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DEZ PERGUNTAS PARA | JOSÉ CELSO MARTINEZ »

"A cultura enlatada americana domina os palcos no Brasil"

Testemunha de importantes fases do teatro brasileiro, Zé Celso trouxe para Brasília um espetáculo extremamente politizado e diz que o público vai rir ao compará-lo com o momento político que estamos vivendo

Karoline Diniz - Publicação:28/04/2016 13:54Atualização:10/05/2016 11:18
Vestido de vermelho e com um belo colar indígena, Zé Celso Martinez, um dos maiores atores e diretores do teatro brasileiro, conversa com Encontro Brasília para um papo sobre teatro, política, cultura e ditadura militar. Poucos dias antes de completar 79 anos de idade, ele justifica a cor da roupa em função da entrada em seu signo: áries. Mas, fez questão de se posicionar diante da atual situação política do país e classificou o momento como tentativa de golpe.

Preso e torturado pelo regime militar, o revolucionário e transgressor Zé Celso Martinez, demonstra o vigor de quem precisa sobreviver a uma batalha de 36 anos com o Grupo Sílvio Santos. Disputa essa, que ele considera culturalmente riquíssima, pois o tem inspirado em todos os espetáculos que montou para seu Teatro Oficina, considerado um símbolo de resistência cultural e um dos mais radicais e polêmicos palcos do Brasil. 

O pedido de impeachment, o acirramento dos ânimos entre a população, delações premiadas, escutas telefônicas e todo o enredo político despertaram no dramaturgo a vontade de remontar a peça Para Dar um Fim ao Juízo de Deus, de Antonin Artaud. A montagem chega à Brasília e fica em cartaz na Caixa Cultural entre os dias 14 a 24 de abril, sempre de quinta a domingo.
 
'O teatro está 'miserabilizado'. A cultura está com a fava no pescoço para entregar a arte e tudo virar dinheiro'  (Jennifer Glass/Divulgação)
"O teatro está 'miserabilizado'. A cultura está com a fava no pescoço para entregar a arte e tudo virar dinheiro"

Encontro: Você montou a peça Para Dar um Fim ao Juízo de Deus pela primeira vez em 1996 e foi um sucesso de público. Sobre o que é o espetáculo?

José Celso Martinez: A peça é uma adaptação de uma peça radiofônica de 1947, do Antonin Artaud. Ele passou um período no hospício e quando saiu escreveu essa peça. Na época, ele estava com câncer, então ele fala muito sobre o corpo e tudo que existe dentro dele. Esse texto é um passo além. Artaud acredita que nós, seres humanos, somos anarquistas coroados e diz que o coração do ser humano é o coração da pessoa que está ao seu lado. Porque quando inspiramos, trazemos todo o universo para dentro, depois quando expiramos a gente devolve um pouco de nós ao universo. Temos que nos conscientizar que nosso corpo faz parte dessa grande máquina do mundo. Com nosso corpo é que ficamos plugados no universo. Sendo assim, toda sociedade está conectada. Esse é um dos conceitos que ele tenta passar com essa peça.

E: Por que remontar esse espetáculo quase 20 anos depois de sua estreia?

ZC: Essa peça é como se você jogasse um ovo em uma água quente que imediatamente o cozinha. Jogar essa peça na atual situação política que vivemos vai fazer o público morrer de rir, porque é tudo que está acontecendo no país. O Artaud traz um ponto de vista que não é nem vermelho, nem amarelo. É como se fosse um ponto de vista para frente, de liberdade! É uma roda ampla de todos que querem a liberdade e não querem julgamentos. Nesse momento está sendo assassinada a política. Não tem quem negocie, a presidente Dilma que seria a negociadora está impedida de fazê-lo. Então, vivemos um estado policial que não leva em conta a situação social do Brasil. Tem uma cena em que o Artaud é julgado por um tribunal de juízes com a cara do Moro, Gilmar Mendes e Janot.

E: O que muda nos espetáculos que são montados para a estrutura do Teatro Oficina para as apresentações que saem em turnê pelo país?

ZC: A gente faz a montagem de acordo com o que o teatro nos permite explorar. Muda tudo. Há 23 anos eu trabalho no Teatro Oficina. Ele é renascentista. A gente destruiu todas as paredes laterais. Nosso espaço foi considerado o melhor e mais intenso teatro do mundo pelo The Observer, o jornal dominical do The Guardian, porque você tem contato com a terra, o subterrâneo, com os quatro cantos e tem um janelão de vidro que te permite ouvir a cidade, ver a lua, a chuva, o sol. Ele te dá uma dimensão cósmica, social e renascentista. É um corpo xamânico que tá trabalhando ali dentro. Na apresentação de Brasília, o dominante é o palco e a plateia. Então uma parte da peça fica no palco e erradia para os corredores e também para a plateia. O espaço tem que absorver o espetáculo. Fizemos uma apresentação da primeira montagem dessa peça no Sesc, em São Paulo, para 1,5 mil pessoas. Agora para Caixa, em Brasília, vamos fazer para 300 pessoas.

E: O senhor esteve em Brasília pela última vez em 2010 com o projeto Dionísiacas em Viagem. Tem um significado voltar à capital do país nesse momento político que vivemos?

ZC: Vamos chegar na cidade no momento em que a situação política do Brasil estará esquentando e essa é uma peça extremamente política. Volto à Brasília no momento da devoração absoluta dos canibais. O Artaud é um sujeito que faz a política dele, não essa política do gangster evangélico. Ele não acredita em Deus. Ele acredita nos deuses bichos, nos micróbios. Para ele, nós somos deuses e estamos nessa máquina do universo fazendo cada instante. Ele estudou todos os grandes políticos da história, é um profundo conhecedor da revolução francesa. Vivemos um dos momentos mais trágicos da política que dói a todos nós. Brasília merece assistir a essa peça e estou muito feliz em voltar, porque cada vez eu gosto mais da cidade, que é muito louca. Niemeyer se inspirou muito na mitologia egípcia. A beleza estética é demais, dá para identificar na arquitetura dele essa influência da cultura grega. A cidade é muito bela.

E: Quão complicado é fazer teatro e viver dessa arte?

ZC: Está cada vez mais difícil. Eu trabalho com teatro total: atores, músicos, instrumentistas, arquitetos, iluminação, figurino, administração e produção. Precisaríamos no mínimo de 3 milhões de reais para funcionar e produzir bem, e não é muito dinheiro quando se compara com outras produções. No Brasil, são produzidos musicais que custam 7 milhões de reais. Nós temos um apoio de 800 mil reais da Petrobrás, que é muito bem vindo, mas é pequeno. Somos 60 pessoas trabalhando na companhia. Estamos começando um projeto novo com a Mangueira, que está em fase de negociação. Eles querem implantar um teatro na comunidade. Vamos fazer uma apresentação aqui no Teatro Oficina, depois na própria comunidade e também na Bahia, mas com uma estrutura menor.
 
Cena da montagem 'Para Dar Fim ao Juízo de Deus' (Reprodução/Catraca)
Cena da montagem "Para Dar Fim ao Juízo de Deus"

E: Qual sua análise do momento político brasileiro?

ZC: Eu vivi na carne a ditadura militar. Fui torturado e exilado. Está claro para mim que essa situação que estamos vivendo é uma tentativa de golpe. Tinha um núcleo de pessoas naquela manifestação (se refere a manifestação do dia 13 de março na Avenida Paulista em São Paulo), que fazia propaganda da ditadura, divulgada pela BBC. Eles estavam expulsando os políticos de lá e consagrando a ditadura militar. Acho que vivemos um momento em que todos os políticos, inclusive os da oposição que tenham um mínimo de amor pela liberdade, devem se unir em uma frente ampla contra a ditadura militar. Porque todo o roteiro foi traçado pela mídia re-comemorando as datas do golpe.  Para se ter uma ideia, o dia 13 de março de 1964 foi o gatilho que iniciou o golpe contra o Jango, aconteceu aquele comício na Central Brasil, no Rio de Janeiro. Tinha operários, estudantes, artistas, classe média-baixa, frentes sindicais. Todos ali, empurrávamos o Jango para entrarmos numa época de reforma de base, que infelizmente não veio até hoje. Aquele governo foi abortado e nos pegou de surpresa. Agora não estamos sendo pegos de surpresa. Em 64 a bandeira era a caça aos comunistas, o João Goulart nem comunista era. Nem eu! Não sou “ista” de nada e acabou que todo mundo virou comunista. Agora é caça ao PT, caça aos petralhas, caça ao mal, à Dilma. Eles criam essa coisa de ter um bode expiatório para a situação do país. Sendo que os causadores dessa situação são aqueles que impediram, desde a posse, a Dilma de governar empurrando pautas inconstitucionais.

E: Qual a importância do teatro para a população em momentos como esse?

ZC: O teatro é importantíssimo. É um lugar aonde as pessoas podem se encontrar pessoalmente, se relacionar com outras pessoas que trazem uma energia, uma força vital nesse momento. Agora, por exemplo, percebo um movimento de muitos jovens frequentando o teatro.  O teatro é para todos e para todas as classes. O teatro é para atingir o ser humano que está diante do ator e criar a mágica através do teatro. O teatro é o ritual da tribo, é o ritual da cultura e quando o teatro está muito oprimido é muito difícil. E atualmente ele esta “miserabilizado”, sendo considerado um artesanato. A cultura está com a faca no pescoço para entregar a arte e virar tudo dinheiro. 

Zé Celso sobre Artaud: 'É como se fosse um ponto de vista para frente, de liberdade' (Jennifer Glass/Divulgação)
Zé Celso sobre Artaud: "É como se fosse um ponto de vista para frente, de liberdade"

E: Na década de 1960, o Brasil presenciou o nascimento de uma geração culturalmente muito rica, só para citar alguns exemplos, teve você com o Teatro Oficina; Chico Buarque, a Tropicália e Mutantes, na música; e Glauber Rocha no cinema. Você acha que o Brasil já viveu outra fase tão efervescente como aquela?

ZC: Foram acontecendo movimentos importantes nas gerações seguintes. Sempre continuou, não parou. Veio, por exemplo, a geração do ator Marcelo Drummond, dos cantores Marina, Lobão e Cazuza. À partir de 2008, começou essa crise econômica mundial e ao mesmo tempo nasceu uma coisa de recalque. O que domina os palcos no Brasil é essa cultura enlatada americana. Como aqueles musicais da Broadway que o Miguel Falabella trouxe para o Brasil. Ele dá um jeitinho faz piada em relação ao golpe e vende para a classe média alta que paga caro para assistir um espetáculo. Isso tomou conta totalitariamente do espaço comercial do teatro no Brasil. A mesma coisa está acontecendo com o cinema, as sessões de filmes nacionais passam às 15h, por exemplo. Os filmes brasileiros foram expulsos do cinema! Botaram os teatros dentro dos shopping centers. Então, o que acontece hoje em dia é que o país está burro. O país vive uma crise de burrice. As pessoas estão completamente despolitizadas no sentido Artudiano, não sabem nem de si.

E: O senhor destaca algum movimento ou artista contemporâneo que tenha te impressionado nos últimos anos?

ZC: Sim. Aqui em São Paulo temos um movimento cultural de teatro de rua muito importante. Inclusive, conquistamos uma luta contra a especulação imobiliária em São Paulo. O Juca Ferreira (ministro da Cultura) concedeu 22 tombamentos a todos os grupos de teatro que trabalham na rua, que é aonde acontece o verdadeiro teatro. Tem coisa muito boa ai. Eu destaco, por exemplo, Casa Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Espaço dos Satyros, Parlapatões, Teatro de Arena. Eles fazem teatro de verdade, não enxergam o teatro exclusivamente como mercado e sim como uma arte que chega às pessoas, mas não pensando o público como um mero pagador de bilhete e sim uma pessoa ligada a tudo. Percebo surgir um movimento muito grande na música. Temos recebido muitos shows no Oficina, Karina Bhur, Anelis Assumpção já passaram por lá. Agora Chico César está em cartaz com um espetáculo que ele ocupa o teatro todo. Sinto que na música tem uma reação, mas às vezes não chega até as pessoas, porque o mainstream também ocupa a cena. O cinema brasileiro vive uma fase ótima. Tantos filmes independentes surpreendentes sendo produzidos, mas infelizmente não conseguem espaços por causa dos blockbuster. Na minha geração, os grandes filmes brasileiros eram um sucesso.

E: Como está a questão do tombamento do Teatro Oficina?

ZC: Desde 1958, o teatro funciona no mesmo lugar. Há 36 anos eu tenho uma batalha com o Grupo Sílvio Santos que é um inimigo querido. Os terrenos em volta do teatro pertencem a ele, no início o Sílvio Santos queria comprar o Teatro Oficina, daí a opinião publica ficou em cima e ele recuou e desistiu de comprar. O teatro foi tombado em 2010, pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional), mas desde 1974, e depois mais fortemente ainda nos anos 80, nós começamos a quebrar as paredes todas para chegar a um teatro aberto, como temos hoje. Esse é o último lugar respirável no centro da cidade. Tem um bosque, um pomar que é maravilhoso. Daí o Sílvio fez a proposta para trocar o terreno com a União por outro terreno do mesmo valor em São Paulo. Encaminhamos a carta ao Ministério da Cultura, fizemos o acordo e agora não sei o que pode acontecer, pois o novo Plano Diretor de São Paulo foi aprovado e os especuladores estão fazendo pressão para entrar e com isso corre risco do Teatro Oficina ser derrubado.
 
Teatro Oficina funciona desde 1958, no mesmo lugar e se difere de qualquer teatro brasileiro (Reprodução/ Site)
Teatro Oficina funciona desde 1958, no mesmo lugar e se difere de qualquer teatro brasileiro
 
 
Biografia

Diretor, autor e ator. Destacado encenador da década de 1960, inquieto e irreverente, líder do Teatro Oficina, uma das companhias mais conectadas com o seu tempo. Encena espetáculos considerados antológicos, tais como Pequenos Burgueses; O Rei da Vela; e Na Selva das Cidades. Nos anos 1970, vivencia todas as experiências da contracultura, transformando-se em líder de uma comunidade teatral e das montagens de suas criações coletivas. Ressurge nos anos 1990, numa nova organização da companhia, propondo uma interação constante entre vida e teatro.

Recebeu mais de 20 prêmios, como melhor autor por A incubadeira, em 1958 (Festival de Teatro de Santos); melhor direção no Festival Latino-Americano por Os pequenos burgueses e Andorra (1965); Prêmio Shell de melhor direção por Ham-Let (1993); Mambembe de melhor ator em 1998 por Ela(Jean Genet); e Prêmio Shell de melhor autor e diretor por Cacilda! (1999).
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