O renascimento de Anny
Símbolo da discussão sobre maconha medicinal no Brasil, Anny Fischer conquistou na Justiça acesso ao tratamento com derivado da planta. Hoje, leva uma nova vida, graças à coragem da mãe, Katiele, que lutou pelo direito de ter alternativas
O quadro não estaria completo sem crianças para brincar. Júlia foi a primeira, há oito anos. Anny veio logo depois, hoje tem 6. As filhas planejadas pelo casal Katiele de Bortoli Fischer e Norberto Fischer já eram amadas quando ainda moravam só no pensamento. Anny tinha 45 dias de vida quando teve a primeira convulsão, no colo da mãe. Os pais viram a menina dar os primeiros passos, apesar das limitações físicas. No dia a dia, porém, viram o tempo correr ao contrário. Com quase 4 anos, Anny deixou de caminhar, ficou acamada e nunca pôde correr no gramado verde do quintal da casa nova.
Somente aos 4 anos, Anny teve diagnóstico, e os pais puderam dar nome àquela aflição: síndrome de Rett CDKL5, problema genético raro, causador de epilepsia grave, entre outros problemas, e sem cura. Eram entre 60 e 80 crises epilépticas por semana. Anny retrocedeu e viu desaparecerem habilidades conquistadas com fisioterapia e atenção da família, quando as crises se agravaram. “Ela perdeu tudo. Virou um recém-nascido outra vez. Sentia a vida dela se esvaindo entre os dedos, sem poder controlar”, lembra Katiele.
A última crise de Anny ocorreu em 3 de maio de 2014, época em que a Anvisa e a Receita Federal haviam barrado a entrada da encomenda de CBD. A família ficou 10 dias sem o medicamento, até conseguir retirá-lo. Ainda hoje, os Fischer esbarram na burocracia quando precisam renovar a permissão da Anvisa e preencher papeladas para comprar e retirar o medicamento. “A atitude das pessoas que ocupam cargos públicos precisa mudar, tem de haver mais comprometimento, senão o governo deixa de cumprir o seu papel, que é garantir a saúde pública”, diz Norberto Fischer.
Os últimos anos foram de batalhas intensas para toda a família, especialmente para Katiele, que tomou a frente da situação. A mãe capaz de brigar com a burocracia e de desafiar o Poder Legislativo transformou-se em símbolo da luta pela retirada do CBD da lista de substâncias proibidas pela Anvisa, passando a tratá-lo como controlado. O tabu sobre esse assunto, que não se relaciona com a legalização da droga, impede que se discuta o tema com seriedade e que milhares de pessoas – estima-se que 700 mil sofram de epilepsia refratária no Brasil – tenham mais qualidade de vida.
A história de Anny e Katiele foi parar no cinema. Primeiro, veio o curta-metragem Ilegal, dirigido pelo repórter Tarso Araújo, da revista Superinteressante. Ao escrever uma reportagem sobre maconha medicinal, o jornalista enxergou a possibilidade de expandir a discussão. Chegou a Katiele e a outras mães de crianças que usavam CBD, por meio da internet, e elas aceitaram contar suas histórias, ao lado de outros personagens. A imagem de Katiele sentada em frente ao Congresso Nacional, com Anny debilitada nos braços, de costas para o poder que tentava sensibilizar, rodou o país por meio desse vídeo.
Em outubro, Ilegal transformou-se em longa-metragem e teve exibição em salas de cinema nacionais. “Conhecíamos a história dela (Anny), sabíamos o que esperar, mas, quando nós chegamos, o remédio tinha acabado. Em uma cena do filme, sou eu quem dá a mão a Anny, no meio da crise, sem saber o que fazer. É importante mostrar essa realidade. Voltamos para São Paulo realizados por saber que estávamos trabalhando por algo tão bacana, mas arrasados por conhecer de perto a dificuldade que elas passam frequentemente”, relata um dos diretores do filme, Raphael Erichsen. Ele comemora a repercussão do longa. “As pessoas estão falando mais honestamente sobre maconha medicinal; 2014 será lembrado como o ano da maconha medicinal no Brasil, e essas mulheres (que fazem parte do filme), entre elas a Katiele, serão as primeiras a serem lembradas nessa luta”.
Antes do nascimento de Anny, Katiele trabalhava como paisagista. Nascida no Mato Grosso, filha de fazendeiros, ela conheceu o mineiro e funcionário público Norberto em Brasília, há 12 anos, por meio de uma amiga. O casal planejou a primeira gravidez durante quatro anos. Katiele sempre quis ser mãe de meninas. Os dois nunca haviam considerado a possibilidade de serem pais de uma criança com deficiência. “Fiz todos os cursos sobre maternidade, estudei sobre como educar filhos, sonhei com o futuro, mas nunca tinha pensado sobre ter filhos com problemas de saúde, era algo que parecia só acontecer na vida das outras pessoas”, lembra Katiele.
Quando Anny teve crises, o casal decidiu em consenso que Katiele deixaria a carreira para dedicar-se à filha. “Eu saía de casa para a obra e quando voltava ela estava na mesma posição. Sem acompanhamento, sem atenção, a Anny não se desenvolveria, por isso decidi me dedicar exclusivamente a ela”, explica Katiele. Como mãe de uma criança com necessidades especiais, Katiele aprendeu a ressignificar a vida. “Os pais têm tantas preocupações, se os filhos deles vão se dar bem na escola, se vão para Harvard. O que nós desejamos e valorizamos na Anny é tão diferente, nossas preocupações são se ela vai voltar a andar, se conseguiu sentar. Descobri que um segundo do olhar da minha filha vale muito”, diz. Nos piores dias, a criança não conseguia fixar os olhos nos de outra pessoa, a CDKL5 tem traços do espectro autista.
Entre noites maldormidas, brigas com a Anvisa e com a Receita Federal, idas à fisioterapia, à equoterapia (terapia com cavalos), a médicos, à escola de Júlia e tantos outros compromissos, Katiele mantém o bom humor e a positividade. Sua risada, assim como sua dor, ecoam em quem a escuta falar, sempre de coração aberto. “A Kati sempre foi uma menina muito ativa, de fazer e acontecer. Mesmo depois desse problema da Anny, não se vê desanimo. Ela é como um João bobo, batem e acham que vai cair, mas ela volta”, compara a irmã de Katiele, Cristiane de Bortoli. A postura de Katiele desperta admiração em toda a família. “Se a Kati não fosse tão para frente, Anny não estaria mais conosco. É uma força que vem de dentro, vem da coragem, do medo da morte, que era iminente a cada crise que a Anny tinha. Kati sempre foi feliz, alguém que todo mundo gosta de ficar perto, uma pessoa leve”, descreve a irmã.
A sensibilidade de Katiele também é ressaltada por quem a conheceu em meio a essa caminhada. “Ela é uma pessoa muito sensível. Essa é uma característica forte dela. Ela é chorona, mas muito alto-astral. É uma história muito pesada e difícil para ela, que permanece bem-humorada, parece uma criança”, diz a advogada Margarete Brito, mãe de Sofia, que também tem CDKL5, e que apresentou o CBD a Katiele. De acordo com Margarete, há apenas sete casos dessa síndrome no Brasil. Anny foi a terceira a ser diagnosticada. No mundo, estima-se a existência de apenas 200 pessoas acometidas pelo mal que atinge principalmente as meninas.
Depois do processo judicial dos Fischer, a Anvisa autorizou a importação para mais de 100 famílias. “Nossa vida virou de cabeça para baixo, mas vale a pena. Muitas pessoas descobriram uma nova possibilidade. Nós não poderíamos nos calar. Os resultados são gratificantes”, afirma Norberto. O processo, entretanto, continua burocrático. É necessário que um médico prescreva o CBD, para ter acesso à autorização da Anvisa. Os doutores, porém, não querem dar receita, por medo de perder o registro profissional, por se tratar de um derivado da maconha. É preciso também retirar o medicamento pessoalmente no aeroporto, pagar tributos e até um despachante.
Solidárias, a advogada e Katiele atendem dezenas de outras famílias de vários países, que as procuram por e-mail ou telefone, como referência no tratamento com CBD. Entre outras informações, elas ensinam a importar e a lidar com a papelada. Em outubro, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) autorizou, por meio de norma, os 119 mil médicos paulistas a receitar o CBD. O CFM estuda criar norma nacional para o uso desse medicamento.
O CBD não tem efeitos psicotrópicos, ele atua na área do cérebro responsável por emoções e comportamento. No Brasil, a Universidade de São Paulo (USP) é onde pesquisas avançam sobre o tema. Estudiosos comprovaram o efeito tranquilizante da substância. No futuro, cientistas esperam usar o CBD como alternativa com menos efeitos colaterais para o tratamento de esquizofrenia, síndrome do pânico e outros transtornos. Estudos recentes testaram positivamente os efeitos do CBD em pacientes com mal de Parkinson.
A brasiliense Camila Guedes foi uma das pessoas orientadas por Katiele. Ela perdeu o filho Gustavo, de 1 ano e 4 meses, que usava o CBD havia 10 dias. Camila foi a primeira a conseguir autorização da Anvisa para importar o remédio sem entrar na Justiça. Gustavo nasceu com a síndrome de Dravet, outra patologia rara e que tem a epilepsia como um dos sintomas. “Não sabemos se o CBD iria ajudar ou prolongar a vida dele, mas, independentemente disso, eu tinha direito a menos burocracia, meu filho também”, afirma.
Camila é uma das personagens do longa-metragem Ilegal. Conheceu Katiele graças ao curta que circulou na mídia. “Nós nos identificamos no primeiro momento. Ela é uma mulher incrível, forte, guerreira, corajosa e tem um amor enorme pela pequena Anny, um amor capaz de quase tudo para ver a filha bem. Eu tinha o mesmo sentimento pelo Gugu, e isso nos tornou bem próximas. O Gugu se foi, mas a luta continua pela Anny e por todas as outras famílias que sofrem com a epilepsia ou qualquer outra doença que possa ser amenizada pela maconha medicinal”, relata Camila.
Ao escolher o nome da filha mais nova, Katiele levou em consideração o pequeno sorriso que os lábios fazem ao dizê-lo. Decidiu chamá-la de Anny, por soar carinhoso. “Tenho a impressão de um sorriso se formar toda vez que alguém diz Anny. Tenta para você ver”, propõe a mãe. Hoje, Anny já consegue se sentar no balanço de madeira e aproveitar os dias de sol na piscina. A pergunta da irmã, Júlia, sobre saber-se amada, talvez nunca seja respondida, mas é fato que Anny se diverte e reconhece a própria identidade, sempre que alguém a chama pelo nome de apenas quatro letras. Vê-la renascer é um convite a sorrir.