A vida debaixo do bloco
Pesquisa mostra que os pilotis, considerados as grandes varandas do Plano Piloto, já não são tão usados quanto antigamente. Restrições de uso por parte dos condomínios transformam uma antiga área de convivência em local subaproveitado
A arquiteta Cristina de Oliveira, professora da Universidade de Brasília (UnB), é uma dessas pessoas. Ela olha com admiração para o projeto arquitetônico original dos prédios do Plano Piloto, em especial para os pilotis, estruturas que permitem a entrada da iluminação natural e o livre trânsito de pessoas (para ela, os cercamentos são agressões aos olhos e ao bom senso).
Descobriu-se que 37% dos edifícios instalaram cercas vivas, 54% têm jardins que atrapalham a circulação, 2% têm cercamento de arame, 27% usam grades, 11% têm paredes no meio do caminho e 31% mostraram outros tipos de empecilhos à passagem de pessoas. Há ainda presença de bicicletários (56% dos prédios) e salão de festa (42%), entre outras estruturas. Os pesquisadores constataram também a proibição de muitas atividades nos pilotis, que perante a lei são espaços públicos.
Investigou-se também o que é mais comum acontecer nos pilotis. Entre as respostas mais comuns estão os passeios com crianças pequenas, a circulação de frequentadores da superquadra, os namoros avançados (como descreveram os porteiros), mesmo que proibidos, as brigas de família, assim como os roubos e assaltos. Encontraram também bazares e até exposições de arte nos pilotis. A solidão dos mais velhos ameniza-se ali, ao descer para bater papo na portaria.
Descobriu-se a importância da figura do porteiro, muito além de vigilantes, esses se mostraram grandes amigos e protetores, queridos pelas crianças e outros moradores. “Concluímos que o espaço debaixo do bloco, assim como os espaços públicos abertos da cidade, sofre de um esvaziamento urbano. Entretanto, as muitas formas de apropriação encontradas, as diferentes formas de vigilância, as mais bem-intencionadas reformas servem para demonstrar o quanto esse espaço representa na vida dos brasilienses”, afirma Cristina.
O conceito de pilotis descreve um conjunto de pilares que elevam um edifício e deixam livre o térreo. A frieza técnica, porém, não é suficiente para descrever a importância dessa representação de espaço, na identidade brasiliense. “Para a população de Brasília o pilotis é o local que ‘criou’ seus filhos, que ‘vigiou’ seus namoros e que serviu de cenário para as primeiras transgressões da infância. Ele representa no cenário da cidade o espaço que se estende fora da residência, o espaço, como definido por Bachelar, onde encontramos os registros do tempo, o cenário de nossa memória”, complementa Cristina.
O levantamento não conclui se o espaço dos pilotis venceu ou fracassou, mas crava a incontestável importância dessa estrutura na vida dos brasilienses. Embora não se vejam tantas crianças debaixo do bloco como antigamente, ainda há quem valorize essa vivência. Em alguns casos é preciso brigar com o síndico ou com porteiros pelo direito de ocupar o espaço público. No dia a dia, não faltam exemplos.
Há quatro anos, quando os filhos da moradora da Asa Norte Adriana Magalhães eram pequenos, as babás da superquadra faziam piqueniques com as crianças na área externa dos prédios. A síndica proibiu o encontro. Ciente dos próprios direitos e da filosofia de Lucio Costa quando criou o projeto de Brasília, Adriana contestou as restrições e jamais deixou de brincar com Leonardo e Arthur debaixo do bloco. “Hoje, a realidade é outra e há poucas proibições. Os meninos descem todo dia para brincar e têm liberdade”, comemora Adriana. Ela promoveu a festa de aniversário da cadela de estimação debaixo do bloco. “Acho um barato fazer festa no espaço público. Reunimos vários cachorros em um sábado de manhã e ninguém reclamou”, relata.
No bloco onde moram as irmãs Letícia e Beatriz Wosiach, na Asa Norte, as crianças menores têm regalias. Podem andar de bicicleta e triciclo, por exemplo. Acima dos 13 anos, os jovens não ganham a mesma autorização e podem ser impedidos pelo síndico de pedalar no pilotis. “A alegação é de que os menores andam devagar e não causam acidentes. Temos algumas regras, mas que não atrapalham”, diz o pai das meninas, Luciano Wosiach. A quadra onde a família vive tem parquinho e churrasqueira na área pública.
Os pais de Tito foram criados no Plano Piloto e vivenciaram a liberdade de brincar nos pilotis. “Tenho amigos dessa época até hoje”, afirma Daniela. “Brincava sem qualquer supervisão dos pais, tinha uma turma grande de amigos. Era muito tranquilo”, lembra Zeca.Hoje, Tito aproveita o ambiente da quadra, sempre sob o olhar atento dos pais.
Na 307 Sul, a vizinhança se reúne e promove tardes culturais, onde as pessoas tocam violão, alugam brinquedos infláveis e promovem várias atividades de lazer. Morador da quadra desde a infância, Marcel Vieira já foi prefeito comunitário e guarda boas memórias dos tempos em que brincava debaixo do bloco. “O pilotis tem um ar de inocência, de namoro encostado na pilastra. Eu descia de manhã e só voltava à noite. Naquela época não tinha condomínio fechado, hoje as famílias estão procurando mais segurança nesse tipo de moradia. Quem ainda aposta nesse modelo da superquadra descobre que o potencial se mantém”, observa Marcel. Ainda que sejam novos tempos, é possível construir memórias valiosas no vão dos pilotis.