, de plantas e de animais do cerrado em caixinhas. Ele mostra o esqueleto desidratado de uma lagartixa morta e uma flor branca com penugens extremamente delicadas, que evoca uma vulva, como possíveis elementos de um próximo trabalho: “Eros e Thanatos estão em cena o tempo todo no cerrado e em toda a natureza”.
O interessante é que no contexto universal dos símbolos alquímicos ele inseriu elementos regionais do Planalto Central. A Fênix vermelha de Gallina é uma seriema. A águia não plana nas alturas, mas está na linha do olho: “É porque moro próximo a uma encosta e não vejo as águias voando no firmamento, e sim na linha do olho. Não é a gente que escolhe a alquimia; é a alquimia que escolhe a gente. Para mim, a conexão da alquimia com Brasília é muito forte. Esse céu aberto nos joga para um mergulho interior, para uma reflexão sobre o sentido da vida e do mundo. A alquimia é um estudo sobre a significação das coisas.”
O que é preciso para conhecer o cerrado? É necessário se debruçar sobre ele, responde Gallina. “Você precisa se abaixar”, diz. “Se ficar de pé, não percebe que ele está florido. Se você se ajoelha, vê tantas flores lindas, cada uma com um desenho, com um matiz ou com um filamento diferente.”
Gallina vê ainda mais: “A consequência do lago foi que a fauna aumentou muito. Era comum vermos pardal antigamente. Hoje, vemos muito mais bem-te-vi, sabiá, alma-de-gato, que tem um rabo de 30 centímetros. Eu e meu filho fotografamos e eu o incentivo para que seja um pesquisador. O cerrado é muito forte. O segredo para entender o cerrado é a paciência”.