As cotas, 10 anos depois
Decano da UnB fala sobre relatório de avaliação das cotas e o futuro da política de reserva de vagas da universidade que foi pioneira no sistema
A Universidade de Brasília foi a primeira instituição federal de ensino superior a aprovar cotas para minorias étnicas e raciais e a primeira universidade brasileira a aprovar cotas exclusivamente para negros. Mas o feito não foi sem polêmica. Entre questionamentos sobre a eficácia e necessidade de um sistema de cotas, a comunidade acadêmica abriu-se para o debate e obteve transformações.
Entre 2004 e 2013, 64.683 pessoas se inscreveram no vestibular pelo sistema de cotas. Foram homologados 34.679 candidatos, pouco mais da metade. Nesse período, 18,5% do total de formados ingressaram pelo sistema de cotas.
O decano de Ensino de Graduação da Universidade Mauro Rabelo é um dos atores dessa mudança num processo – ressalta ele – extremamente democrático. Presidente da comissão que avaliou os primeiros dez anos de funcionamento do sistema, ele fala em entrevista a Encontro Brasília sobre as conclusões do relatório, ressalvas à lei federal e as perspectivas do programa para a próxima década.
Quais as principais transformações ocorridas na comunidade acadêmica em razão da implantação do sistema de cotas?
O debate travado no seio da universidade em 2003 já representou, por si só, uma oportunidade de trazer para a comunidade interna e externa a discussão acerca das políticas de ação afirmativa e da necessidade de sermos protagonistas nessa questão. A UnB se transformou depois disso, pois passou a se preocupar com temáticas relativas à minoria indígena, buscando estratégias de acolhimento dos estudantes que aqui ingressaram por intermédio de convênio com a Funai [Fundação Nacional do Índio]. Começamos a conviver de perto com uma realidade cultural muito diferente da nossa e que nos levou, e ainda nos leva, a rever padrões tradicionalmente estabelecidos. Em relação aos negros, passamos por várias etapas, principalmente com relação à polêmica relativa à metodologia utilizada para a seleção dos estudantes. De certo modo, isso foi muito positivo, pois manteve a UnB sempre no foco do debate nacional sobre a política, mesmo quando a intenção era de colocá-la na berlinda. Aos poucos, a universidade foi se modificando, os cursos de alta demanda, que possuíam a esmagadora maioria de estudantes brancos, foram cada vez mais recebendo estudantes negros.
Dez anos é tempo suficiente para ter noção concreta dos resultados?
Não tenho dúvida. Todos os estudos que promovemos, as dissertações de mestrado e teses de doutorados desenvolvidas sobre o tema nesse período demonstram que em dez anos o avanço foi bastante significativo. Não haveria necessidade de mais dez para dizer que o programa deu certo. O que podemos concluir é que a precisamos de mais tempo para cumprir a política em sua integralidade.
Segundo o relatório de análise do sistema de cotas para negros da UnB, no início os estudantes que ingressaram via cotas tinham um desempenho inferior aos que ingressavam pelo sistema universal. Dois anos após a implantação do programa, essa diferença deixou de existir. O que esse resultado significa para políticas de ação afirmativa da universidade?
Uma primeira inferência que fazemos desses dados é que, ao vislumbrarem a oportunidade que a UnB tinha criado por intermédio das cotas, os estudantes passaram a se dedicar mais aos estudos antes mesmo do vestibular, durante o ensino médio. O reflexo disso veio dois anos depois da implantação do sistema. A melhora no desempenho pode ter sido uma atitude deliberada dos cotistas de valorização da oportunidade que tinha sido criada. Isso sinaliza a ação transformadora proporcionada por uma política de ação afirmativa, ou seja, é possível interferir positivamente na realidade, fazer correção de rumos, resgatar dívidas históricas. Enfim, é possível induzir ações para reduzir as desigualdades em nossa sociedade.
Que outros resultados foram averiguados por essa análise?
Chegamos à conclusão de que o índice de efetividade do sistema de cotas é de cerca de 70%. Isso significa que, de cada dez alunos que ingressaram pelo sistema de cotas, sete deles só conseguiram acesso por causa da reserva de vagas e os outros três tinham desempenho suficiente para ingressar pelo sistema universal. Em relação ao tipo de escola, os dados revelam que cerca de 50% dos estudantes negros que ingressaram na UnB cursaram a maior parte do ensino médio em escola pública e os outros 50%, em escola privada. Quando consideramos os que ingressaram via sistema universal, o percentual dos que fizeram o ensino médio em escolas privadas é superior a 60%. Outros dados interessantes da pesquisa são os relativos aos egressos. Enviamos um questionário por e-mail para alunos cotistas formados na UnB e 26% deles responderam. Mais da metade dos respondentes, 56%, declarou trabalhar no setor público, 42% disseram que estão fazendo curso de especialização, mestrado ou doutorado, 18% declararam ter uma renda mensal superior a R$ 5.500 por mês. Além disso, 66% disseram que se sentiram acolhidos pela comunidade acadêmica durante o curso, o que é uma sinalização muito positiva da postura da universidade com os estudantes cotistas.
no debate das políticas de ação
afirmativa. Contribuiu diretamente
para a aprovação da Lei Federal
das Cotas
A primeira delas foi, sem dúvida, a de que as cotas baixam o nível acadêmico das nossas universidades. Os dados da UnB e de diversas outras instituições que adotaram políticas dessa natureza derrubam esse mito. O segundo mito foi o da inconstitucionalidade do sistema de cotas, pois, supostamente, feria o princípio da igualdade. O nosso Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu definitivamente essa dúvida. Ouvimos também que as cotas iriam aprofundar o racismo dentro da universidade. Aliás, alguns ainda dizem que nossa sociedade não é racista. As cotas não criam o racismo, pois ele já existe. De fato, as cotas propiciam o debate sobre o tema. Outros repetiam ainda que não há possibilidade de distinguirmos quem é negro no Brasil, por conta da miscigenação. Somos de fato uma sociedade mestiça, no entanto, a cor, a etnia, a opção sexual dos indivíduos não deixam dúvidas para quem comete o ato perverso da discriminação. Havia também aqueles que defendiam que as cotas não deveriam ser instituídas porque o problema brasileiro é o da baixa qualidade de nossa escola básica. Não há dúvidas de que nossa educação básica está distante do ideal. No entanto, é preciso atacar os dois problemas concomitantemente.
É possível dizer que a comunidade da UnB hoje apoia, em sua maioria, o sistema de cotas? Houve mudança nessa opinião desde o início do programa?
A comunidade da UnB demonstrou que apoia o sistema e provou isso com o acolhimento dado aos estudantes cotistas. Tenho a convicção de que muitos mudaram de opinião à medida que os mitos foram sendo derrubados e, principalmente, quando o STF declarou a constitucionalidade do programa da UnB.
O relatório de análise do sistema de cotas da UnB diz ainda que a Lei Federal nº 12.711 significa um retrocesso para a política de inclusão étnica e racial quando comparada com o sistema de cotas específico da UnB. Qual seria esse retrocesso?
Inicialmente, o relatório considera que a forma com que os indígenas foram tratados na lei federal, como pertencentes ao grupo dos “pretos, pardos e indígenas (PPI)”, acaba excluindo esses estudantes do acesso à universidade. Outra crítica diz respeito à regra de migração de vagas presente nesse dispositivo legal. Por exemplo, as vagas reservadas para negros pobres que não forem preenchidas na seleção não serão ofertadas aos estudantes negros de escola pública com renda maior que 1,5 salário mínimo, mas aos brancos pobres. Além disso, a lei acabou criando e segmentando a comunidade negra em diversas categorias, o que nunca existiu no modelo proposto pela UnB. Acrescentamos também a preocupação com o entendimento da lei de que a concorrência como PPI se dá apenas por autodeclaração. A experiência da UnB com vários anos entrevistando candidatos inscritos no sistema de cotas mostra que uma quantidade significativa deles não tinha, de fato, direito à política e não poderia usufruir dela.
Qual será o futuro do sistema?
Vivemos neste momento uma situação de transição muito particular, ao ter que implantar a Lei Federal de Cotas e, simultaneamente, decidir se vamos manter algum sistema próprio de cotas étnicas e raciais, tal como fizemos até agora. A reserva de vagas prevista na Lei Federal já garante algo próximo a 28% das vagas para estudantes “pretos, pardos e indígenas” oriundos de escolas públicas, o que constitui percentual maior do que reservamos hoje na política própria da UnB, que é de 20%. No entanto, como nossa política está desatrelada da condição de renda e tipo de escola, levanta-se, naturalmente, a pergunta sobre a parcela de estudantes negros que não estudaram em escolas públicas e que não seriam mais contemplados pela lei federal. Temos deixado os indígenas de fora desses percentuais e acredito que vamos manter, no mínimo, a política implantada até agora com o convênio estabelecido com a Funai. Esse é o debate que se trava hoje na instituição e que será objeto de decisão de nosso Conselho no início de abril. Tenho a certeza de que será uma decisão madura, fruto do debate democrático amplamente promovido pela Administração Superior da universidade.
A UnB tem promovido audiências públicas sobre o tema. Que consequências o senhor acredita que tem um amplo debate para as cotas?
A universidade pública brasileira é uma instituição democrática por natureza. Decisões relevantes são tomadas por seus colegiados, compostos por representações de seus diversos segmentos. No caso do sistema de cotas, que tem consequências que afetam a comunidade interna e externa, mudam o perfil dos estudantes e transformam suas vidas para sempre, é fundamental se trabalhar a escuta, dando oportunidade ao debate amplo, para que a decisão seja tomada em bases sólidas, com participação ativa de todos os atores envolvidos.
Que grupos têm participado da discussão pública?
Na audiência pública de 21 de março, tivemos a participação efetiva de estudantes secundaristas, de estudantes da universidade e dos docentes. Foi um evento no qual todos que quiseram participar, que quiseram falar puderam dar suas contribuições. Cumpriu-se bem a função de catalisar as opiniões. Planaltina também terá uma audiência. Isso mostra como conseguimos capilarizar a discussão. Acho que precisamos ficar contentes que a decisão vai vir respaldada pelo sentimento da comunidade em geral, seja ela qual for. É uma grande aula de democracia.
Uma questão importante levantada no relatório foi a dos desligamentos de alunos. Os índices parecem altos para todos os discentes, tanto do sistema de cotas quanto do universal. O que pode ser feito para combatê-los?
Os índices de desligamentos e abandonos na UnB estão compatíveis com os encontrados nas demais instituições brasileiras de ensino superior. O que não significa que estamos satisfeitos com esses dados. O Decanato de Ensino de Graduação considera que esse é um dos grandes problemas da universidade e, por isso, instituiu a política de acolhimento para os discentes. Fizemos um estudo sobre os motivos que levaram ao desligamento dos estudantes da UnB nos últimos anos, analisamos os processos de reintegração, as justificativas apresentadas pelos alunos para o baixo desempenho e o percentual de sucesso dos estudantes reintegrados. Uma das conclusões do estudo foi a de que o desligamento ocorre com maior frequência no terceiro e no quarto períodos do curso, resultado do baixo desempenho no primeiro ano. Por isso, vamos ampliar as ações de acolhimento dos estudantes calouros, ajudando-os a superar dificuldades no início do curso.
Enfim, quais as lições aprendidas nos dez anos de implantação do sistema de cotas?
Foram muitas as lições aprendidas, porque enfrentamos grandes desafios. Derrubamos mitos, enfrentamos e vencemos ações judiciais. Sofremos críticas, nos defendemos e corrigimos rumos. A UnB avançou na construção de uma universidade inclusiva do ponto de vista étnico, racial e social. Foi protagonista e ocupou lugar de destaque no debate nacional sobre as políticas de ação afirmativa, contribuindo diretamente para a aprovação da Lei Federal das Cotas.
O senhor está otimista em relação ao futuro?
Eu vejo de forma bastante positiva. A história nessa década nos mostra que a universidade tomou uma decisão acertada quando criou o sistema. Hoje o contexto é outro com a lei federal, e a universidade, então, está madura para fazer o encaminhamento para a próxima década. O Conselho vai tomar a decisão sobre o futuro das cotas respaldada no entendimento da comunidade acadêmica sobre o que é melhor para a instituição e para a comunidade em geral.
Mauro Luiz Rabelo,54 anos, casado, duas filhas
ORIGEM
São João del-Rei (MG). Está em Brasília desde 1978, quando se mudou para cursar a graduação
na Universidade de Brasília (UnB)
Formação
Graduação (1980), mestrado (1982) e doutorado (1987) em matemática pela UnB. Professor visitante na universidade de Yale, em Connecticut, Estados Unidos, em 1988. Tem pós-doutorado
pela Universidade norte-americana de Stanford, na Califórnia, concluído em 1992
CARREIRA
É professor da UnB desde 1985. Atuou como tutor do Programa de Educação Tutorial (PET) de Matemática entre 2008 e 2012. Foi diretor-geral do Cespe de 2006 a 2008. Especialista nas áreas de geometria diferencial e avaliação educacional. Fez estudos sobre avaliação de sistemas e de programas como Enem, Enade e PAS, bem como avaliação de competências. Atuou também como parecerista e coordenador-adjunto na análise de livros didáticos de matemática do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)