Bom e conterrâneo
Nos últimos anos, observou-se um salto de qualidade do vinho nacional. A luta dos produtores, agora, é aumentar a confiança do brasileiro nos rótulos locais
A mudança foi gradual, com alguns produtores tomando iniciativas a partir dos anos 1970 e 1980. Um dos primeiros passos foi a produção de uvas próprias para vinhos finos, incentivada pela abertura do mercado brasileiro para importações. Com a oferta mais barata de bons vinhos de fora, a produção nacional precisou se aprimorar para manter fiel o escasso consumidor de vinhos no Brasil. O crescimento da classe média foi outro momento decisivo. Com maior poder aquisitivo, o brasileiro teve a oportunidade de consumir da carta de vinhos em restaurantes e incluir garrafas da bebida na lista de compras.
Além disso, o investimento externo e muitas consultorias de especialistas estrangeiros contribuíram de maneira contundente para essa transformação. Trazer o conhecimento milenar de outros países foi indispensável para aperfeiçoar o produto nacional. Com o uso de padrões e técnicas muito bem definidos e controlados, produtores brasileiros conseguiram atingir níveis inéditos de qualidade. Uma das vantagens do país na busca por melhores vinhos nacionais foi sua riqueza natural, que permitiu a produção de vinhos em diferentes terroirs, palavra que significa o conjunto de características físico-climáticas de uma região. No Brasil, foi possível encontrar terroirs muito similares àqueles originários da enologia, bem como outros inovadores, em que foram aproveitados atributos de zonas semiáridas para plantar uvas, por exemplo.
“Quando falamos de vinho brasileiro, podemos dizer que são muitos os sotaques”, descreve o presidente do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), Diego Bertolini. A Serra Gaúcha, no Nordeste do Rio Grande do Sul, é a principal região produtora, responsável por 80% do total de vinhos nacionais. Mas existem outras igualmente tradicionais, como a Campanha Gaúcha, na fronteira com o Uruguai, que tem crescido bastante. Quase 20% da produção de uvas para vinhos finos brasileiros vêm dessa região. As principais características da Campanha são os dias longos, com maior exposição à luminosidade para as plantas, a variação de temperatura entre o dia e a noite e o solo, rico em granito e calcário. Todas essas beneficiam o cultivo das videiras.
A Serra Gaúcha é conhecida desde os anos 1970 como uma das mais favoráveis à produção de vinho no Brasil. Suas condições são particularmente parecidas com as da região de Champagne, na França, melhor produtora de espumantes do mundo. Tanto que a tradicional marca francesa Moët & Chandon escolheu esse lugar para criar sua primeira produção de espumantes fora de Champagne e fundou a Chandon em 1973. “Nas serras do Rio Grande do Sul, as temperaturas mais frescas fazem com que as uvas mantenham um bom teor de acidez com uma concentração moderada de açúcar e que amadureçam lentamente, favorecendo a formação de aromas extremamente finos e delicados. Teor moderado em açúcar com boa acidez e aromas finos são os pilares da qualidade dos espumantes”, explica o enólogo da Chandon, Philippe Mével.
Um dos produtores da região, Benildo Perini, proprietário da marca Perini, é um exemplo da mudança engendrada. Em 1968, ele herdou dos pais uma vinícola com capacidade de armazenar 200 mil litros de vinho, à época a maior da cooperativa a qual era associado. Benildo, então, decidiu estudar novas técnicas e descobriu que o Brasil começava a cultivar uvas de castas europeias, como cabernet sauvignon, merlot, chardonnay. Com mudas trazidas da Itália, começou em 1971 a aprimorar a técnica. “Todos os que se empenharam desde aquela época em plantios de forma diferenciada evoluíram qualitativamente no produto final”, diz.
Vilmar Bettú, da Vinhos Bettú, também da região da Serra Gaúcha, lembra que a produção se iniciou logo com a chegada dos italianos à região, como foi o caso de sua família, instalada em Garibaldi desde 1886. Ele conta que a única bebida, fora a água disponível em abundância, era o vinho elaborado artesanalmente pelas famílias no porão da casa. “Todos os descendentes dos imigrantes italianos que habitaram a Serra Gaúcha elaboravam vinho. Aconteceu que, após sucessivos fracassos, a vitivinicultura da Serra Gaúcha acertou o passo e abriu caminho para os sonhadores”, explica.
Outra área com tradição em enologia é o Vale do São Francisco, espaço reconhecido pela alta fertilidade do solo localizado nos estados de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Com clima sempre seco e quente, a viticultura local se sustenta por meio de sistema de irrigação. Com isso, as plantas dão uvas o ano todo, diferentemente das regiões tradicionais, que produzem uma colheita anual. Nessas circunstâncias, a produção do Vale é predominantemente de uvas jovens, que darão vinhos frescos para consumo rápido. O alto índice de insolação produz uvas com elevado nível de açúcar e, consequentemente, vinhos bastante frutados.
Produtor à frente da Botticelli Vinhos, marca da região do Vale do São Francisco, José Gualberto de Freitas Almeida conta que a produção no local foi incentivada nos anos 1980 por empresas que procuravam terroir capaz de fazer vinhos jovens e frutados nos moldes do que vinha sendo elaborado na Califórnia com grande sucesso internacional. “A questão do pouco consumo de vinho em clima quente não faz sentido. Os vinhos produzidos no Vale são refrescantes, bons para serem consumidos entre 10o C e 20o C. Onde a cachaça, com alto teor alcoólico, é consumida, o vinho também pode ser”, diz.
Há ainda regiões mais novas que vêm crescendo, como a serra do sudeste do Rio Grande do Sul, onde multinacionais têm investido pesado. Regiões como Campo de Cima, na fronteira com Santa Catarina, bem como do planalto catarinense, ambas de maior altitude, produzem uvas que passam mais tempo no período de amadurecimento. Isso aumenta o grau de açúcar natural dos vinhos. Vinícolas também são encontradas, mas em menor número, no sul de Minas Gerais, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Espírito Santo, no Mato Grosso e em Goiás. “De maneira geral, a visão do mercado externo sobre a identidade do vinho brasileiro é a de que fazemos produtos frescos, frutados e de teor de álcool moderado. Vinhos jovens”, diz Diego Bertolini.
Ao passo que o mapa da viticultura do país se desenha, a cultura do consumo também se transforma. O maior poder de aquisição e o aumento das importações permitiram que o brasileiro conhecesse e apreciasse cada vez mais o vinho. Mesmo assim, para o presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de Brasília, Juan Verdésio, ainda falta à população daqui entender o vinho como alimento. Essa seria a principal razão para explicar a média de consumo per capita anual de vinho tão baixa no Brasil, se comparada com a média mundial e de outros países. Por aqui, são menos de 2,5 litros por pessoa por ano. Nos países com maior consumo, como Argentina, França e Itália, a média fica entre 30 e 60 litros per capita a cada ano.
“De pouco tempo para cá é que o brasileiro está descobrindo a beleza de curtir uma garrafa de vinho tinto, branco ou de espumante, de apreciar uma taça para abrir o apetite, harmonizar com a refeição, compartilhar em família e entre amigos”, diz Carlos Cabral, consultor de vinhos do Grupo Pão de Açúcar. Mas a maior transformação dos últimos anos, para especialistas, tem sido apresentar o vinho nacional ao brasileiro, fazê-lo confiar na qualidade do que é produzido aqui. Em parte, o receio do consumidor é causado pela falta de informação. A recente revolução qualitativa parece ainda não ter sido completamente assimilada pelo mercado consumidor.
Outro fator que pesa nessa relação, no entanto, é a carga tributária sobre o produto nacional. Por conta dos altos impostos, um bom produto importado acaba tendo melhor custo-benefício que o equivalente brasileiro. Os produtores e as associações são unânimes em ressaltar a necessidade de desafogar o setor para aumentar a competitividade do vinho feito no país. Segundo José Gualberto, da Botticelli, enquanto numa garrafa de vinho nacional os impostos chegam a representar 50% do valor final, essa proporção no resto do mundo não passa de 15%. Para o enólogo francês radicado no Brasil Grégoire Gaumont, quem mais sofre é o pequeno produtor, que não consegue oferecer preços competitivos na sua menor escala.
Representantes do setor veem com muito otimismo o potencial do produto nacional quando mais competitivo. Usam como exemplo o espumante. Produzido em larga escala no país desde os anos 1970, esse tipo de vinho chegou nas últimas décadas a padrões de excelência reconhecidos internacionalmente. Muitos rótulos brasileiros têm ganhado prêmios fora do país. Com isso, o custo-benefício do espumante brasileiro melhorou e o consumo no país tem crescido exponencialmente. No primeiro semestre de 2015, o aumento foi de 22% nas vendas de espumantes nacionais no Brasil, segundo a Ibravin.
O sucesso do espumante empolga os especialistas e produtores. “Digo com segurança que, seguindo esse caminho, seremos em 30 anos o país com o segundo melhor espumante do mundo”, diz Carlos Cabral. Para Juan Verdésio, depois de aperfeiçoar o vinho brasileiro à luz do que é feito há séculos lá fora, começa agora o movimento para encontrar a identidade do produto nacional. Representante da família por trás da marca Pizzato, localizada na Serra Gaúcha, Jane Pizzato conta que a produção na propriedade da empresa tem sido aperfeiçoada há décadas com o objetivo de encontrar a expressão máxima do microclima da região. “Não há mais como retroceder, quem se habitua ao vinho no dia a dia percebe seus benefícios e qualidade de vida. Nós continuamos a investir e crescer”, diz Jane.