Além da linha do equador
Brasília é cidade temporária para alguns e porto seguro para outros. As histórias que se seguem mostram o que a capital oferece a profissionais que têm carreira consolidada ou estão apenas começando a se destacar com trabalhos fora do país
Hoje, Gilberto Lacerda Santos é referência em tecnologias educativas e, além de ser professor na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), trabalha como consultor e assessor em vários projetos relaciona- dos ao tema, em diferentes partes do globo. Sua formação começou com a graduação em matemática e, pelo que se percebe, não vai terminar tão cedo. O gosto pelos estudos o levou a fazer mestrado em tecnologias na educação, com ênfase em inteligência artificial, pela Universidade Laval (Canadá). Nessa mesma instituição, fez doutorado em educação com foco em didática. Depois de seis anos fora, já pai de Ana Alice e de João Gabriel, voltou ao Brasil em 1995 e nos anos seguintes fez outro doutorado, desta vez em sociologia do conhecimento científico e tecnológico, na UnB; também realizou estudos de pós-doutorado na Espanha e no Canadá, onde voltou a estudar em 2014.
O currículo extenso não revela o gosto pelas coisas simples de Brasília, como uma ida ao tradicional Beirute da Asa Norte, o bar onde é conhecido por boa parte dos garçons. “Eu adoro morar aqui, é minha identidade. Tenho uma relação umbilical com a cidade porque vi tudo crescendo, se desenvolvendo. Sou da geração em que todo mundo se conhecia”, conta o professor.
Além das pesquisas, com expressiva produtividade acadêmica (hoje ele tem mais de 100 artigos publicados, 10 livros individuais e 13 organizados), Gilberto tornou-se conhecido pela capacidade de atuar em diversas frentes ao mesmo tempo. Atualmente ele é subsecretário de Educação Científica e Tecnológica da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Governo de Brasília; é gestor brasileiro do Consórcio Euromime, sediado na França, onde atua como professor e pesquisa- dor do Mestrado Europeu de Engenha- ria de Mídias para a Educação; e ainda coordena o projeto Pelos Caminhos de Darwin, que tem como objetivo a concepção e o desenvolvimento de um livro digital que retoma a viagem de Charles Darwin pela América do Sul, com foco em aspectos geográficos, hidrográficos, históricos e biológicos, o qual resume deforma simples: “A ideia é falar sobre o pensamento científico usando como exemplo a forma como foi elaborada a Teoria da Evolução das Espécies”.
O primeiro convite para trabalhar fora do país como consultor em um grande projeto veio em 1995, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco) solicitou que ele criasse um sistema de formação de professores. A implantação do projeto aconteceu na sede da entidade em Bangkok, na Tailândia, mas a rede envolvia diversos outros países, como Austrália, México, Marrocos, Índia e Paquistão. “Liderei a equipe que elaborou, concebeu e implantou o sistema, que está em funcionamento até hoje. Estou diretamente ligado ao projeto porque voltei algumas vezes para fazer avaliações”, diz.
Depois disso, ele passou a ser convidado a dar palestras, aulas e cursos no exterior com mais frequência. “Tenho uma relação muito profícua com a Universidade Laval, eles sempre me buscam para trabalhar com projetos esporádicos”, exemplifica. Segundo Gilberto, o reconhecimento profissional fora do Brasil geralmente é maior para quem tem uma formação como a dele, mas isso não o desanima de manter sua base de trabalho no país. “A relação profissional que cultivei na Comunidade Europeia, em órgãos como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a Unesco, e o fato de ser procurado por editoras internacionais para lançar livros são só a cereja do meu bolo. Por- que eu me sinto realizado aqui. Brasília me abre portas, me leva mundo afora”, declara.
A relação do fotógrafo João Paulo Barbosa com a cidade que vive desde o segundo ano de vida é também profícua. “Há 20 anos eu saio do Brasil todos os anos para trabalhar. Mas sempre volto.” Em Brasília, ele tem mulher, filho, amigos e inúmeros projetos. A cidade é, para esse “cidadão do mundo”, um porto seguro.
Diferentemente da família de Gilberto Lacerda Santos, a de João Paulo sempre gostou de viajar e de estudar vários idiomas – são diplomatas, artistas e professores que influenciaram suas escolhas desde menino. “Aos 10 anos eu já era viajante, moramos na França e conheci boa parte da Europa. Minha primeira câmera, eu ganhei em Paris. Meu pai me entregou no meio da rua e deu toda liberdade de sair registrando o que eu quisesse, sem pressão. Foi ótimo”, conta.
A partir daí, ele tomou gosto por viajar o mundo e ganhar dinheiro narrando e registrando suas impressões. Tanto que se tornou historiador e fotógrafo profissional. “Na época da faculdade eu percebi o quanto fazia diferença ter esta amplitude, porque eu cursava história e vivia a história na prática. Tive a sorte de viajar mais do que conseguia ler.” Cedo percebeu como história e fotografia têm tudo a ver: “É assim que eu consigo fazer um link da história do lugar, com a minha história e com meu modo de registrar. Amo o que faço”, resume.
Em 1997, a Embaixada da Grécia em Brasília encomendou um trabalho seu que acabou se tornando um livro. A imersão naquele país, registrando paisagens e costumes, deu a João a experiência que ele precisava para alçar novos voos. Nos anos seguintes, fez projetos parecidos no Equador e na Coreia do Sul. Não parou mais. Hoje ele tem uma rede de amigos, em cerca de 30 países, que sempre o demanda. “Em 2009 eu estava no Timor Leste e o (jornal britânico) The Guardian soube por uma amiga que eu estava lá. Pediram uma matéria, eu fiz e foi capa. As pessoas às vezes ligam, perguntam o que estou fazendo e se posso ir para o extremo oposto de onde estou. Eu sempre digo: ‘claro, estou disponível’. Às vezes saio de casa com uma coisa programada e durante a viagem os planos mudam completamente.” Com isso, João Paulo já publicou matérias (texto e foto) em vários jornais e revistas nacionais e internacionais, e realizou exposições fotográficas em pelo menos 15 países.
A arte de se adaptar, ou se reinventar, levou Christiane Brasileiro a adquirir diferentes profissões ao longo da vida. Brasiliense, ela se mudou para o interior de Minas Gerais aos 18 anos, quando se casou. Fez graduação em letras, deu aulas, trabalhou como tradutora e vivenciou diferentes experiências até chegar a Nova York, onde morou por 15 anos, fez cursos de gastronomia e trabalhou com eventos e como chef em vários restaurantes.
Em um dia de folga, em julho do ano passado, ela estava navegando na internet quando viu um vídeo de uma criança com epidermólise bolhosa (EB), uma doença que nunca tinha ouvido falar. A campanha pedia que pessoas que moravam nos Estados Unidos comprassem uma pomada que não é comercializada no Brasil, a Curefini, que ajuda na cicatrização de feridas. “Eu fiquei impactada, chocada. Fui conversar com uma amiga da qual estava on-line e ela também estava vendo. Choramos juntas”, conta Christiane. Esse foi o embrião de um projeto que preencheria sua vida e daria novos rumos à carreira nos meses seguintes, quando ela se tornou idealizadora e fundadora da SOS EB Kids, uma charity americana – espécie de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip).
Há cerca de um ano, ela voltou a morar em Brasília e, pela internet, coordena o projeto ao lado de mais de 20 amigas. Especialmente nos Estados Unidos, elas arrecadam doações e promovem eventos para angariar fundos e comprar pomadas, curativos, suplementos alimentares, luvas e roupas para as crianças brasileiras que têm a doença e foram cadastradas no programa.
Sua rede de contatos e o respeito adquirido entre os norte-americanos estão aliviando a dor de famílias que moram em diferentes regiões do Brasil e precisam conseguir medicamentos importados. “Esta é uma doença castigadora, cruel. Limita em aspectos físicos e financeiros”, relata Christiane. Por ser rara, a EB é uma doença cercada de mitos. É hereditária e não contagiosa, mas como ainda não tem cura e causa graves ferimentos na pele, ela gera medo, repulsa, muito preconceito.
Outro problema é a falta de conhecimento. Muitos médicos não sabem como tratá-la por nunca terem estudado a respeito. Por isso, um dos objetivos da SOS EB Kids é que a EB seja reportada no Sistema Único de Saúde (SUS), para assim começar a vislumbrar padrões de cuidado nos hospitais brasileiros. “Trabalhamos forte para levar informação, dar suporte emocional e promover a troca de experiências entre as famílias”, diz. No final de outubro, um grande passo foi dado com a realização de uma audiência pública na Câmara dos Deputados para debater o tema. Christiane está otimista: “Aos poucos, a EB vai se tornando uma causa da sociedade. E vamos conseguindo meios de aliviar os sofrimentos das famílias. É recompensador.”
Outros brasilienses que estão representando bem a cidade no exterior são os sócios Maurício Oliveira, Alex Cabral e Diogo Sampaio. Eles oferecem serviços integrados em um mercado de luxo (com compra e venda de imóveis, automóveis e aeronaves) que tem se aberto principal- mente em Miami, onde Alex morou entre 2013 e 2015. Maurício é analista de sistemas e cuida da produção de fotos e filmagens com drone em 360 graus. “É um serviço que não é novidade, mas temos uma demanda forte fora. Minha equipe já saiu de Brasília com passagens e hospedagens pagas para fazer o registro de apartamentos à venda em Miami Beach, por exemplo. É um diferencial grande para quem quer vender, porque as imagens ficam lindas, mostram tudo, inclusive a vista que se tem de cada janela. É sofisticado”, diz.
Nos últimos meses, o trabalho liderado por Maurício tem se somado à expertise de Alex e Diogo, que têm uma ampla rede de compradores de bens de alto padrão nos Estados Uni- dos. “Juntamos meu networking com clientes AA com o conhecimento em marketing imobiliário que o Alex adquiriu fora e a apresentação que o Maurício consegue produzir”, explica, animado, Diogo.
O volume de negócios ainda não é tão extenso neste primeiro ano de atuação, mas, de acordo com Alex, é animador, mesmo com a alta do dólar. “O nosso foco são os brasileiros que querem investir em patrimônio no exterior. Mas temos também contatos com gringos que trazem dinheiro para cá.” Brasília é, para eles, uma base estratégica: “É o hub do Brasil. Além disso, oferece qualidade de vida, é uma cidade linda. Sou apaixonado por Brasília”, declara Alex.
O fato de ser uma cidade planejada é outro ponto positivo, porque, na opinião dos sócios, facilita o trabalho deles até de forma indireta. Alex conta que o segundo apartamento que venderam foi para um brasiliense que nunca tinha ido aos Estados Unidos: “Mostramos antes um tour virtual de algumas regiões de lá, ele viu semelhanças com coisas bacanas daqui e de outras cidades também planejadas e fechou negócio já na primeira viagem.”
O encantamento pela cidade, suas curvas e seus espaços vazios inspira também o trabalho das arquitetas Renata Ciccarini e Vilmara Januzzi. Sócias desde 2003, as duas vieram de Minas Gerais e, cada vez mais, ganham espaço no mercado que respira a idolatria a Oscar Niemeyer. De Brasília, elas estão transpondo fronteiras.
No começo deste ano, Renata foi a Nova York com uma função desafiadora: decorar a casa de uma cliente que não sabia indicar marcas ou lojas fornecedoras de móveis e objetos de decoração que combinassem com seu gosto. As passagens foram compradas com um intervalo de tempo bem curto e havia ainda o desígnio de não gastar muito dinheiro nas compras. “Foi um superintensivo!”, conta a arquiteta, que recebeu o pedido de montar uma casa cujos móveis pudessem ser levados em qualquer mudança, já que o casal (um norte-americano e uma brasileira) é transferido de cidade com frequência.
“Morei no Japão por cinco anos, então conheci muita gente, fiz trabalhos bacanas lá, me acostumei com desafios na minha profissão. Mas este trabalho foi especial porque a relação com os vendedores nova-iorquinos foi muito diferente. Tínhamos pouco tempo para escolher, decidir. E lá a maioria das coisas é você mesmo que pega, leva, coloca no lugar. Carreguei muito móvel de um lado para o outro. Foi pesado, literalmente, mas foi gratificante”, recorda-se. Os frutos de se abrir ao novo, ao desconhecido e ao desafiador Renata e Vilmara esperam colher aqui mesmo, em Brasília, de onde pretendem expandir seus horizontes profissionais.