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A cerca caiu

O lago Paranoá consta no projeto original da capital como ambiente de lazer, com a orla livre para diversão. Mas alguns lotes do Lago Sul e do Lago Norte impedem o acesso de pessoas ao espelho d%u2019água. Em ação simbólica, essa realidade agora está mudando

Tereza Rodrigues - Publicação:13/11/2015 17:12Atualização:13/11/2015 18:02
'Só acredito vendo', foi o que muitas pessoas disseram antes de começarem as ações de desobstrução da orla do lago Paranoá na QL 12 do Lago Sul, no dia 24 de agosto (Carlos Vieira/CB/DA Press)
"Só acredito vendo", foi o que muitas pessoas disseram antes de começarem as ações de desobstrução da orla do lago Paranoá na QL 12 do Lago Sul, no dia 24 de agosto
São Tomé, o apóstolo citado na Bíblia como  incrédulo, foi  convocado por diversos brasilienses ao longo do mês de agosto. Muitas pessoas diziam a famosa frase creditada a ele no Novo Testamento (“só acredito vendo”) para se referir às derrubadas de construções no Lago Sul, o mais nobre da capital, na ação de desobstrução da orla do lago Paranoá. Passados dois meses do início da operação, o que se percebe é que, apesar de ser considerado um marco, o que isso representa para a cidade, para a população  que  pretende  frequentar  a área, para o meio ambiente e para os moradores das regiões atingidas ainda traz questões mal respondidas.

Há muitas divergências de interesses e de informações repassadas tanto por moradores quanto pelo poder público, mas é fato que ainda não dá para saber quando aqueles espaços estarão completamente livres e abertos à população e que tipo de estrutura será erguida ali. A expectativa é de que sejam criados espaços seguros, iluminados, bem cuidados e protegidos, com pistas de caminhada e ciclovias. No entanto, a realidade é que, até o fechamento desta edição, nem a limpeza começou a ser feita e as áreas impactadas estão ainda cercadas, mais fechadas do que antes.
A promotora da Prodema, Luciana Bertini Leitão, satisfeita com a ação, diz que as pessoas nem acreditavam mais que a legislação seria cumprida, porque o Estado permitiu a ocupação indevida  (Raimundo Sampaio/Encontro/DA Press)
A promotora da Prodema, Luciana Bertini Leitão, satisfeita com a ação, diz que as pessoas nem acreditavam mais que a legislação seria cumprida, porque o Estado permitiu a ocupação indevida

Responsável pelo território, o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) alega que está elaborando um Plano de Recuperação da Área Degradada (PRAD) e que não é possível abrir para a população antes de saber que trechos poderão ser frequentados sem prejudicar a fauna e a flora. A presidente Jane Vilas Bôas diz que em breve qualquer cidadão terá acesso a uma das paisagens mais bonitas de Brasília. “Áreas de Preservação Permanente (APP) urbanas precisam  ter projetos com preocupações paisagísticas, são tecnicamente mais complexos que outros. Precisamos nos preocupar com o acesso das pessoas, mas também com as plantas e os animais que vivem lá”, explica.

Com metas para curto, médio e longo prazos, o PRAD deve ser apresentado até janeiro; tem uma matriz de sete eixos e 40 ações que estão sendo elabora- das por uma equipe que envolve 33 órgãos do governo, incluindo a Secretaria de Gestão do Território e Habitação (Segeth), uma das mais estratégicas do GDF. “Essa APP precisa guardar a qualidade do espelho d’água, porque muito em breve será feita captação de água do lago para abastecer a região Norte de Brasília”, diz, antes de completar: “Do ponto de vista econômico, a agregação de valor turístico é enorme. Nós vamos fazer a demarcação dessas áreas plantando na orla um colar de ipês-amarelos, que são a identidade da cidade”, planeja Jane.

No entanto, o discurso do governo de que a orla é para o povo tem desagradado quem considera que a educação ambiental deveria vir antes. No dia da primeira derrubada, Rodrigo Rollemberg declarou que atendia a um desejo antigo da população, que cobrava a democratização do acesso à orla. Com a justificativa de abrir mais acessos e unir o Pontão ao Parque da Península e ao Parque da Asa Delta, o governador baixou, em 21 de agosto, o Decreto 36.689, que aumenta em 30% a área do Parque Ecológico Península Sul. “Foi uma covardia ele fazer isso da noite para o dia, às vésperas do início da ação, sem consultar a população. Minha cerca, que deveria ser recuada em 30 metros, foi demarcada a 90 metros do lago. Não tenho nada de grama depois da piscina”, conta o arquiteto   Marcos Drumond,   presidente da Associação dos Moradores da QL 12. Segundo ele,  a vizinhança  aceitou  bem e acatou a retirada dos cercamentos na APP, pois estava habituada com o trânsito de visitantes na área conhecida como ponta do picolé, onde já existe uma ciclovia desde 1986. “Rollemberg milita na área de meio ambiente há anos, conhece muito bem tudo aqui, não era para ter uma atitude tão  antagônica.  Se o discurso do Judiciário é proteger a margem do lago, como o Executivo diz que vai abrir para o povo?”
'Vamos fazer a demarcação das APPs plantando um colar de ipês-amarelos, que são a identidade da cidade', planeja Jane Vilas Bôas, presidente do Ibram (Vinicius Santa Rosa/Encontro/DA Press)
"Vamos fazer a demarcação das APPs plantando um colar de ipês-amarelos, que são a identidade da cidade", planeja Jane Vilas Bôas, presidente do Ibram

Marcos Drumond defende que os moradores sempre zelaram pelo espaço e agora, nas mãos do poder público, o descaso tende a imperar, como acontece em outras áreas que já eram abertas e estão malcuidadas, dando o exemplo da QL 10, espaço conhecido como praia do cerrado. “A necessidade do GDF de criar dinheiro é tão imperativa que temos medo que seja verdade o boato de que o Parque da Península vai ser loteado e vendido, ou concedido, para empresas explorarem comercialmente. Essa área é muito cobiçada. Mas imagine ter seu quintal transformado em um bar, boate ou restaurante?”

O sociólogo e técnico em meio ambiente Guilherme Scartezini, coordenador do Movimento Amigos do Lago Paranoá, faz parte de um grupo de praticantes de esportes náuticos e diz que não acha contraditória a atitude do governo. “Homens e natureza podem conviver em harmonia em espaços como esse. O acesso só deve ser restrito em áreas mais sensíveis, e elas serão levantadas pelo Ibram. O que nós temos percebido nos últimos anos é o aumento  da privatização desordenada por parte dos moradores, que fecham as entradas para o lago dizendo que não têm sossego, pois as pessoas fazem barulho. Nossa luta é pelo uso público e sustentável do lago”, defende.
Shirley Nascimento e Alessandro Tavares Moreira aprovam a democratização do lago, mas reclamam da falta de comércio no Morro da Asa Delta (Tereza Rodrigues/Encontro)
Shirley Nascimento e Alessandro Tavares Moreira aprovam a democratização do lago, mas reclamam da falta de comércio no Morro da Asa Delta

Sossego é o que Marconi de Souza, presidente da Associação dos Amigos do Lago Paranoá de Brasília (Alapa), diz não ter desde que precisa justificar o tempo todo que sua residência é legalizada. “Não somos invasores, cercamos áreas públicas baseados em uma lei distrital (nº 1.519, de 1997) e agora estamos vendo uma destruição dos espaços verdes que sempre cuidamos tão bem.” Na  opinião do empresário, o  projeto urbanístico de Brasília não suporta a demanda de transformar bairros planejados para serem residenciais em áreas de lazer. “Estão falando muita mentira, querendo plateia com essas imagens, jogar o pobre contra o rico. O Rollemberg faz isso para dizer que está trabalhando. O grupinho da Marina Silva que está no governo se comporta como os verdadeiros donos  da cidade”, esbraveja.
Cliquei para acessar uma entrevista ex-clusiva com a Diretora da Agefis-DF, Bru-na Pinheiro (Raimundo Sampaio/Encontro/DA Press)
Cliquei para acessar uma entrevista ex-
clusiva com a Diretora da Agefis-DF, Bru-
na Pinheiro

As imagens geradas na primeira etapa da ação foram mesmo de impressionar. Quadras poliesportivas, quadras de areia, piscinas, píeres e garagens de barcos estão entre os bens privados que passaram a ser públicos. Com exceção de lotes pertencentes à União e a em- baixadas, que recebem tratamento diferenciado e mais lento na desobstrução da margem – mas que também farão parte do que o GDF chama de Orla Livre –, o que se viu foi mesmo o enfrentamento histórico. Para a promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (Prodema), Luciana Bertini Leitão, as pessoas não acreditavam que a legislação seria cumprida porque o processo é antigo (veja Linha do Tempo). “E também porque muita gente influente, tanto política quanto economicamente, mora lá. Além  disso, o Estado permitiu a ocupação indevida por longos anos”, diz.

A promotora diz que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) tem ido a campo e que ela faz questão de acompanhar de perto o trabalho do Ibram e da Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis), executora da ação.
O espelho d'água do lago Paranoá tem 48km² e a orla tem proximadamente 80km de extensão. O Ibram assegura que o Plano de Recuperação de Áreas Degradadas será apresentado até janeiro  (Rodrigo Nunes/Esp.CB/DA Press)
O espelho d'água do lago Paranoá tem 48km² e a orla tem proximadamente 80km de extensão. O Ibram assegura que o Plano de Recuperação de Áreas Degradadas será apresentado até janeiro

A estudante Shirley Nascimento, de 52 anos, foi ao Parque Vivencial Anfiteatro Natural do Lago Sul, mais conhecido como Morro da Asa Delta, no primeiro domingo  de outubro.  Acompanhada do filho, Alessandro Tavares Moreira, e de vários familiares que moram no Entorno, ela gostou de conhecer o local, mas não sabe se vai voltar enquanto não houver estrutura. O parque fica na QL 12/14 do Lago Sul e já era aberto à população desde 1998. “Seria melhor se tivesse tendas, comércio. Carregar comida e água não é muito bom, né? Mas acho ótimo saber que posso sair do apartamento neste calor e ter essa vista linda, esse tanto de água para me refrescar.”

O Instituto dos Arquitetos do Brasil no DF (IAB/DF) publica posicionamentos em seu  site. Há divergências  entre os integrantes, mas o presidente da instituição, Matheus Seco, as considera “saudáveis” e ele mesmo publicou carta de apoio à ação. “O IAB é apartidário, mas apoia ações que fazem parte de um compromisso que   nós  defendemos, que é a qualificação dos espaços públicos. Esta é uma batalha árdua, que vejo como construção de uma cidade para todos”, completa.
'Minha cerca, que deveria ser recuada em 30 metros, foi demarcada a 90 metros do lago', reclama o arquiteto Marcos Drumond, morador da QL 12 (Raimundo Sampaio/Encontro/DA Press)
"Minha cerca, que deveria ser recuada em 30 metros, foi demarcada a 90 metros do lago", reclama o arquiteto Marcos Drumond, morador da QL 12
 
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