E se Camões fosse aquariano?
Autor brasiliense, um dos escritores agraciados com o Prêmio Icatu de Artes, mergulha em jogo poético para simular qual signo teria regido o criador de Os Lusíadas
Toda vez que pisa em Brasília, o poeta e professor Luis Maffei sente-se cindido ao meio. É como se estivesse cortado por uma fenda e se formasse um abismo em si. De um lado, está o homem nascido na capital e levado ainda menino para outras terras. De outro, o forasteiro, cujos olhos curiosos parecem sempre correr a cidade monumental com o desejo de vasculhar até o que está à sombra dos vãos. Íntimo e simultaneamente estranho, ele confessa que se desloca pelo território natal à caça de esmiuçar a realidade de espaços amplos e perturbadores. “Brasília é um espanto!”, revela o escritor, um dos seis selecionados pelo Prêmio Icatu de Artes, um dos mais respeitados do país, com o livro Signos de Camões.
Esse olhar de navegador em busca de outros mundos o fez enveredar pelos mares da poesia ainda adolescente. Entre 14 e 15 anos, Maffei mergulhou, sem anteparo algum, numa infinidade de livros e filmes. Rapaz, curioso descobridor de universos, passou a pensar as relações com o mundo a sua volta a partir de uma mediação poética. “Entre outras características, a poesia é a arte da desconfiança. Nesse sentido, acredito nela como em poucas outras expressões de nossa espécie.”
Tragado pelo poético, Maffei se viu diante de um dos maiores desafios. O de navegar pelo misterioso mar de Luís de Camões, o autor que deu ao português a dimensão de língua, com o lançamento de Os Lusíadas, publicado originalmente em 1572. Assim como o escritor que criou uma representação do povo e da nação portuguesa a partir dos feitos de Vasco da Gama, Maffei põe a postos a caravela para explorar as possibilidades que giram em torno da data de nascimento do autor lusitano, cercada de histórias e mistérios.
Sabe-se que Camões foi concebido por volta do ano de 1525 e nada mais. “Delicio-me com a astrologia. Ela permite, muito mais que determinações fixas, movências de caracteres muito poderosas – um mapa astral é coisa riquíssima. Como não se sabe a data de nascimento de Camões, procurei que cada poema lidasse com traços da obra camoniana que fossem mais próximos a características gerais dos respectivos signos.”
Unindo poesia e astrologia, Maffei rodou o leme pelo zodíaco. Trocou o mapa-múndi pelo astral na tentativa de se aproximar de um Camões que ecoasse nele. A procura era antiga. Não apenas como poeta, mas como professor de literatura portuguesa da Universidade Federal Fluminense. “O primeiro nó do processo foi realmente ‘um nós’: Camões e eu. A procura dos poemas foi dupla, pois era preciso achar um pouco da voz camoniana e, acima disso, a minha. Atar os nós nesse processo teve que ver, por exemplo, com explorar formas fixas muito visitadas por Camões, como a canção, e outras por ele menos exploradas, como a sextina, e duplicar um soneto, pondo nele uma dobradiça. Além disso, precisei confrontar-me com os signos poéticos camonianos, e isso fez do processo de escrita um processo de leitura, entendimento e mudança.”
É evidente que Luis Maffei só conseguiu adentrar com essa missão no universo camoniano porque conhecia muito bem os caminhos do poeta. O processo de escrita, no entanto, alterou sua forma de ver o escritor. Agora, ele o examinou com olho de poeta. Antes, sempre o fez como leitor especialista. “Pude explorar das formas fixas e das não fixas, como nos casos de áries e escorpião, poemas sem versos, e de aquário e leão, poemas no chamado verso livre.”
Maffei fez o mapa astral. É aquário com ascendente em touro. Passou a gostar da astrologia pelos sentidos humanos e humanizantes que o zodíaco constrói e pela imensa gama de narrativas que possibilita. “Como produção de sentidos a ler, acredito nela, pois não a vejo como postulante de uma verdade aprisionadora.” Em Signos de Camões, ele não arrisca suspeitar, com responsabilidade, qual teria sido o signo desse poeta plural. Aliás, manter esse enigma faz do livro um mar a ser revisitado.
SIGNOS POÉTICOS
Por Luis Maffei
ÁRIES
A ti, persigo-te como fogo, como uma criança que tem fome e eu as tenho, a criança e a fome, razões de ser com
muitas faces
TOURO
Neste andar em labirinto, tenho a mim e ao meu valor, tela inteira cuja
cor como a ti, me esmero e pinto: doto a língua
de sabor
CÂNCER
Angústia de remar eu não contorno espelho do meu rosto em fim me torno
GÊMEOS
Encontro-te buraco negro e calvo, teu gesto em maternal sepultamento, da ausência sua agora muito privo
LEÃO
E que depois de depois de depois. O público se mova para ver o artista
e nade pelo menos pelo livro: um olho no peixe, outro em mim. Mesmo para sabermos se andam bem o broche e a comitiva
VIRGEM
Ao eco do assombroso maquinário adumbram
as flores ocas de veneno em mole mas benévola oficina, sinais de trafegar que eu mesmo teste,
o trânsito obnubila
o panorama. As rua engarrafam sua espessura
LIBRA
Estou com as pernas sobre o precipício, os pés de ambos os lados do barranco; Qual boca diz que induz somente ao vício Armar concertação de cada flanco?
ESCORPIÃO
Sem ser visto,
começo a abandonar
a construção. Vejo mais que nunca, calo como nunca, estou invisível como nunca estive
nem voltarei a estar
SAGITÁRIO
Lisboa é só Rio quando lugar ameno, é palco onde enceno, um rosto em
que vejo, em que sorrio
CAPRICÓRNIO
Mar ou terra, tudo em torno se trabalha e se renova; cada coisa é a própria prova, cada estar é o seu retorno. Paciente
AQUÁRIO
Depois me caiba a sina
de soprar cantando
ao mundo a muita
parte de invenções
e ensinamentos, ouço:
a minha vida é isto
PEIXES
Já noite sem luar,
mar sem ventura, delfins
sem peso e barcos sem poderes. Há signos com real, não sei se há cura
Astróloga literária
No processo de criação, Luis Maffei contou com a consultoria de Roberta Ferraz, poeta, astróloga, ficcionista e doutoranda em literatura portuguesa na USP. Ela escreveu o posfácio d do livro e confessa que a obra a aproximou como nunca do poeta lusitano. “Se isso acontecer com os leitores, será uma grande alegria para mim”, sonha Maffei
Quem tem medo de Os Lusíadas?
Para quem pensa em se aventurar na epopeia de Camões, Luis Maffei aconselha que o leitor tenha em mãos um bom livro crítico que indique os caminhos da obra, que é “pura transgressão e lirismo”. Ele enfatiza que, no correr do tempo, Os Lusíadas foi lido de forma conservadora, sem o gozo poético. “O Brasil tem alguns admiráveis leitores de Camões. Na poesia, posso citar Carlos Drummond de Andrade e Manoel Bandeira”, destaca Luís, contando que a afilhada poética dele, Julia, leu com 14 anos, e muito bem.
Maffei defende que Camões é a mais perfeita definição do poeta clássico. “Portanto, muitos versos seus são conhecidos e citados por pessoas que nem sabem que o estão citando. A poesia, em geral, tem sofrido, nesta contemporaneidade, um bocado surda. Neste país de educação básica capenga, um silenciamento terrível. Por isso, nem Camões nem poeta algum têm a leitura e os leitores que merecem.”