Era uma vez uma Brasília tranquila?
Especialistas em segurança pública analisam a situação do DF perante os últimos acontecimentos e concluem: a capital está violenta, mas isso não é de agora
Há um lamento na voz. Um pesar pela constatação de que a atual geração já não tem a mesma tranquilidade que acompanhava hábitos como poder brincar debaixo do bloco, com a tendência de piora para as próximas. “O que a gente nota é que as pessoas estão muito preocupadas e desacreditadas em uma mudança radical, que possa levar a um controle rígido da criminalidade”. A observação vem de Alcino de Almeida, porta-voz e presidente do Conselho Comunitário de Segurança de Brasília (Conseg), braço criado para intermediar as observações dos brasilienses junto aos membros governamentais, donos da missão de guardar a cidade.
“A percepção é preocupante. Por mais que as autoridades de segurança atuem e procurem agir, os crimes continuam acontecendo: é o sequestro relâmpago, o latrocínio, o assalto”, lista Alcino, em tom de inconformidade. A impressão que o também prefeito de superquadra e membro do Conselho Comunitário da Asa Norte relata não é errônea. Brasília é mais uma cidade a refletir a tendência nacional da violência urbana. A mudança no cenário aparece em crimes antes pouco próximos à realidade do Plano Piloto, mas que tem se elencado para lembrar a população o estado de insegurança vivido, sem exceção, em todas as regiões do Distrito Federal.
O jovem assassinado na frente de casa em Águas Claras e a professora sequestrada em um shopping na área central, e morta a poucos metros dali, no Parque da Cidade, somaram-se ao quadro de insegurança que se destaca no DF há alguns anos. A capital federal e suas 31 regiões administrativas vêm ultrapassando a média do país em número de homicídios dolosos (quando se tem a intenção de matar). São 31,37 casos a cada 100 mil habitantes, segundo o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp). Número 17,7% maior do que o cálculo do país como um todo. Com os resquícios da polêmica Operação Tartaruga, deflagrada pela Polícia Militar em outubro de 2013, a cidade, conhecida por seus traços de interior desenvolvido, se viu alarmada.
Mas, apesar da queda nos números de furtos de carros e homicídios de 2012 para o ano seguinte, janeiro deste ano assustou a população com 24 assassinatos a mais que o mesmo mês em 2013, totalizando 79 mortes. Recortados, porém, essas estatísticas não refletem uma realidade, alertam especialistas. “Não se pode dizer que aumentou a taxa de crimes violentos no DF. A gente tem que ver a criminalidade ao longo do ano”, pontua Arthur Maranhão, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB), para completar: “O que se sabe é que, no acumulado dos últimos 12 meses, as taxas continuam estáveis”.
Prestes a vivenciar novas eleições, Sandro Avelar não aposta em sua permanência na alta posição da Secretaria de Segurança (alguns apostam que ele será candidato a algum cargo eletivo). Afirma desejar a renovação para que novas políticas públicas continuem surgindo. Mas aponta um divisor de águas na segurança de Brasília, vinda da atual gestão: “O Ação pela Vida trouxe algo que não existia – a integração das forças policiais e a possibilidade de se controlar as metas que nós estamos buscando”, pontua. O programa, que tem a metodologia de trabalho conjunto entre Polícia Civil, Militar, Corpo de Bombeiros e Detran por áreas divididas do DF, segundo ele, vem trazendo resultados reais. “Com isso, a gente consegue controlar o desempenho dos batalhões da Polícia Militar e também as delegacias da Polícia Civil”, explica a lógica que acompanhou o recorde de apreensão de drogas na história da capital: 3,1 toneladas de entorpecentes em 2013.
A situação grave é um acumulado, segundo o secretário. Para ele, os problemas que o DF vive atualmente são resultado, principalmente, do crescimento desenfreado que a região sofreu nas últimas décadas. “Houve uma explosão demográfica sem inclusão social”, diz. E ressalta a linha em que o governo vem trabalhando: “Nós tentamos readequar o Distrito Federal à sua atual realidade”.
Entre as respostas às demandas estão a criação de 3.029 cargos de policiais civis, com previsão de estarem nas ruas junto com os outros seis mil homens até o fim de 2014; 835 câmaras de monitoramento em processo de instalação; e o equipamento das corporações com mais viaturas e rádios.
Ainda assim, segundo os especialistas ouvidos por Encontro Brasília, a discussão sobre a violência no Distrito Federal não pode ficar restrita a números. É preciso considerar a sensação de insegurança, que é crescente na população.
Brasília vive realmente uma onda de violência?
Eu não acho que seja um momento com casos de criminalidade maior do que no passado. As nossas taxas de crimes violentos permanecem altas e instáveis. Já as taxas de crime contra o patrimônio têm flutuado. Mas em termos de violência, estamos altos e estáveis como sempre estivemos. O que nós temos hoje é um aumento expressivo da sensação de insegurança, porque a questão não é só ter crime ou não ter. Isso é importante, claro, mas a intenção é o cidadão se sentir confortável e seguro para sair de casa, para as crianças brincarem na rua, para os pais ficarem tranquilos deixando seus filhos na escola, etc.
Essa sensação de insegurança se firmou de repente?
Uma série de fatores acabou aumentando, e muito, essa sensação. Primeiro, os episódios recentes de greve da polícia, seguida por uma cobertura da mídia que deu a impressão de que a população estava sem polícia nas ruas. Além da ausência de uma comunicação mais efetiva do governo sobre o tema. A Operação Tartaruga teve um efeito muito grande no aumento da sensação de insegurança. Mas não teve um efeito significativo na operação das taxas de crimes violentos. O que se destaca nos últimos 10 anos, de forma impressionante é a estabilidade das taxas em um patamar alto. É muito diferente das outras cidades no Brasil. Nas outras capitais essas taxas aumentaram radicalmente, como em algumas no Nordeste, e em outras, como no Sudeste – onde havia taxas mais altas que Brasília – diminuíram.
O que pode ser feito para controlar essa situação?
Políticas voltadas para prevenção de homicídios e de violências. Mas políticas efetivas, que não sejam só marketing, e que de fato sejam traduzidas em ações concretas e focadas. O que parece é que, de alguma maneira, as políticas públicas não têm agido sobre essas taxas e não tem tido efeito sobre elas. Mas, certamente, o que se verifica é que, em determinadas cidades brasileiras, algumas políticas, sejam elas efetivas ou preventivas, têm dado resultado.
Ex-agente de Segurança Pública da PMDF, professor doutor em análise e resolução de conflitos pela The George Washington University e consultor em segurança pública
Brasília vive realmente uma onda de violência?
Não é Brasília, é o país inteiro que vive uma onda de violência. Existe um incremento de violência no Brasil. Aumento que pode ter peculiaridades do DF. Nós temos um aumento de criminalidade pelo Brasil afora com um sistema prisional que dá mostras de exaustão. Ao mesmo tempo, existe um aumento dramático do nível de aumento na delinquência juvenil. E nós sabemos que Brasília é uma das regiões com melhor índice de desenvolvimento humano. A cidade, antigamente, era chamada de ilha da fantasia exatamente porque nesse mar da ilha não tinha nada. Mas hoje ela não é mais. Hoje é um arquipélago urbano com várias ilhas em volta, ilhas de exclusão social. Entre outras coisas, tem-se uma cidade de bom nível socioeconômico, inserida em uma criminalidade violenta. Então, há uma vítima bastante promissora. Existe uma tendência nacional com incidência no DF: ela está se sentindo insegura e existe uma situação de insegurança.
Essa sensação de insegurança se firmou de repente?
É uma situação que já estava instalada e, quando você fala no demônio, ele aparece. Eu acho que as pessoas ficam mais sensíveis a isso. Mas isso começa a se deteriorar quando a gente salta daquele número original de regiões administrativas de periferia. Existe uma recriação de Brasília 20 anos atrás. Ela é subitamente reconfigurada. Hoje, são 31 regiões administrativas, isso não chegava a uma dúzia antes. Foi o processo súbito e desordenado de urbanização da área que compõe a chamada região do entorno. E isso não parou. Nós temos comunidades ainda bastante instáveis em termos de urbanização. Faltam aparelhos básicos do Estado, como educação, saúde, moradia, transporte, o que faz dessas áreas de exclusão social produtoras de delinquência.
O que pode ser feito para controlar essa situação?
Na segurança pública, o que tem sido visto em outros países em crise, como parece que é o caso do nosso país nesse momento, é que não se toma soluções incrementais mais. É preciso uma política total, muito mais radical para se ter certeza de que ela surge efeito. Uma certeza intuitiva é que, se aumentar o número de policiais, de vagas no sistema prisional e de varas criminais, essa crise teria de responder a um estímulo. A solução do incremento policial é grosseira e óbvia. Nós não vamos mudar nem presídio nem justiça em seis meses, mas talvez a solução de insegurança possa ser parcialmente neutralizada com o súbito aumento no efetivo policial.
Pesquisadora em segurança pública e professora da Universidade Católica de Brasília
Brasília vive realmente uma onda de violência?
Não. Uma onda de violência é quando você tem um ponto fora da curva, algo que esteja totalmente fora dos padrões de Brasília, o que não é uma verdade. Temos um histórico em cada mês de janeiro todos os anos: há um aumento de ocorrências nesse período. É claro que, diante de um discurso da polícia, de um estado de greve, ou algo do tipo, há um aumento de percepção de insegurança. É como se tudo o que ocorresse fosse responsabilidade única daquele evento que está se anunciando. Mas a percepção de insegurança não necessariamente está relacionada ao aumento de violência real.
Essa sensação de insegurança se firmou de repente?
Isso vem se acumulando. Mas a gente não pode falar em aumento de insegurança, de aumento de taxas, porque eles não são homogêneos. Eles dizem respeito a dinâmicas particulares. É claro que os episódios individuais que ocorrem, como o de Águas Claras e como os que ocorrem todos os dias em Ceilândia, no Por do Sol, por exemplo, são afetivamente muito fortes. Sempre haverá um movimento de ampliar essas percepções a partir do momento em que um episódio concreto é provado tão forte e emblematicamente junto a nós, na nossa frente. Mas não podemos pegar esses casos e tirá-los como exemplo de um aumento da violência. De forma geral, o que se pode dizer sobre o DF é que ele sofre – e isso não é dessa administração nem é exclusivo de agora – com uma carência de uma política na área de segurança pública.
O que pode ser feito para controlar essa situação?
Não tem uma solução. Qualquer um que apresente fórmulas prontas, estando fora do fogo, estará em uma posição muito confortável. Agora, há algumas boas práticas que já sinalizam um caminho, entre elas a integração sistêmica das instituições de segurança e a continuidade que deve ser dada na transparência dos dados. Esse é um caminho que o DF já começou, mas que ainda não completou. As estatísticas têm de ser públicas. Esse é um ponto que eu cito como positivo da atual administração e que precisa ter continuidade e ser mais bem desenvolvido. Essas propostas precisam ser construídas de forma cooperativa e participativa, com participação tanto dos operadores, como também dos conselhos comunitários de segurança. Há programas de governo e há ações pontuais, mas não tem o direcionamento político. Isso é algo que o DF nunca viu. Tem uma questão mais estrutural que precisa ser analisada, como a necessidade na reforma das instituições de segurança do Distrito Federal.