Curumim modernista
Reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes artistas de Brasília, Francisco Galeno assimilou como ninguém o espírito modernista da cidade
A arte de Galeno é uma festa brasileira para os olhos. Ela esplende com a alegria de cores, o engenho e as texturas da cultura popular, recriada sob lentes modernistas. Não foi programado para ser artista, mas, sem saber, a arte lhe havia sido transmitida pelo sangue. Descende de uma família de artesãos piauienses da região do Delta do Parnaíba. O avô fabricava canoas, o pai é marceneiro e a mãe fazia renda em bilros. Mas, aos poucos, depois de se mudar para Brasília, como se fosse um quebra-cabeças lírico, as peças foram se encaixando.
O Parnaíba invadiu Brasília e Brasília atravessou o Parnaíba em um entramado que lembra a urdidura das rendas tecidas pela mãe ou os grafismos indígenas: as casinhas coloridas e os edifícios de curvas audaciosas de Niemeyer, as canoas e os carrinhos de lata de sardinha, os carretéis das costureiras e as pipas, a composição dos prédios das superquadras e os barracos dos candangos, os camaleões do Piauí e os calangos do Cerrado, as pipas e as fiações de luz dos postes, os casebres e a pirâmide do Teatro Nacional, as dunas de areia e os espaços brancos de silêncio da capital modernista. A pintura se desdobrou em esculturas, painéis, objetos, instalações, roupas e até desenhos para calçadas.
Nada indicava que ele se tornaria um dos mais importantes artistas de Brasília Em 1965, quando tinha 8 anos, Francisco Galeno chegou, no meio das nuvens de poeira, para morar no acampamento da construtora Silvisan, firma em que o pai trabalhava. Encontrou uma cidade espacial com prédios brancos de formas inusitadas que davam a impressão de proximidade, mas estavam sempre longe se tentava caminhar até eles: “Veja só a minha ignorância de menino do interior: eu pensei que era por causa disso que Brasília era uma cidade moderna”, lembra Galeno.
Em vez de jogar a sua experiência embaixo do tapete e copiar a última moda de Nova York ou Paris, Galeno se aprofundou na memória e na vivência de brasiliense da periferia: “Percebi que, para encontrar um caminho próprio, tinha de olhar para dentro de mim, recuperar a minha infância às margens do rio Parnaíba. Então, comecei a trabalhar com os carretéis que a minha mãe usava, com os anzóis do meu pai, com os carrinhos de lata que a gente fazia”.
O cineasta Vladimir Carvalho escreveu que Galeno escapou, espetacularmente, das estatísticas de mortalidade infantil que assolam o Nordeste. Mas, paradoxalmente, isso não significou uma infância triste. Ele cresceu feliz com os brinquedos e as brincadeiras de meninos pobres, mas ricos em invenção: “Tive a sorte de nascer às margens do rio Parnaíba. Nem sei como aprendi a nadar; caía no rio e me virava. Minha família organizava festas de bumba-meu-boi e reisado. A minha pintura tem essa alegria, esse desejo de felicidade do povo, da alma brasileira. É o lado bom do Brasil”.
A cor que se irradia com tanta vibração na obra de Galeno sempre apareceu espontaneamente e é expressão de sua infância batida de luminosidade, dunas, rio, oceano e festas populares: “A minha arte é calcada nos elementos do que vivi e manuseei nos tempos de menino. A rede a tarrafa, a canoa e a pipa ficaram gravadas em minha cabeça. Estou amarrado a isso. Tenho que mostrar a minha alma. Aquilo tem história, significado e peso de realidade”.
Galeno trabalhou durante 10 anos no setor de licitação para compra de materiais do Banco Central. Em 1986, ganhou o Prêmio do Salão Nacional de Artes, comprou uma casa e passou a se dedicar com exclusividade à verdadeira vocação. O aprendizado com a arte em Brasília se desenvolveu de maneira bastante autodidata. Para superar a timidez, ele ensaiou uma carreira no teatro com os diretores Hugo Rodas e Humberto Pedrancini. Chegou também a estudar flauta na Escola de Música e pintura no Centro de Criatividade da 508 Sul, com a professora Maria Pacca, nos tempos em que o espaço era dirigido pelo artista plástico Luiz Áquila.
Embora tenha assimilado as lições da arte construtivista de Athos, Valentim e Volpi, teve pouco contato com eles. Certa vez, apareceu no ateliê de Rubem Valentim e o intempestivo artista baiano o recebeu com sete pedras nas mãos: “Se for para falar do seu trabalho, pode ir embora”. No entanto, pouco tempo depois, Valentim era jurado e concedeu a Galeno o prêmio em um salão de artes: “Com Athos Bulcão, eu tive conversas silenciosas”, lembra Galeno: “Mas com quem eu mais conversava era com o mestre Quincas. O trabalho dele me mostrou que eu poderia explorar a vertente da arte popular. Eu frequentava muito o ateliê dele e ficava observando como trabalhava”.
O prestígio internacional veio depois que o Cerimonial da Presidência da República passou a adquirir os seus quadros para que os presidentes Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva presenteassem representantes de outros países com as suas gravuras. O presidente dos EUA, Barack Obama, foi a último a ser brindado com um quadro de Galeno.
Os destinos de Galeno e de Volpi se cruzariam em 2009 na igrejinha Nossa Senhora de Fátima. Galeno foi convidado a refazer, com a sua visão, uma parede pintada por Volpi, que um padre de poucas luzes apagou com uma demão de tinta. A versão do pintor piauiense não poderia deixar de incluir pipas, borboletas e uma Nossa Senhora com as cores quentes da cultura popular brasileira – o que provocou, à época, protestos das frequentadoras do templo.
Galeno construiu o seu caminho na contramão dos modismos e, ao mesmo tempo, atento às experimentações da arte contemporânea. A sua arte se desdobra em pintura, escultura, instalações e designer de roupas. Armado por esse olhar, quando as suas figuras saltaram dos quadros e ganharam a forma tridimensional das esculturas e dos objetos, conseguiu a proeza de aliar dois mundos aparentemente incompatíveis: a arte popular e a arte de vanguarda, a arte contemporânea e o artesanato. A arte conceitual de Galeno está enraizada em sua experiência e em seu êxtase de menino nascido e criado na região do Delta do Parnaíba piauiense.
Atualmente, Galeno vive dividido entre Parnaíba e Brasília. Decidiu voltar ao Piauí porque o artista precisa levar um choque para se renovar. Aprendeu isso lendo a história dos mestres da pintura. No auge da fama, Gauguin deixou Paris e se mandou para o Taiti: e foi lá que ele conseguiu realizar a sua melhor pintura. “As pessoas me perguntam o que eu vim fazer em Parnaíba e eu respondo: vim fazer mestrado e doutorado em minha vida. Não frequento o mundo virtual, não tenho computador. A felicidade, o conhecimento e a sabedoria estão redobrando. Antes, eu percebia a minha infância no Parnaíba como um passado e hoje estou vivendo dentro do sonho e vendo que ele é real.” E continua: “Vivo em uma cumplicidade total com o povo de lá. A gente fica rindo sem saber o porquê. Em Brasília ou em Parnaíba, estou em casa”.