"Não saio de Brasília, nem ela de mim"
O ator brasiliense Rainer Cadete vive no Rio, mas mantém uma relação de afeto com a capital federal. Em entrevista a Encontro Brasília, ele recorda a difícil trajetória e fala sobre preconceito, fama e carreira
Em que momento resolveu se mudar para o Rio de Janeiro? Foi difícil o início por lá?
Sempre sonhei em ganhar o mundo, fazer filme, novela, morar em São Paulo, no Rio. Não queria ficar aqui em Brasília. Quando fiz 18 anos, eu falei: “Mãe, beijo! Tchau!”. No Rio, eu conheci a mãe do meu filho, a Preta (a atriz Aline Alves). Quando eu cheguei lá, eu e ela passamos muitas dificuldades. Moramos dentro de um carro! Logo, ela conseguiu uma vaga para ser bailarina do Domingão do Faustão, mas descobriu que estava grávida e não pôde assinar contrato. Eu cursava psicologia e fazia duas peças ao mesmo tempo. O Pietro nasceu. Minha história com a Aline durou seis anos. Acabamos de nos reencontrar no palco, para reviver essa jornada e compartilhar os erros e acertos com o público.
em Samambaia,
as pessoas
riam de mim.
E cá estou"
Foi muito gostoso trabalhar com ela. Mergulhamos na obra do Vinicius (de Moraes). Decidimos trazer a essência de seus textos para os dias de hoje. Tenho certeza de que a nossa história de amor também é a história de muita gente. Isso provoca uma identificação. Nem tudo no enredo foi real. Há uma boa dose de ficção. Mas o bacana foi justamente isto. Deixar para o público decidir o que foi ou não verdadeiro. No mais, celebrar nossa relação. Cheia de percalços, como todas, mas devidamente resolvida e vitoriosa.
Voltando ao Rio…
Comecei a estudar na Casa das Artes de Laranjeiras (tradicional espaço carioca de formação cênica). Estudei com o Cecil (Thiré), maravilhoso. Passei para o curso de atores da Globo e fui fazer teatro, filmes… Então, as coisas começaram a funcionar… Conheci muitos mestres importantes no caminho.
Como foi a trajetória nas novelas?
A primeira novela foi Caras e Bocas. Foi muito mágico. O Walcyr Carrasco me parabenizou, a Flávia Alessandra também. Emendei com Cama de Gato e fiz um filme chamado Cine Holliúdy. Depois, voltei para Brasília.
Por quê?
Tive apendicite, uns problemas de saúde. Depois de seis anos morando no Rio, vim cuidar da saúde. Meu filho estava aqui e eu queria criar laços com a cidade. O movimento cultural daqui é muito rico, é uma coisa que não tem lá. As pessoas daqui são muito criativas e apaixonadas. Daí veio o convite para fazer Amor à Vida. Achei o máximo e aceitei na hora.
E aí, tudo mudou…
Uma semana depois do convite, estava no Rio, na frente do Antônio Fagundes, do Mateus Solano e do Marcelo Anthony. Não sabia nada de direito até conhecer o Dr. Rafael. Acabei mergulhando nas leis, no mundo dele. E me dediquei ao máximo. Aí aconteceu uma primeira dança com a Linda (uma autista, interpretada por Bruna Linzmeyer), que alavancou o personagem. Com muito respeito e dedicação, e com o auxílio de uma psicóloga, fizemos aquele casal com todo cuidado. Eu sabia onde estava pisando, porque fiz um pouco de psicologia. Não terminei a faculdade, mas sabia o que era o autismo. Foi uma experiência muito interessante viver aquele casal.
Levantou uma série de questões relacionadas ao preconceito…
Eu tenho muito problema com preconceito e exclusão. Sempre lutei contra isso. Tanto é que a Preta (mãe do meu filho) é negra e as pessoas me perguntavam: “Por que você está com ela?”. Eu achava isso um absurdo. Adorei fazer parte dessa novela, que rompeu com o beijo gay, em um momento político em que discussões relativas á homofobia estavam tanto em pauta. Foi bom estar lá no meio, fazendo parte disso.
Com a visibilidade, aparecem o assédio, as fofocas, a falta de privacidade. Como lida com essas questões?
É tudo muito novo. Tento focar no que realmente me interessa: meu lado profissional. Eu sou ator, não sou celebridade. Não tenho interesse em divulgar minha vida pessoal para ninguém. A minha vida pessoal cabe a mim e à pessoa com quem estou vivendo. Controlar o que as pessoas irão falar e pensar é impossível, mas não me diz respeito. Talvez por eu ser mais discreto, o pessoal acaba inventando muita coisa. Fico imaginando qual será a próxima (risos). Cada hora me arranjam um caso, uma relação… Eu acabo me divertindo com isso tudo.
Não o incomoda, por exemplo, que as pessoas possam ir ao teatro para assistir ao conhecido ator Rainer Cadete, e não ao espetáculo?
Há tantas celebridades, de um mundo ao qual prefiro não pertencer, que não entendem o trabalho de ator, a história da arte, o fomento ao teatro. Meu foco é outro, bem diferente. Agora, se o fato de eu ter feito novela ou coisa parecida aumenta o público, acho ótimo. É a chance de apresentar a essas pessoas o teatro. Falar de coisas humanas, de nossas fragilidades. É a minha oportunidade de provocá-las, fazê-las pensar.
me permitiram alcançar muitas coisas,
com
as quais jamais sonhei
É o que a gente tem, né? Tudo anda tão virtual. Daqui a pouco, ninguém mais sai de casa. No palco, vemos as pessoas, cara a cara. Temos a possibilidade de sentir o espetáculo, de experimentar uma troca com a plateia, de fazermos algo juntos, coletivo. Por isso, valorizo muito quem investe no teatro e busca a formação de público.
Como é esse projeto cultural que conduz em Brasília?
É o segundo ano que fazemos um trabalho homenageando o centenário de alguém relevante, que faça parte da nossa história, que ocupa o imaginário do brasileiro. No ano passado, homenageamos o Nelson Rodrigues, com Dorotéia. Este ano, fizemos com Vinicius de Moraes. Mais uma vez, fomos a Samambaia, Taguatinga, Ceilândia... O projeto com Nelson Rodrigues foi dirigido por Sérgio Menezes, um diretor amigo do Rio. A ideia é criar um calendário cultural homenageando alguns centenários, aqui em Brasília. A capital federal fica meio excluída desse cenário, e gostaria de incluí-la. Estou muito feliz em ver que as coisas estão fluindo.
A preocupação social parece ser uma constante nos projetos que desenvolve em Brasília…
É a nossa capital. É a minha cidade. Eu zelo por isso. De não somente homenagear, divulgar e ressuscitar obras clássicas, mas também levar as artes cênicas até pessoas que nunca foram ao teatro. Todas as peças são gratuitas! É uma preocupação de inclusão. Algumas se emocionam, choram… As pessoas são muito carentes de arte. E se a arte não é necessidade básica, faz enorme diferença no cotidiano.
Carrega com orgulho a origem brasiliense?
Só tenho que agradecer a Deus por isso. Tenho muito carinho por esta cidade, inspiro-me muito aqui. Compus músicas em Brasília, desenvolvi-me como ator, produtor. Tenho raízes nesta cidade e essas raízes me permitiram alcançar muitas coisas, com as quais jamais sonhei.
Recentemente, você trabalhou com os Irmãos Guimarães, os mais celebrados diretores de Brasília. Como foi a experiência?
Eu queria trabalhar com eles desde o momento em que descobri que queria ser ator. Os “Guimas” trouxeram o único prêmio Shell de Brasília, imagina! Como minha formação foi atípica — nem na UnB, nem na Faculdade Dulcina de Moraes — eu “namorava” alguns nomes, mas de longe, porque não havia tido contato. Acompanhava alguns trabalhos, apreciava, escutava os amigos comentando. Foi bem especial poder contar com a experiência deles. Um privilégio.
Algum projeto engatilhado fora de Brasília?
Tenho dois convites para novela e um filme, para ser o protagonista. O filme chama-se Os Deuses da Guerra. É a história de um rapaz que tem a família assassinada e volta para se vingar. Faz poucos dias que eu recebi esse convite. Fiquei bem animado. Sobre as novelas, ainda não posso comentar.
Como se sente em relação às suas conquistas?
As superações na minha vida me ajudaram muito e eu acho que isso pode ajudar outras pessoas. “Não importa o que fizeram com você. Importa o que você faz com o que fizeram com você.” Gosto muito dessa frase do (filósofo e escritor francês Jean-Paul) Sartre. Quando eu dizia que queria ser ator, ainda em Samambaia, as pessoas riam de mim. E cá estou. Consegui o que eu queria. Hoje, perguntam qual é a receita de bolo, mas não tem! O segredo é a sua vontade de vencer.