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Cardápio na bagagem

Chefs contam como explorar mercados em viagens engrandece seus empreendimentos: dos conceitos aos ingredientes

Jéssica Germano - Redação Publicação:21/08/2014 10:00Atualização:21/08/2014 10:50

Shirley Soares trouxe especiarias da Turquia  em sua última viagem por lá: 'O Spicy Market  é a minha Disneylândia' (Raimundo Sampaio / Encontro / DA Press)
Shirley Soares trouxe especiarias da Turquia
em sua última viagem por lá: "O Spicy Market
é a minha Disneylândia"
“Quem tem boca vai a Roma.” O ditado mais conhecido a respeito de comunicação e fronteiras é bastante direto geograficamente, mas pode ser facilmente adaptado para o caminho até um mercado central na Turquia, à porta de uma cozinha diplomática no exterior ou a uma tenda de rua em pleno cerrado. Para os amantes das boas panelas, a aventura de explorar destinos reúne muito mais do que cartões de memória cheios de fotos ou check-in em pontos estratégicos. Entre técnicas e temperos descobertos em andanças, chefs da cidade falam da associação natural que fazem entre viajar e deixar fluir a inspiração, e contam como é trazer na mala muito mais do que suvenires. O resultado aparece nos menus dos restaurantes.

A temporada nos Estados Unidos tinha uma única intenção: aprender o idioma quase universal. No entanto, um encontro com o mordomo da residência oficial do embaixador brasileiro, logo na primeira semana em território americano, alterou definitivamente os planos de Alexandre Albanese. Conhecido por comandar as criações do charmoso Nossa Cozinha Bistrô e, nos últimos meses, da lojinha – misto de rotisserie e empório – chamada Sua Cozinha Take-Out, o chef transformou a viagem para estudar inglês em uma verdadeira experiência gastronômica de seis anos em Washington.

 (Raimundo Sampaio / Encontro / DA Press)
De personal chef da representação diplomática na capital norte-americana, o também empresário passou por lavagem de pratos até chegar ao cargo de sous chef (assistente direto do chef principal) em uma empresa de bufês. “Eu aprendi inglês express”, conta, bem-humorado, sobre o período em que teve contato com as clássicas receitas americanas, em especial as sobremesas, hoje destaques nas duas casas: cheesecakes, apple pies, fudge brownies e cinnamon rolls, conforme manda a confeitaria do Tio Sam. O sucesso na capital foi, então, crescente. Hoje, o restaurante funciona durante a tarde também, em estilo de café, servindo os produtos da loja vizinha.
 
O acaso deu a Albanese a oportunidade de estreitar os laços que já tinha com a culinária de outros países – inclusive, fez no Brasil o curso de chef internacional –, mas a estadia prolongada serviu para que ele fosse além. “Washington é uma capital, e é como Brasília: tem gente de todo canto do mundo”, diz. Para ele, uma característica que une pessoas lá fora é que os imigrantes interagem entre si. Com um círculo de amigos da Jamaica, França, Índia e Itália, a comida virou facilmente o vínculo das reuniões entre os estrangeiros e o que, naturalmente, inspirou boa parte dos pratos sugeridos na carta do bistrô da 402 Norte. “Não porque eu ache bonitinha a culinária de outros países, mas porque isso está na minha vida. Eu vivi isso”, enfatiza, com respaldo de pratos como o peixe ao curry, o risoto de gorgonzola, maçã e nozes, e as empanadas caribenhas.

Com carta branca para criar e mudar o cardápio como bem entender, no Nossa Cozinha o contato de Albanese com receitas e temperos diferentes ajuda a afinar os muitos conceitos que a casa recebe há três anos, desde a sua abertura: de comfort food a cozinha internacional. “Eu falo que é comida de mãe benfeita. Não necessariamente a brasileira”, brinca o chef.

Dos tradicionais acompanhamentos norte-americanos (a exemplo do molho barbecue e asas de frango apimentadas) a combinações de bolinho de pato e pastéis indianos, os cardápios produzidos por Shirley Soares nunca falam de apenas um lugar. “Coisas que geram prazer não precisam ter uma origem só”, acredita. Chef e consultora gastronômica do Three Burgers, que comanda ao lado do filho, Guilherme, a profissional nunca escondeu o fascínio por viagens e por desbravar novas combinações. Se elas forem gastronômicas, a troca por qualquer outlet multimarcas é rápida. “Essa aqui é a minha Disneylândia”, repete a descrição que fez para os amigos em rede social sobre o Spicy Market, meca de especiarias na Turquia, em sua última aventura.

'A culinária de outros países está na minha  vida. Eu vivi essa experiência', conta  Alexandre Albanese, mostrando um  exemplar do raro descascador de maçãs,  que trouxe dos EUA (Raimundo Sampaio / Encontro / DA Press)
"A culinária de outros países está na minha
vida. Eu vivi essa experiência", conta
Alexandre Albanese, mostrando um
exemplar do raro descascador de maçãs,
que trouxe dos EUA
À frente do gastropub Loca Como Tu  Madre, Renata Carvalho e Giovanna Maia  orgulham-se das referências argentinas no  cardápio: tudo começou com a busca de  um curso de culinária no país vizinho (Raimundo Sampaio / Encontro / DA Press)
À frente do gastropub Loca Como Tu
Madre, Renata Carvalho e Giovanna Maia
orgulham-se das referências argentinas no
cardápio: tudo começou com a busca de
um curso de culinária no país vizinho
Doutrinada, como gosta de dizer, a reconhecer e explorar temperos desde cedo pelo pai, Shirley viu a atração pela gastronomia crescer de forma natural e resultar num casamento perfeito com a rotina de viagens que já levava por trabalhar no segmento de moda. “E aí eu fui estudar”, resume a história para chegar ao primeiro curso de culinária que fez e teve a Inglaterra como pano de fundo. “Lá tem-se comida do mundo todo, com influência forte de toda a Ásia, da Índia, da Tailândia. Depois, eu viajei para esses lugares todos e foi realmente fascinante”, conta, ainda hoje entusiasmada.

Já atuante no mundo das cozinhas, o que mudou foi apenas o status das viagens, que passaram a ser “oficiais”. Com a rotina de planejar pelo menos uma grande viagem por ano, as referências multiétnicas que aparecem nas criações da hamburgueria gourmet são lembranças das jornadas. “Tudo no cardápio eu trouxe de fora”, afirma, mencionando de métodos de cocção a especiarias, como o sumak turco, que protagoniza os sabores da mais nova receita do Three Burgers, feita à base de cordeiro. “A técnica é meio básica para tudo. Agora, dar personalidade depende mais de percepção, de sensibilidade”, observa ela, ao citar o diferencial que acredita trazer na bagagem de volta para casa.

A liberdade de criar sobre receitas clássicas sempre esteve presente no Kojima, muito antes da chegada a Brasília, há cinco anos. Concebido no Recife há 17, o restaurante chefiado por Alexandre Faeirstein tem na cozinha japonesa contemporânea os seus principais destaques. “Eu procuro manter a tradição, porque sempre vai chegar alguém que vai querer comer um sashimi bem cortado com molho shoyu”, explica o chef. E acrescenta: “E vai ter o cara entusiasta que vai querer misturar tudo e conhecer a novidade”. É com respaldo dessa segunda parcela de clientes que Faeirstein alça voos, com base, especialmente, nas descobertas das últimas viagens. “Eu sempre procuro ver algo local, da região, para trazer ao restaurante”, relata Alexandre.

Com o hábito de, pelo menos uma vez por mês, sair da rotina da cozinha para conhecer novos destinos, o chef-empresário garante que as jornadas nunca seguem um método definido, apesar de o eixo sempre se voltar para os ícones gastronômicos. “Não tem jeito”, confessa. “Eu vou, olho, vejo um lugar interessante no meio da rua – que seja um boteco –, sento e fico”, descreve. E seja de forma bem parecida ao dos produtos e ingredientes encontrados no lugar visitado seja por meio de uma releitura, as inspirações sempre aparecem. Caso da farofa de shiitake feita com farinha uarini, conhecida na viagem mais marcante que fez: “Belém do Pará, o mercado Ver-o-Peso. Para mim, nada é igual àquilo lá.”

 

 

O chef não precisou ir muito longe, entretanto, para bolar um dos carros-chefes da casa. Em sua primeira ida à Chapada dos Veadeiros, Alexandre Faeirstein foi apresentado ao gergelico, biscoito salgado feito à base de gergelim, que descreve com sotaque pernambucano ainda forte. “Uma coisa que eu não conhecia e eles vendiam no meio da rua”, lembra, com entusiasmo guardado. “Eu comia lá, tomando cerveja, e achava aquilo uma boa sacada.” Hoje, aliado a uma pasta de salmão e pimenta, o Tartak de Gergelico é destaque nas entradas e orgulha o chef por ser exclusiva das unidades da Asa Sul e Águas Claras. “Até hoje, o pessoal do Kojima de Recife pede para eu levar e eu não levo”, conta, sem esconder a diversão com a disputa por sabores que criou.

O ceviche de atum com manga, melancia,  limão-da-pérsia, leite-de-tigre de goiaba e  crocante de coco é destaque no Taypá:  interação de fronteiras e topo do ranking  na categoria Melhor Cozinha do Mundo (Raimundo Sampaio / Encontro / DA Press)
O ceviche de atum com manga, melancia,
limão-da-pérsia, leite-de-tigre de goiaba e
crocante de coco é destaque no Taypá:
interação de fronteiras e topo do ranking
na categoria Melhor Cozinha do Mundo
“Acho que eu não seria a mesma pessoa sem ter ido morar na Argentina”, conclui Renata Carvalho, após falar alguns minutos sobre a experiência que teve com o intercâmbio de dois anos no país hermano. Responsável, ao lado de Giovanna Maia, pelo badalado Loca Como Tu Madre, a chef assume que a escolha do país como destino se deve ao fato de Buenos Aires ter um conceituado curso de culinária, área na qual ela gostaria de se especializar. O projeto foi bem-sucedido. Ao voltar para Brasília, as referências foram inevitáveis. “A forma como eles trabalham, a paixão que eles têm pela gastronomia... É tudo tão sincero que acabamos assimilando isso também”, declara.

Mesmo sem ter uma linha segmentada, a programação cultural, a cozinha e a ambientação do gastropub rapidamente entregam suas origens. “Nós adquirimos um elo, né?”, comenta Giovanna sobre a naturalidade com que as lembranças do país, no qual também viveu, aparecem. “Os passeios, a cidade e a música são a base para conhecermos e trazermos referências para cá.” Um exemplo é o Loca Loves Jazz, projeto semanal da casa em que o ritmo ganha espaço a noite toda, como acontecem em vários ambientes argentinos. Também nos cortes e preparo das carnes, passando pelo Fernet (licor amargo) com Coca-Cola, a cultura vizinha se faz presente. Resultado de um contato que as sócias procuram repetir constantemente. “É preciso”, afirma Renata Carvalho, a chef da casa. “Não tivemos como voltar a Buenos Aires, mas nem que seja a Pirenópolis, sempre que podemos, estamos indo”, salienta, para completar: “E quase todas as vezes eu elaboro alguma coisa para o cardápio quando volto”.

Aventura gastronômica: a meca de especiarias Spicy Market, na Turquia, é a lembrança mais recente da chef Shirley Soares (Raimundo Sampaio / Encontro / DA Press)
Aventura gastronômica: a meca de especiarias Spicy Market, na Turquia, é a lembrança mais recente da chef Shirley Soares
Eleito o melhor restaurante na categoria Cozinha do Mundo nas duas edições de Encontro Gastrô, o Taypá, liderado por Marco Espinoza, faz jus ao título.  “Nossa culinária tem muitas influências: japonesa, chinesa, árabe, espanhola”, diz o peruano. Nascido no país que encabeça o cardápio da casa, ele não desvincula, porém, o impacto que diferentes culturas têm nos pratos apresentados e, consequentemente, no seu sucesso. “Nós temos habitués, que frequentam o restaurante duas, três vezes por semana”, cita. Foi pensando em continuar oferecendo experiências válidas a essa clientela fiel que Espinoza manteve o hábito de renovar, a cada três meses, o cardápio do restaurante localizado na QI 17, no Lago Sul.

Para inspirar as mudanças, idas in loco a lugares novos estão na programação da equipe. “As investigações e os funcionários são parte dos investimentos. Para mim, que estou na cabeça da cozinha, é fundamental”, acredita o chef. A primeira experiência realizada nesses moldes teve o território brasileiro como destino e vai se estender no segundo semestre deste ano. “O Brasil tem uma variedade imensa de insumos”, diz Espinoza.

Com essa percepção, a mistura de sabores com a cozinha peruana acabou se tornando uma aposta certeira. Um ceviche de atum com manga, melancia, limão-da-pérsia, leite-de-tigre de goiaba e crocante de coco é um dos bons exemplos da interação entre fronteiras. “Cada cardápio novo será melhor que o anterior”, promete o peruano, já certo do potencial das viagens que virão.

Para Alexandre Albanese, a trajetória bem-sucedida do Nossa Cozinha Bistrô e a estreia de sucesso do Sua Cozinha já dizem bastante sobre a filosofia que a globalização tem impulsionado e ele segue. “É um investimento como pessoa, mas que reflete no Alexandre empresário”, conclui, satisfeito.

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