Onde os chefs compram?
Se qualquer dona de casa tem a difícil missão de buscar bons ingredientes para o que prepara em sua cozinha diariamente, imagine, então, o desafio que têm os profissionais do ramo
Ser chef vai além de horas à beira do fogão cozinhando com o auxílio de conhecimento, técnica e um bocado de criatividade. Os profissionais que honram o dólmã que vestem vão a campo, em busca dos melhores ingredientes para compor receitas autorais ou clássicos já na boca do povo.
Para Mara Alcamim, do Universal Diner, um bom produto garante o sucesso de um prato em 70%. Os outros 30% competem à maestria em combinar tempos precisos de marinar, temperar, cozer e servir. Por muito tempo, o Porquinho Dançante foi uma das atrações de seu restaurante aos sábados no almoço. Numa balada vespertina, ao som de um DJ e caipirinha com picolé, Mara servia um bufê farto de feijoada com todos os cortes que um suíno pode oferecer. Hoje, o serviço só é realizado por encomenda.
O açougue é extensão da Bel Queijos, Doces e Frios, uma barraca onde tudo o que um receituário precisar é retirado de freezers ou expostos nos balcões. “Olhe a qualidade desses queijos”, diz a chef para ela mesma, enquanto escolhe os melhores meia-cura e peças de queijo coalho.
No box do seu José Sebastião, os sacos com farinhas, favas e grãos convidam a chef a mergulhar a mão e fazer os pedidos. Quilos de farinha de mandioca branca e amarela, em variadas gramaturas, são avaliados pelo tato e escolhidos para compor a farofa.
A pé, ela finaliza o percurso num mercado próximo à feira. “Ali, no Veneza, quinta-feira é dia da carne suína”, avisa. “É o tempo certo para fazer a feijoada: Na quinta, deixo as carnes de molho; no dia seguinte, começo o preparo e sirvo no sábado”, ensina. Mara e duas dúzias de donas de casa se amontoam ao redor de pés, orelhas e rabos de porco e, assim, o Porquinho Dançante vai tomando forma.
Preparar embutidos suínos era trabalho masculino. O avô, Arduino, era responsável pelo ofício. “Mulher, quando põe a mão, estraga”, dizia ele. Quando Marilde veio morar na capital federal, a primeira ação, com o auxílio de um parente, foi montar uma estufa e iniciar a feitura de salames e linguiças artesanais. Mas com qual tripa envolver os recheios? Foi à Ceasa (Centrais de Abastecimento do Distrito Federal) buscar um fornecedor. Lá, soube por um feirante que uma veterinária na Ceilândia vendia.
Na Ceilândia, a chef também vai à feira, em um grande galpão, nos moldes da Ceasa, onde produtores não faltam, ofertando suas mercadorias. “A qualidade é a mesma, se não for superior, e os preços são bem diferentes”, diz. As compras são no atacado, poucos comercializam alimentos em pequenas quantidades. Por lá, é possível encontrar fornecedor de castanha de pequi, pimentas frescas e em conserva, galinha caipira com poucas horas de abate e caixas e mais caixas de frutos da estação, como jabuticaba.
O frutinho roxo, tipicamente brasileiro e encontrado aos punhados em troncos de árvores pelo Eixão Sul e Norte, é o ingrediente principal do molho que recobre um corte de filé mignon no Ares do Brasil. “Esse prato é um dos carros-chefes do restaurante, encontramos fornecedor do fruto na forma de geleia no interior de São Paulo”, diz Rodrigo Cabral, chef e sócio do estabelecimento.
A proposta do Ares é uma ode aos pratos regionais brasileiros. Com sabor de Minas Gerais, o menu exibe costelinha suína com canjiquinha e ora-pro-nóbis – hortaliça ícone da cozinha mineira, pouco difundida pelo Brasil. Na barraca da dona Keiko Ono, na Ceasa, Cabral vai aos sábados atrás da planta. A ora-pro-nóbis também é utilizada na elaboração do galeto desossado, retirado dos receituários sulistas. “As folhas são salteadas com espinafre e escarola”, explica.
Em outra caminhada pela feira, ele procura sua fornecedora de rapadura. Pequenos tijolos do produto vão para a sacola e, no restaurante, são utilizados na caipirinha e, também, em dobradinha com o cafezinho, na hora da conta.
Desbravar o cerrado é uma das aptidões de Simon Lau, dinamarquês que escolheu Brasília como morada. Reavivar a quase extinta baunilha nativa lhe rendeu destaque na mídia nacional e reconhecimento de profissionais da área, como Alex Atala – que há pouco mais de três anos, no festival gastronômico em Pirenópolis, disse que precisava se ajoelhar aos pés de Lau em agradecimento.
Mas os atributos do chef, do extinto Aquavit, vão além do percurso dos Bandeirantes. Suas invencionices unem alta gastronomia com produtos que brotam no solo árido do Planalto Central. Antes de ir às compras, Simon, que está prestes a abrir uma nova casa na capital, entra em contato com duas fiéis fornecedoras, Alice Moreira e dona Maurenice da Costa.
Encomendas feitas e pé na estrada, em direção a Alexânia, município do estado de Goiás, a 70 km de Brasília. Às margens da BR-060, na casa de carne Só Porco, o chef recebe os pacotes com os cortes suínos reservados. A produção é de um veterinário local, que insiste em se manter no anonimato. “A diferença dessas carnes para as outras do mercado é a alimentação do animal à base de milho”, acredita a vendedora Alice.
Poucos passos dali, numa pequena barraca azul, uma mesa com pratos de ferro esmaltados apinham milhares de cajuzinhos-do-mato. “Hoje, são mais conhecidos como cajuzinhos-do- cerrado, porque esse bioma está na moda”, conta Simon. Dona Maurenice é catadora de frutos nativos há dois anos. Ela se embrenha na mata e recolhe caju, mangaba, mexerica-cravo e cajá-manga e, lá no cerradão, recebe a chamada telefônica de Simon perguntando o que tem de mais fresco.
Os carros param na beira da estrada e rapidamente os pratinhos são esvaziados. “Cliente fixo mesmo, só o Simon”, diz a catadora.
Grandes sacos com uma quantia incontável de pratinhos entram no porta-malas do chef: parte será usada prontamente e o restante será congelado para criações futuras. Quem sabe alguns desses estarão um dia desses em seu prato?