Boa, porém escassa
A água do Distrito Federal tem qualidade acima da média, mas o custo é alto e a disponibilidade está ameaçada. Acidente no lago Paranoá, que deve ser usado para abastecimento em dois anos, preocupa ambientalistas
Desafios comprometem o futuro dos recursos hídricos da região do Distrito Federal. Aumento da demanda por água para consumo, combinado à má conservação dos mananciais, assinala possível colapso. Soluções para o curto prazo começam a ser tomadas e, nos próximos dois anos, sistemas de captação em Corumbá e no lago Paranoá para abastecimento da população do DF começarão a funcionar. Apesar de suscitar polêmica, a medida de ampliação é necessária, segundo órgãos do governo, para garantir que consumidores não fiquem sem abastecimento hídrico, visto que a previsão de crescimento da demanda no Distrito Federal é de 20% até 2040.
Preocupações com a medida aumentam após o acidente que levou uma mancha de óleo de 190 m² ao lago Paranoá em 17 de outubro. Esse tipo de ocorrência, dependendo do grau e local, poderia levar à suspensão, ainda que temporária, do abastecimento, caso as águas do lago estivessem provendo residências de Brasília. “O vazamento foi um alerta para a importância de medidas de segurança hídrica. Além de ter mais de uma ou duas fontes de abastecimento, a preservação de mananciais e o uso consciente são primordiais para a garantia de um bom serviço de fornecimento de água”, explica o biólogo e especialista em recursos hídricos da organização não governamental WWF Brasil, Glauco Kimura.
Além das novas fontes de recursos hídricos vindos do lago Paranoá e de Corumbá, projetos de preservação optam por caminhos inovadores. Estratégias que promovem a integração comunitária e o incentivo a boas práticas no lugar de punição a infrações demonstram melhores resultados.
Também tem foco a reeducação para diminuição do gasto de recursos hídricos. Os números surpreendem: são 10.400 litros por segundo captados pela Caesb. Esse volume serve a todo o Distrito Federal e é ele que deve aumentar para 12 mil litros por segundo nos próximos 27 anos, até 2040. A fim de que o brasiliense não pereça de falta d’água, as soluções encontradas foram transpor água de Corumbá, Goiás, para o DF, bem como lançar mão das águas do planejado Paranoá para abastecimento.
O uso das águas do lago surpreende os especialistas porque sua construção foi para fins paisagísticos e climáticos. “Utilizar as águas do Paranoá para abastecer a população era tido como possibilidade para futuro longínquo. Infelizmente, a data chegou muito mais cedo do que o previsto”, diz Glauco Kimura. E os riscos de acidentes como o ocorrido em outubro é aumentado no lago em relação a outras bacias que fornecem água para o DF. No caso da transposição de recursos hídricos de Corumbá, o especialista ressalta que dispor de volumes de água mais distantes é comum em grandes centros urbanos. Cidades como Rio de Janeiro e São Paulo já usaram a técnica. Infelizmente, essa é uma solução eficaz no curto prazo, mas que traz malefícios. Primeiro porque a técnica de captação de água tem alto custo e é propensa a desperdícios.
Para o diretor do curso de engenharia ambiental da Universidade Católica de Brasília, Marcelo Gonçalves Resende, a educação ambiental e sanitária pode promover o entendimento do cidadão sobre o custo da água. “Considerando a alta qualidade da água distribuída, que é até mesmo própria para consumo, e o gasto de recursos públicos para atingir esse padrão, é inadmissível seu uso para lavar calçadas, por exemplo”, diz Resende. A necessidade de rever padrões de consumo dos recursos hídricos é possivelmente a única forma de evitar o colapso do sistema.
O caso da região em que se encontra o Distrito Federal traz desafios peculiares. Sua oferta de água é naturalmente menor por ser localizada em região de nascentes – na região do DF, encontram-se as bacias São Francisco, Paraná e Tocantins. Nessas áreas, grandes massas de águas, como rios volumosos, são raras. Além disso, sua responsabilidade em garantir boa infiltração para bacias hidrográficas e qualidade da água é duplicada porque o Planalto Central concentra nascentes que abastecem diversas regiões do país. Nesse sentido, o dever não tem sido muito bem cumprido. E o maior culpado é a falta de planejamento para a expansão da área urbana. Das duas principais barragens que fornecem a água da região do DF, Descoberto e Santa Maria, apenas a última não sofre grave assoreamento por se encontrar na área de proteção do Parque Nacional. A barragem do Descoberto, no entanto, responsável por 75% da oferta de água, é afetada pelo problema.
“O parâmetro que temos no Distrito Federal é verdadeiro oásis de qualidade de água no país”, opina o professor Marcelo Resende. Os esforços continuarão nos novos sistemas de distribuição. No caso do lago Paranoá, que recebe escoamento do tratamento de esgoto, haverá estações especiais de tratamento. Há certos elementos químicos que ainda permanecem na água e que, apesar de não afetarem o meio ambiente de forma direta e maciça, podem ter consequências negativas para o consumo. Por isso, o tratamento das águas do lago terão filtros para resquícios de medicamentos, como anti-inflamatórios e hormônios, que ficam na água usada em algum momento por seres humanos. Esse tipo de filtragem, apesar de possível, custa caro. E é por isso que pessoas como Resende insistem na importância de evitar o desperdício. Na mesma linha, destaca Maurício Luduvice, que o cidadão pode confiar na qualidade a água acima do convencional, mas que esse parâmetro depende da qualidade da água bruta.
A comunidade passou a interagir melhor com a empresa que, por sua vez, mostrou-se disposta a seguir as exigências sanitárias e interagir de forma sustentável com o ambiente. A pequena bacia, situada na cidade do Gama, tem 590 hectares e sofreu com a mudança em algumas décadas de pequena região de produção rural para centro urbano com crescimento desenfreado. Entre os maiores prejuízos está o local conhecido como prainha. Antes endereço de encontro e lazer dos moradores da região, que usavam as águas do Crispim para banho, tornou-se centro abandonado e ponto de consumo de drogas e violência. “É um retrato do que acontece com a ocupação mal ordenada”, indicou Glauco Kimura, da WWF. A intenção é concentrar esforços para que a comunidade tenha a força necessária de exigir mudanças do governo, tanto para a prainha quanto para toda a bacia do Crispim. “Em última análise, queremos que o projeto transforme a consciência do cidadão e as políticas públicas do estado em favor da preservação de áreas essenciais à qualidade de vida”, resumiu Kimura, que é o coordenador do projeto na WWF.
A servidora pública Marília Rabello lembra-se da época em que a prainha era local de encontro da comunidade. Residente do Gama desde os 4 anos, ela entrou em contato com o projeto Água para a Vida por meio da administração regional da cidade, onde trabalha. Ela acredita que o trabalho contribuiu para diminuir a má imagem que a fábrica tinha antes para os moradores. “Sem contar que ações como os passeios para coleta de lixo às margens do córrego congregam a comunidade”, completa. Para o médico Carlos Eduardo Reginato Sé, que tem uma propriedade rural na região do Pipiripau, perto de Planaltina, qualquer projeto, para ter força, precisa congregar produtores rurais, moradores da região e membros do governo.
A alguns quilômetros de distância da propriedade de Carlos Eduardo, do outro lado do rio Maria Velha, fica a chácara de Fátima Cabral e sua família. Onze anos atrás, ela largou o emprego na capital federal para desbravar o mundo da produção rural com os dois filhos mais novos e o marido. Produtores de hortaliças e alguns vegetais, eles participam do Programa Produtor de Água. Em dezembro de 2012, 8 mil mudas foram plantadas na área próxima à nascente da propriedade de Fátima. Com auxílio de outro programa, chamado São Bartolomeu vivo, a produtora rural construiu ainda em sua chácara um viveiro comunitário. “Já notamos mudanças instantâneas depois das novas medidas. Encontramos peixes na área”, comemora Fátima. Para Rossini Sena, da Agência Nacional de Águas, entre os méritos do esforço está a congruência do trabalho de muitos grupos e entidades, bem como o foco no incentivo, não na punição: “Todos ganham, mais água e infiltração no solo significa mais água para população, em maior qualidade e com menor custo”.
Frente todos os fatos, bons e maus exemplos, especialistas, ativistas e governo concordam em um aspecto: a participação mais ativa de cidadãos no processo de gerenciamento dos recursos hídricos é fundamental para garantir a sustentabilidade desse bem fundamental para a existência humana. Samuel Roiphe Barrêto, coordenador do Programa Água Brasil pela WWF Brasil, biólogo e especialista em água doce, o importante é compatibilizar desenvolvimento, produção e conservação. “O desafio é encontrar como produzir melhor, consumindo menos, com emprego e renda bem distribuídos e maior preservação".