Mãe de coração
Cercada de confiança, carinho e agradecimentos, Ignácia, a babá de várias gerações da família Piquet, completará 91 anos este mês. Ao lado de Nelson e Geraldo, por quem é considerada uma segunda mãe, ela abriu seus álbuns de fotos e lembranças para Encontro Brasília
Em frente à televisão, Ignácia rezava com as mãos e o coração apertados. A tela mostrava um carro de corrida a quase 400 km/h. As contas de um terço eram poucas diante das preces feitas em voz baixa pela mulher que acompanhava aflita as performances de um dos maiores pilotos da história do automobilismo, Nelson Piquet. O homem sem medo da velocidade, nem de falar o que pensava, com fama de temperamental, para Ignácia era simplesmente o menino que ela havia ensinado a ler na sala de casa, que embalou de madrugada e que alimentou tantas vezes. Ignácia perdeu o cálculo de quantas velas acendeu para Nossa Senhora, pela proteção de Nelsinho, como ela o chama, de quem foi babá e do qual recebeu o título de segunda mãe.
Nelson aposentou-se, mas o altar religioso e as velas estão montados em um canto da casa de Ignácia, na fazenda Piquet, onde também moram o tricampeão de Fórmula 1 e o irmão mais velho, Geraldo Piquet, com suas respectivas famílias. Ignácia vive no espaço reservado a ela, na gigantesca propriedade cheia de verde, no Lago Sul, e tem uma cuidadora à disposição. Os Piquet fazem questão de tê-la bem perto, rodeada de cuidados. “Ontem eu era a babá, hoje tenho uma”, dispara Ignácia.
O cuidado é a maneira de retribuir a dedicação de uma vida inteira. Quando Nelson acidentou-se, em Indianápolis (EUA), era 1992 e o mundo acompanhou o desfecho da grave colisão. A imprensa falava em possíveis amputações e em risco de morte. A pedido da família, Ignácia fez as malas e embarcou para cuidar do piloto. Nelson estava nas mãos dos melhores profissionais disponíveis, mas a presença de Ignácia significava algo que não estava à venda, algumas doses de amor e confiança.
Ela só retornou a Brasília quando ele estava recuperado. “Quando me deram a notícia, eu corri para a igreja. Foi o dia em que mais rezei na vida”, lembra a ex-babá. “Dizem que orações curam doenças e têm poder. Se estamos aqui todos bem, deve ser por conta das rezas fortes da Ignacinha”, completa Geraldo.
Ignácia acobertava as saídas do rapaz para evitar conflitos com a família. Deixava também comida pronta, por gosto e não por obrigação, para quando ele chegasse de madrugada, no começo da carreira. “Não sei como meu coração aguentou. Eu pensava que Nelsinho não tinha juízo, que era melhor ter sido um doutor, mas o ajudava mesmo assim, porque confiava. Ele é que tinha razão”, afirma.
A história de Ignácia, nascida na Paraíba (PB), misturou-se à dos Piquet quando ela tinha 16 anos, em Pernambuco (PE). Nessa faixa etária, as meninas pobres da região já trabalhavam havia tempo para sobreviver. Algumas nem sequer recebiam salário e prestavam serviços em troca de casa, comida e roupa. Uma amiga indicou Ignácia para trabalhar na casa de saúde administrada por Estácio, nascido em Pernambuco. A nova funcionária logo se tornou querida pela família do médico.
Teve a sorte diferente da de muitas meninas de sua idade e na mesma situação de vulnerabilidade social. Quando Estácio foi eleito deputado, o hospital fechou as portas e ela foi convidada a ser babá e a deixar a cidade, rumo ao Rio de Janeiro, com os Piquet. Antes disso, Ignácia nunca havia se sentido importante, ela relata.
Uma década depois de ter nascido, Ignácia Claudiana da Silva ainda não tinha certidão de nascimento. Descendente de escravos, começou a trabalhar aos 7 anos, como empregada doméstica. Ainda era criança quando conheceu a responsabilidade de tomar conta de outro ser humano. Não se lembra da vida sem deveres. Mesmo assim, não se descreve como vítima da miséria, mas como alguém que venceu as circunstâncias. “Minha mãe morreu quando eu era pequena. Eu e meus irmãos crescemos trabalhando. Nós dormíamos sentindo uma gastura, quando víamos era fome. Só tinha um restinho de farinha e mamona. Sobrevivi porque sou do santo forte”, lembra.
Ignácia foi babá dos quatro filhos de Clotilde Piquet Souto Maior, que morreu em 2007, e Estácio Souto Maior. Alex, hoje com 70 anos, foi o primeiro. Em seguida, nasceu Geraldo, atualmente com 69 anos. A única mulher, Gerusa, de 66 anos, é uma das mais afeiçoadas a Ignácia. Mora nos Estados Unidos, mas envia fotos e fala com Ignácia ao telefone toda semana.
Ela, que por pouco não morreu de desnutrição durante a infância e enxergava o mundo por uma fresta pequena, conheceu, ao lado de Nelson, lugares que nem imaginava existir. Passou temporadas em Mônaco, no Vaticano, esteve em Portugal, na França, nos EUA e na Itália. Nelson guarda no celular fotos de Ignácia em uma praia brasileira, tomando banho de mar, com sorriso honesto igual ao de criança quando se diverte. “Ela morou um ano no barco (um iate) comigo, em Mônaco. Vou lhe contar um segredo de família: eu sou filho da Ignácia”, diz Nelson, que faz jus à fama de piadista. “Falar besteira é pecado. Seu Estácio era um homem muito respeitador”, responde Ignácia.
A fama de mau de Nelson Piquet pode sair abalada de um encontro com Ignácia. Ao lado dela, o tricampeão não economiza sorrisos e mimos. Pudera: foi ela quem o ensinou as primeiras palavras escritas, na sala de casa, mesmo sem ter frequentado a escola formal. “Eu estudei pouco na época de menina. A gente mudou para Brasília e eu voltei para o colégio, fui uns dois anos, mas desisti depois”, explica a paraibana. Há décadas, Ignácia escreveu uma carta para Nelson. Queria documentar o seu amor por ele. Anos depois, Nelson encontrou o papel. “Ele chorou e veio me mostrar o que tinha achado”, revela Ignácia.
Ignácia esteve presente em todos os momentos importantes: na primeira comunhão de Nelson Piquet, na igrejinha, em casamentos, aniversários, batizados e em ocasiões de tristeza, como a morte de Clotilde. Além de cuidar dos quatro filhos da patroa – que se tornou amiga – como se fossem seus, Ignácia ajudou a criar os netos dela, pelos quais pede proteção divina todas as noites. É por todos eles que Ignácia reza o Santo Anjo do Senhor, famosa oração que pede aos céus para guardar, governar e iluminar pessoas queridas. Se os anjos precisarem de ajuda extra, podem contar com Ignácia.