Quase psicólogos
O adestramento de cães mudou ao longo do tempo. Hoje, o profissional busca entender o comportamento do pet e de seus tutores. E só depois disso ensina os comandos essenciais
Tempos atrás, para ensinar os pets a andar ao lado do dono, fazer xixi no lugar certo ou não pular nas visitas, por exemplo, muita gente que se dizia adestradora lançava mão de crueldade. Uma experiência negativa com um treinador ainda na infância fez Lucas von Glehn Duty perceber que esse não poderia ser o tratamento correto. Ele tinha uma cadela, Belinha, muito medrosa. A família, então, contratou um adestrador para modificar esse comportamento. “Quando vi, ele estava arrastando minha cachorrinha pela rua. Não houve nenhuma análise do contexto. A Belinha piorou 300%. Muito por conta disso, comecei a estudar o assunto”, relata.
Lucas faz um alerta: de nada adianta o adestrador ensinar o cachorro se a família não treinar com o cão. “Quem tem de fazer é o dono. Instruções de comportamento não são como aspirina, que toma e passa na hora. Os tutores responsáveis precisam acompanhar o treinamento de seus cães”, afirma. Outra dica que ele dá é procurar ajuda especializada ainda antes de levar o animal para casa. Isso evita problemas futuros. “Infelizmente, só 1% das pessoas fazem isso. A maioria só contrata um adestrador depois de ter o iPhone comido”, diz.
A bancária Aline Evangelista Nóbrega pertence ao primeiro grupo. Antes de adquirir a labradora Nina, hoje com 2,4 anos, ela consultou a bióloga e adestradora Paula Emmert. A preocupação de Aline é que ela mora em um apartamento pequeno. “Desde os primeiros dias, a Paula ensinou a Nina a fazer xixi no lugar certo e a obedecer, como não pegar alguma coisa que não queremos que ela pegue. Não perdi um par de sapatos”, orgulha-se Aline.
A labradora teve aulas durante todo o primeiro ano de vida. Sempre com reforço positivo – em vez de broncas, é incentivada a ser obediente. Alguns adestradores, alerta Paula, ainda optam por métodos agressivos, o que, nem é preciso dizer, é algo totalmente desaconselhado. “Apesar de existirem técnicas mais modernas e amigáveis de adestramento, ainda hoje, infelizmente, alguns adestradores trabalham com uma metodologia baseada no uso de punições, de intimidação e de coerção”, lamenta.
De acordo com a bióloga, evitar ou corrigir comportamentos é uma das vantagens de adestrar o animal. “O adestramento, além de melhorar a convivência social entre cães e pessoas, o que lhes permite, por consequência, frequentar parques, vias públicas e até estabelecimentos comerciais, ajuda a prevenir ou solucionar problemas como ansiedade de separação, agressividade, medos e fobias diversas”, afirma.
Mesmo quando os pets não têm problema de comportamento, o ensino dos comandos básicos – aqui, senta, deita, fica, junto – traz benefícios para eles. “Esses comandos são importantes para trabalhar o corpo e a mente do cão, além de propiciar uma interação agradável com o dono. Esse é o chamado adestramento básico”, conta a também bióloga e adestradora Sofia Bethlem. Mas é importante não exagerar nos treinos, alerta. “Quando esses comandos são repetidos na mesma ordem e sem aumento de complexidade, isso se torna uma tortura para o cão e o dono”, observa.
Na casa da veterinária Ana Carolina Assunção Pragana, a técnica aplicada foi a do reforço positivo, mas com um objetivo bastante específico: transformar a golden retriever Summer, de 3 anos, em um cão de serviço. A avó de Ana Carolina estava ficando cega por causa da catarata e precisava de uma companheira de quatro patas para auxiliá-la em tarefas como acender a luz, pegar objetos que caíram no chão e entregá-los, além de afastar do chão obstáculos que poderiam fazê-la tropeçar. Antes, quem fazia tudo isso era Duda, uma vira-lata mestiça de cocker com poodle de 19 anos. Contudo, a idade avançada impediu o desempenho dessas funções.
O interessante, observa a veterinária, é que ninguém precisou ensinar Duda a fazer nada disso. Assim que a avó de Ana Carolina começou a desenvolver catarata, a vira-lata foi, por conta própria, assumindo o papel de ajudante. A única tarefa que aprendeu foi ligar os interruptores ao receber o comando “luz”. Assim que Duda deu sinais de que precisava se aposentar, Ana Carolina comprou Summer, que chegou do Rio de Janeiro com 60 dias.
Com dificuldades para encontrar especialistas no treinamento de cão de serviço, Ana Carolina e o irmão dela aprenderam as técnicas pela internet, principalmente em vídeos postados no Youtube. Rapidamente, Summer se qualificou para a nobre função de ajudante. Há um ano, a avó da veterinária fez uma cirurgia que devolveu sua visão. Nem por isso os treinos da golden retriever acabaram. “Agora, as necessidades são outras. Se ela vem correndo e bate na minha avó, pode derrubá-la. A Summer tem 30 kg”, observa Ana Carolina. Assim, a cachorrinha aprendeu que, se alguém está vindo em sua direção, ela deve parar e deitar.
Os comandos que Summer aprendeu fazem a alegria das crianças de orfanatos que Ana Carolina visita com a companheira, como parte de um projeto social. O maior sucesso é quando a golden se finge de morta. “Ela aprendeu tudo na brincadeira. O cachorro não encara como se o adestramento fosse uma aula, para ela, aquilo é brincar com o dono”, diz Ana Carolina. A veterinária lembra, porém, que, quando o objetivo é corrigir problemas de comportamento, o ideal é não tentar ensinar nada sozinho e buscar ajuda de um especialista. O adestrador Lucas von Glehn Duty concorda. De acordo com ele, ao tentar reproduzir técnicas comportamentais vistas na internet ou em programas de TV, o dono pode acabar prejudicando e traumatizando o pet.