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O silêncio que divide

De um lado, o desejo de uma cidade imperturbável resguardada pela Lei do Silêncio. Do outro, artistas e empresários apoiados por quem reivindica acesso à vida cultural movimentada e pede revisão da norma

Leilane Menezes - Colunista Publicação:16/06/2015 14:57Atualização:23/06/2015 17:27

A cidade não é uma só. Duas Brasílias apartaram-se em contornos nítidos, mas simplórios para quem deseja entender a complexidade de viver em comunidade. Se a capital estivesse separada em grupos, em um deles estariam os que apoiam a Lei do Silêncio e reivindicam direito ao descanso e, no outro, os que consideram a regra ultrapassada e marginalizadora da música que vem dos bares próximos às residências. Chegar ao equilíbrio, motivar o diálogo e estabelecer convivência pacífica entre os diferentes projetos de cidade são o desafio do momento.

Neste mês, haverá discussões em audiências públicas sobre o projeto de Lei Distrital 445 de 2015, proposto pelo deputado Ricardo Vale (PT), que flexibiliza os limites de emissão de ruídos e estabelece novos métodos para a fiscalização. Casas noturnas da cidade têm sido tratadas como principais agentes de poluição sonora. O debate será acalorado, se seguir o tom das discussões nas redes sociais, onde não faltam ofensas de todas as partes. Músicos, donos de bares e frequentadores da noite brasiliense torcem pela renovação da lei, que permitiria emissão de 70 decibéis (hoje o máximo é de 55).

A nova proposta também prevê que o fiscal do Instituto Brasília Ambiental (Ibram) meça o ruído dentro da residência do reclamante. Conselhos comunitários compostos por síndicos e prefeitos de quadras do Plano Piloto repudiam a nova proposição e prometem lutar contra essa mudança, caso ela ocorra, na Justiça. A presidente do Conselho Comunitário da Asa Norte (CCAN), Maria das Graças Moreira, defende a manutenção da lei e considera a medição dentro da casa do reclamante como invasão de privacidade. “Já fui jovem. Quem é que não gosta de tomar uma cervejinha, sentar à mesa de bar, ir ao teatro, a festas? Nós não somos contra a música, contra a diversão. Somos contra a indisciplina de quem não obedece a limites, não respeita horários nem alvarás. Mudar a lei é ir na contramão de tudo que o mundo respeita como padrão, é perder direitos”, alega a presidente.

 

Gabriela Tunes, Juliana Lima e Fernanda Pacini: trio se  mobiliza a favor da classe artística, que se diz cerceada pela lei (Vinícius Santa Rosa/Encontro/D.A Press)
Gabriela Tunes, Juliana Lima e Fernanda Pacini: trio se
mobiliza a favor da classe artística, que se diz cerceada pela lei
O Balaio Café, na 201 Norte, tornou-se símbolo da batalha entre comerciantes e moradores. O bar e restaurante foi lacrado pelo Ibram três vezes e multado. A última autuação, em abril, foi de R$ 20 mil, valor máximo de multa previsto em lei para infração gravíssima, após a medição registar 61 decibéis. O bar reabriu depois de 22 dias, ao arrecadar mais de R$ 5 mil em financiamento coletivo em uma vaquinha na internet, mas sem atrações musicais. A ausência de som diminui 80% do movimento e do lucro. Os gastos com punições, obras e outros problemas chegam a R$ 200 mil. Em 2013, três moradores da 202 Norte abriram processo contra a dona do Balaio, Juliana Andrade, no Primeiro Juizado Especial Criminal de Brasília, com reclamações sobre barulho e a respeito do comportamento dos frequentadores do bar. “Alegaram na frente do juiz que o Balaio fica ‘cheio de pretos e gays, cheio de macumbeiros’. Uma pena isso não ter sido registrado na ata da audiência. Foi um processo muito difícil, chorei na frente do juiz. Vivemos uma perseguição muito pesada, que não tem a ver com o comércio ou barulho, mas com o que o Balaio se tornou, um território livre para a diversidade”, afirma Jul.

O processo terminou em acordo. Jul investiu em isolamento acústico e em diversas melhorias estruturais, na tentativa de se adequar à lei. Para isso, tomou um empréstimo de alto valor no banco. Como não existe termo de referência que oriente essa adaptação sonora, ainda assim teve as portas do Balaio fechadas, depois de novas reclamações. Os edifícios residenciais são afastados do bar. As principais queixas são a respeito do barulho que os frequentadores fazem quando vão ao estacionamento para retirar seus carros, quando conversam na rua depois do fechamento do Balaio e há relatos de sexo nos pilotis. “Nós não podemos impedir que as pessoas transem ou conversem, vai além da nossa responsabilidade. Nós somos alvo desse conservadorismo pesado que se espalha por todo o país. A lei, da maneira como é hoje, é impossível de ser respeitada, é uma lei antibar. Gostaríamos de dialogar com as pessoas que reclamam do barulho. Existem muitas alternativas para solucionarmos a situação, sem que danos tão graves sejam causados aos direitos culturais, trabalhistas e econômicos”, diz a empresária.

 

Pagul, a perturbadora  (Vinícius Santa Rosa/Encontro/D.A Press)
Pagul, a perturbadora
Juliana Andrade Lima é um nome sisudo demais para alguém como Jul Pagul. A moça de olhos prontos tanto para o amor quanto para o confronto tem presença de espírito. O apelido veio de um professor observador da semelhança do gênio da aluna com o de Pagu, escritora e militante política. Filha de mineiros católicos, Jul engravidou na adolescência e é mãe de João, de 15 anos. Aprendeu cedo a lidar com os olhares conservadores.
Vizinhos do prédio onde ela cresceu hoje travam a batalha pelo fechamento do Balaio. Feminista, incentivadora da arte, defensora dos direitos humanos, das religiões de matriz africana, acolhedora dos moradores de rua e de tantos outros marginalizados, Jul é destemida. “Se for para perturbar uma ordem conservadora, vou perturbar mesmo”, avisa.
Em uma das vezes que o bar foi interditado, o deputado federal Jean Wyllys lançaria ali um livro. O evento ocorreu na calçada. Quando o Ibram interditou o local, apoiadores promoveram festa do lado de fora como protesto. A Praça dos Prazeres, espaço em frente ao Balaio, é palco de carnavais compromissados com a diversidade de gênero. O Balaio tem apoiadores fiéis, pois é símbolo da liberdade de expressão das minorias, assunto mais polêmico do que a música que toca no bar.


Presidente do Conselho  Comunitário da Asa Norte, Maria das Graças Moreira, defende a lei: Somos contra a indisciplina  de quem não respeita limites (Raimundo Sampaio/Encontro/D.A Press)
Presidente do Conselho
Comunitário da Asa Norte,
Maria das Graças Moreira,
defende a lei:
Somos contra a indisciplina
de quem não respeita limites
O CCAN nega o cunho discriminatório das reclamações sobre o Balaio e evita personalizar o problema em um só local. O conselho, porém, nunca convidou oficialmente os empresários para as reuniões mensais. Representantes do movimento Quem Desligou o Som?, formado para defender a mudança da Lei do Silêncio e o respeito às manifestações artísticas, alegam ter sido mal recebidos ao tentar participar de um encontro em maio, no qual a presidente do Ibram estava presente e onde se discutiu, entre outros temas, a Lei do Silêncio. “Não queremos brigar nem temos segredos. Apoiamos a diversidade em nossas ações. O empresário faz parte da comunidade. O problema é que algumas dessas pessoas vêm com discurso violento de que todo mundo que não quer mudar a lei é velho, intolerante e deveria ir para o cemitério. Nós vamos lutar até a última instância e mostrar a essas pessoas o valor da experiência. Sou nascida na Ilha de Marajó, criada com leite de búfala e não vou me intimidar por essas ofensas”, rebate Maria das Graças.

Na área residencial da 408 Norte,  o pesquisador em acústica ambiental  Edson Benício mostra o decibelímetro  atingindo 56,1, mesmo um pouco  distante do bar: máximo permitido  seria 55
 (Vinícius Santa Rosa/Encontro/D.A Press)
Na área residencial da 408 Norte,
o pesquisador em acústica ambiental
Edson Benício mostra o decibelímetro
atingindo 56,1, mesmo um pouco
distante do bar: máximo permitido
seria 55
A convite de Encontro Brasília, o pesquisador em acústica ambiental Edson Benício, da Universidade Católica de Brasília (UCB), realizou a medição em decibéis em diversos pontos da cidade. Nenhum endereço visitado, nem mesmo os bares sem música mecânica ou ao vivo, conseguem respeitar os 55 decibéis recomendados. O aparelho que mede a intensidade sonora é popularmente chamado de decibelímetro. Na Rodoviária do Plano Piloto, às 19h, a medição registrou entre 76 e 86 decibéis. “São níveis acima do aconselhado até para áreas industriais, onde os trabalhadores devem usar equipamento de proteção”, explica Edson Benício. No Eixinho, na altura da 206 Sul próximo aos prédios, a intensidade no fim do dia foi de 65 decibéis. O som de um grupo pequeno de pessoas conversando chega a 70 decibéis facilmente.
Segundo a OMS, a poluição sonora a partir de 80 decibéis pode provocar, entre outros problemas, úlcera, excitação maníaco-depressiva e desequilíbrios psicológicos. “Não sou a favor de alterar o limite de decibéis, isso traria o caos e pioraria os conflitos já existentes. Mas com certeza a lei precisa ser revista. A medição precisa obedecer a um método claro, o fiscal deve medir o barulho de dentro da casa de quem reclamou e da fachada do prédio, o comerciante precisa receber um relatório em seguida. Atualmente, o comerciante fica exposto ao bom humor ou ao mau humor do fiscal”, avalia Benício.

Hoje, se o fiscal quiser encostar o decibelímetro em uma caixa de som, por exemplo, não terá sua metodologia questionada. Empresários autuados também reclamam de não ter acesso ao processo do Ibram. Eles são surpreendidos com a multa quando ela chega. “A Lei do Silêncio de 2008 foi aprovada a toque de caixa pela Câmara, no apagar das luzes”, critica Jul. O coro pela reformulação da lei é engrossado por artistas de vários setores. “Quando todo mundo é ilegal, pode-se escolher quem punir. O modo como os artistas têm sido tratados criminaliza a arte, trata música como poluição sonora”, lamenta a produtora cultural e integrante do Quem Desligou o Som? Fernanda Pacini.

Nem o bar mais tradicional de Brasília, o Beirute, escapa. Já recebeu autuações e, pelos critérios do Ibram, poderia ter sido fechado. Em uma véspera de feriado, no início da noite, com pouco movimento, o decibelímetro registrou entre 56 e 58 decibéis, próximo à fachada do bloco residencial mais próximo às mesas do bar, na 109 Sul. A unidade da Asa Norte do mesmo bar também já foi alvo de reclamações, que os donos conseguiram contornar. Há 27 anos no mesmo endereço, o Libanus, na 206 Sul, convive com os vizinhos. Para isso, as mesas ao ar livre só podem ser colocadas nos fins de semana. Ali, a medição realizada constatou entre 59 e 60 decibéis. Os donos decidiram expandir o negócio para Águas Claras, no Vitrine Shopping, uma área também residencial. Lá enfrentam a resistência dos vizinhos e precisaram investir um montante considerável em melhoramento acústico. “Aqui na Asa Sul fechamos rigorosamente à meia-noite durante a semana. Assim não temos problemas. Em Águas Claras, as pessoas reclamam muito mais. Tivemos de fechar tudo com vidros e toldos”, explica o gerente Carlos Henrique Martins.
Artistas protestam em frente ao prédio onde mora a mãe do governador do DF, Rodrigo Rollemberg, na 206 Sul: na campanha, ele disse que Brasília havia se tornado 'um cemitério cultural' (Claudio Reis/Esp.CB/D.A. Press)
Artistas protestam em frente ao prédio onde mora a mãe do governador do DF, Rodrigo Rollemberg, na 206 Sul: na campanha, ele disse que Brasília havia se tornado 'um cemitério cultural'


O Pinella, na 408 Norte, também já foi multado e autuado, em 2014. As donas investiram em soluções para diminuir o barulho. Substituíram uma caixa de som grande por três menores e contrataram um engenheiro acústico para pensar melhorias. Compraram placas com mais de 35 kg cada uma para estabelecer uma barreira sonora. No total, gastaram cerca de R$ 22 mil e ainda foram multadas pela segunda vez. “Ficamos 45 dias sem programação musical e contabilizamos prejuízos. Fizemos um acordo com o Ibram para seguir dentro da ordem e tentar não incomodar os vizinhos, mas continuamos com problemas nessa batalha que tentamos manter pacífica. O ruído vem dos carros, de pessoas na rua, mas só culpam o som, a música”, relata uma das sócias do Pinella, Marta Liuzzi. A medição feita pelo especialista ali também ultrapassou os 55 decibéis previstos pela lei.

Atualmente, por volta de 15 espaços em toda Região Administrativa I (RA 1), que compreende asas Norte e Sul, SIG, Parque da Cidade, Vila Planalto, Vila Telebrasília e Granja do Torto, têm alvará que autoriza música ao vivo, de acordo com a Administração de Brasília. Muitos estabelecimentos não resistiram às autuações do Ibram e fecharam as portas. A roda de samba e choro do Tartaruga Lanches, na Asa Norte, reunia alguns dos melhores músicos da cidade. A maioria dos vizinhos do bar não reclamava. Um morador em desacordo fez sucessivas reclamações e acabou com a festa. O Senhoritas Café, também na Asa Norte, com alvará para execução de música ao vivo, promovia shows de artistas de renome nacional, como Hamilton de Holanda. Hoje, funciona apenas como bistrô. “Não resistimos e encerramos as atividades culturais que movimentavam a cidade. Fiscais do Ibram levantam o bloco de multas como se fosse um troféu. Um deles me ameaçou: disse que se eu ligasse um radinho de pilha fecharia o meu negócio”, lamenta o dono do estabelecimento, Renato Fino.

O Café da Rua 8, um dos mais tradicionais da cidade, fechou as portas pelas mesmas razões. A lista de perda de espaços para a cultura brasiliense é longa. “Somos a favor de limites justos, não do toque de recolher. Bares são palcos importantes para músicos, para formação de público. Graças a essa lei absurda, talvez não tenhamos mais tantos talentos revelados aqui”, diz a musicista Gabriela Tunes.

A sugestão de aproveitar melhor o Setor de Diversão para concentrar bares é um dos caminhos apontados em discussões sobre o assunto, mas desagrada. “Temos direito à cidade. Querer isolar os músicos não vai resolver. Querem transformar as quadras em desertos, isso sim é perigoso. A música é uma forma bonita e eficiente de ocupar espaços”, avalia Gabriela.

'Placas de 'passo ponto'  se espalham pela cidade  e têm a ver com a  insustentável Lei do Silêncio',  acredita o presidente  da Abrasel-DF,  Rodrigo Freire (Raimundo Sampaio/Encontro/D.A Press)
'Placas de 'passo ponto'
se espalham pela cidade
e têm a ver com a
insustentável Lei do Silêncio',
acredita o presidente
da Abrasel-DF,
Rodrigo Freire
A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no DF (Abrasel-DF) participa do diálogo entre empresários, outros setores da sociedade e governo. Para a entidade, a lei em vigência inviabiliza qualquer atividade de bar ou restaurante, independente de ter música ao vivo ou não. “A situação para os comerciantes hoje é de total insegurança jurídica. Qualquer conversa no bar já ultrapassa os limites dessa lei. Ter um comércio movimentado na quadra traz mais segurança, e não problemas. Placas de ‘passo ponto’ se espalham pela cidade e têm a ver com a insustentável Lei do Silêncio. A nova lei proposta seria um passo rumo à solução”, explica o presidente da Abrasel-DF, Rodrigo Freire. Criou-se um grupo de trabalho, que inclui lideranças comunitárias, empresários, administrações regionais, Secretaria de Cultura, Secretaria de Turismo, a Abrasel e outros representantes, para chegar a soluções.

De janeiro a maio deste ano, o Ibram registrou 388 reclamações no DF. Em todo o ano passado, foram 736 queixas. O Plano Piloto foi a região com o maior número de denúncias (261 reclamações), seguido de Taguatinga (90 reclamações) e Águas Claras (57). No ano passado, o órgão de fiscalização emitiu 286 autos de infração, sendo 14 deles de interdições totais. Em 2015, os fiscais já aplicaram 155 autos de infração, com duas interdições completas.

A presidente do Ibram, Jane Maria Vilas Bôas, não quis dar entrevista e a assessoria não listou os tipos de comércios interditados. Sabe-se, entretanto, que a Lei do Silêncio tornou-se principal instrumento de ação contra bares. Embora a fiscalização seja feita por um órgão ambiental, música e festas tornaram-se o principal alvo. Em um vídeo “ressuscitado” nas redes sociais, o então candidato ao governo do DF Rodrigo Rollemberg, à época da campanha, afirma que “a Lei do Silêncio está levando o DF para a UTI cultural”. Em maio, agitadores culturais promoveram uma festa próximo à casa da mãe do governador, como forma de protesto pelo fechamento de bares. Encontro Brasília entrou em contato com a assessoria de imprensa do governador, mas não teve retorno.

 

 

 

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