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Consertando sonhos

Há mais de duas décadas, lojas do Plano Piloto fazem todo tipo de reparo nos "brinquedos de estimação" dos brasilienses

Paloma Oliveto - Publicação:18/06/2014 11:07Atualização:18/06/2014 11:49

A paciente deu entrada em estado grave. Chegou com uma estranha mancha amarela na testa, sem os dois braços e exibindo um profundo corte acima da perna esquerda. A junta médica, porém, garante que há salvação. Vide a outra enferma, tão baqueada ou até mais: nem cabeça tinha quando foi admitida no hospital. Agora, depois de muita sutura e um belo banho, está prestes a receber alta e voltar para os braços de sua dona.

Vítimas de brincadeira em excesso — principal doença que acomete essas espécies —, bonecas, ursos e carrinhos também podem precisar de uma cirurgia. Os mais queridos nunca são descartados e, mesmo quando perdem membros e olhos, quebram o pescoço, sofrem rasgos e são riscados de canetinha, muitas vezes podem ser recuperados. No Plano Piloto, duas tradicionais oficinas, localizadas na ponta de cada asa, há décadas operam milagres nesses amigos de pano, plástico e espuma.


Há 16 anos, Betânia Rodrigues conserta bonecas e outras peças: 'As pessoas trazem seus brinquedos de estimação' (Raimundo Sampaio/Encontro/D.A Press)
Há 16 anos, Betânia Rodrigues conserta bonecas e outras peças: "As pessoas trazem seus brinquedos de estimação"

A SOS Brinquedos já ocupou três diferentes endereços na mesma quadra, a CLN 313. Há mais de 25 anos, o administrador Carlos Emílio Helmer trocou o serviço público por sua verdadeira vocação: consertar todo tipo de brinquedo: de bonecas a pianos de madeira. Em novembro do ano passado, ele faleceu, mas deixou seus pacientes em boas mãos. A viúva de Carlos, Betânia Rodrigues Oliveira, e um dos filhos do casal, Pedro Arthur, de 15 anos, continuam firmes no ofício de dar vida nova aos brinquedos avariados.

Betânia, que há 16 anos sutura bonecas, conta que os preços mais atraentes dos brinquedos modernos e a grande variedade de produtos no mercado não afastaram os clientes. “As pessoas trazem seus brinquedos de estimação”, diz. Por mês, são cerca de 60 atendimentos — sem contar os carrinhos de bebê, outro serviço da SOS —, mas há temporadas em que o serviço dobra. “Depois do Dia das Crianças e do Natal, aumenta. As crianças vão brincar com os brinquedos novos e quebram”, conta Pedro Arthur, que cresceu vendo os pais montarem e desmontarem carros, bonecas e eletrônicos. De tanto observar, o jovem aprendeu e, hoje, auxilia a mãe e os dois funcionários da loja no “atendimento” aos brinquedos.

Pedro Arthur cresceu vendo os pais montando  e desmontando brinquedos: acabou  aprendendo o ofício (Raimundo Sampaio/Encontro/D.A Press)
Pedro Arthur cresceu vendo os pais montando
e desmontando brinquedos: acabou
aprendendo o ofício
Um dos pacientes do hospital, inclusive, é “filho” de Pedro. Trata-se de Cabuloso, um urso de pelúcia azul, cinco anos mais velho que o dono. “Era do meu irmão. Eu o tenho desde que me entendo por gente”, conta. O amigo inseparável já foi restaurado algumas vezes. De vez em quando, toma banho no pronto-socorro, que também higieniza os pacientes.

O preço alto de algumas marcas garante uma clientela fiel, diz Maria Aparecida Sobrinho, há duas décadas à frente do Hospital dos Brinquedos, na CLS 313. A loja da Asa Sul começou na W3 há 36 anos e depois se mudou para a quadra comercial. Nesse período, passaram pelas prateleiras muitas Amiguinhas, Susies, Bate-Palminhas, Tippies… Como elas, não se faz mais, garante Aparecida. “Já teve boneca aqui de 80 anos. Os brinquedos de hoje não valem nada, as de antigamente é que eram bonecas boas”, decreta.



Se, além de pouco durável, a peça custa caro, os pais não pensam duas vezes. “Eles não jogam fora. Trazem para consertar”, explica. Às vezes, o reparo também não sai barato e quase que o “paciente” fica para trás. “Mas aí as crianças choram e os pais voltam, pedindo para fazer o conserto”, conta Aparecida. E não são só os pequenos que se entristecem: “Uma vez, uma senhora de 91 anos trouxe um Meu Bebê, aí a filha pediu muito para dar um jeito nele porque a mãe estava muito triste”, relata a cirurgiã de bonecas avariadas. Depois de operado, o neném de plástico se recuperou, para a alegria da dona.

Maria Aparecida está há duas décadas à frente  de um hospital de brinquedos: 'Já teve boneca  aqui de 80 anos' (Minervino Júnior/Encontro/D.A Press)
Maria Aparecida está há duas décadas à frente
de um hospital de brinquedos: "Já teve boneca
aqui de 80 anos"
Também foi diante de uma cliente adulta que Betânia Rodrigues Oliveira, da SOS Brinquedos, presenciou uma das cenas mais inusitadas ocorridas na oficina. “Tem uma moça que traz o ursinho dela para lavar. Uma vez, ele chegou e o meu marido começou a abrir o brinquedo na frente dela. Ela começou a chorar e dizer: ‘Está matando meu boneco! Está maltratando o meu boneco!’”, recorda. Apesar de engraçada, a reação da cliente foi levada a sério. Graças ao episódio, nunca mais um paciente foi atendido na recepção. Na hora do banho ou da cirurgia, eles são encaminhados para o subsolo, longe dos olhos dos zelosos donos.

Tristeza é quando não há como remediar os estragos do uso ou do tempo. Nem todos os brinquedos são consertáveis. Noutro dia, uma jovem saiu chateada da SOS Brinquedos. Seu urso Ted foi desenganado por Betânia. “Ele estava sem nariz e com defeitos no comando”, diz. “Esse não tinham como sair da UTI e ‘veio a falecer’”, brinca Pedro. Mas a dona do ursinho não o abandonou. “Ela vai guardar. Ainda tem esperança de ele ressuscitar”, conta Betânia.

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