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Além da vida

Ciência e religião tentam explicar o mistério que representa as experiências de quase-morte

Sara Campos - Publicação:25/05/2016 14:26Atualização:25/05/2016 14:48
'Para nós, apenas a ciência pode explicar e qualificar a experiência de quase-morte', diz a monja Cris E-Gen, sobre a interpretação budista (Zuleika de Souza/CB/DA Press)
"Para nós, apenas a ciência pode explicar e qualificar a experiência de quase-morte", diz a monja Cris E-Gen, sobre a interpretação budista
Após apresentar problemas respiratórios por muitos anos causados por uma sinusite crônica, o servidor público Jésus Vicente, de 62 anos, faria três procedimentos cirúrgicos por recomendações médicas: correção de desvio de septo e redução das secreções causadas pela doença nos seios da face aliadas a um procedimento um pouco mais complexo. Mesmo que tenha sido uma busca de melhoria na qualidade de vida, o dia 15 de dezembro de 2007 foi um grande divisor de águas na vida de Jésus.

A operação aconteceu em um sábado pela manhã, às 8h30. Com o início do processo anestésico, houve um relaxamento excessivo do corpo do paciente que pode ter sido causado por uma quantidade maior de anestesia. Isso gerou o fechamento de vias respiratórias. Para garantir a sobrevivência do paciente, a equipe médica iniciou os procedimentos de entubação. As tentativas fracassadas machucaram sua laringe, o que causou o inchaço da glote. Nesse momento conflituoso na mesa de cirurgia, ele passou pelo que acredita ser uma experiência de quase morte. “Eu saí de mim e assisti à cena dos médicos tentando me reanimar. Meu corpo se debatia igual ao de um animal lutando por vida. Tinha uma visão de toda a situação e estava em pé assistindo a tudo.”

Segundo Jésus, dois espíritos estavam ao lado dele conversando sobre a cena a que assistiam. Ao testemunhar sua possível morte, ele achou que não voltaria ao plano material. “A vida inteira passou como filme rápido pela minha cabeça. Minha maior preocupação não era com a minha morte, mas era saber como ficariam as pessoas que dependiam de mim”, ressalta o funcionário público, que na época passava por um problema com o pai debilitado, além da filha e do neto que precisavam de seu suporte financeiro. “Quando questionei os espíritos que me acompanhavam como espectadores daquela cena, eles me perguntaram se eu desejava voltar. Eu respondi que sim. Foi aí que o meu espírito voltou ao meu corpo”, conta Jésus.

Ao ser submetido a uma cirurgia, Jésus Vicente passou pelo que chama de experiência de quase-morte: 'Eu saí de mim e assisti à cena dos médicos tentando me reanimar' (Raimundo Sampaio/ Encontro/ DA Press)
Ao ser submetido a uma cirurgia, Jésus Vicente passou pelo que chama de experiência de quase-morte: "Eu saí de mim e assisti à cena dos médicos tentando me reanimar"
Isso aconteceu paralelamente a um momento decisivo para a vida do paciente: um dos membros da equipe médica realizou uma entubação diferente que fez com que ele voltasse a apresentar sinais vitais. Os procedimentos cirúrgicos foram concluídos e ele ficou em coma até a noite de domingo. Durante o tempo de internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), Jésus lembra-se de estar em uma espécie de salão ou auditório no que considera ser outro plano espiritual. “Estava escuro, mas sentia e conversava com pessoas que me ajudavam. Ouvia uma música ao fundo e estava sempre fazendo exercícios com notas musicais para recuperar minhas cordas vocais, que tinham sido danificadas”, relembra.

Ao despertar do coma, ele recebeu a visita da equipe médica que realizou a cirurgia. Durante o encontro, contou detalhes vividos durante o período em que lutava pela própria vida e isso surpreendeu os profissionais. “Eles se perguntaram como eu sabia de tudo aquilo, já que eu estava inconsciente. Como poderia estar por dentro de tantos detalhes?”, diz. A experiência de quase morte que marcou a trajetória de Jésus contribuiu para que ele transformasse sua forma de encarar a vida. “Antes, eu era uma pessoa mais agitada. Agora tenho mais serenidade para saber que nenhum problema é o fim do mundo. Passei a me preocupar menos com algumas coisas e valorizei mais outros momentos, principalmente os que vivo ao lado da minha família. Hoje não tenho mais medo da morte.”

A experiência de Jésus está entre os fenômenos que recebem diferentes interpretações religiosas e científicas. Um dos precursores do estudo sobre as experiências de quase-morte (EQM), o psiquiatra americano Raymond Moody, é autor da obra Vida Depois da Vida, publicada em 1975 e que se transformou em best-seller. Na mesma década, um grupo de americanos que afirma ter passado por essa experiência se uniu para fundar a  International Association for Near-Death Studies, uma associação que realiza pesquisas sobre a temática. A primeira, realizada em 1982, aponta que mais de 8 milhões de americanos já passaram por uma EQM.

Roberto Crema, reitor da UniPaz: o questionamento diante do tema pode servir como incentivo para a realização de estudos científicos sobre este fenômeno (Vinícius Santa Rosa/Esp. Encontro/ DA Press)
Roberto Crema, reitor da UniPaz: o questionamento diante do tema pode servir como incentivo para a realização de estudos científicos sobre este fenômeno
Apesar de experiências diversas relatadas por pacientes, o escritor observou que os depoimentos apresentavam elementos similares, como enxergar a si mesmo fora do corpo físico, observar momentos da própria vida, passar por um túnel iluminado e encontrar entes queridos que morreram ou outros seres espirituais. “Quando recordada essa experiência, acontece frequentemente uma metanoia: radical mudança de atitude frente à existência, com a perda do medo da morte e a transmutação dos valores do ter, parecer e poder para os valores do ser”, ressalta o psicólogo, antropólogo e reitor da Universidade Internacional da Paz (UniPaz), Roberto Crema.

O especialista afirma que o questionamento diante do tema tem reflexo positivo e pode servir como um verdadeiro incentivo para a realização de estudos científicos sobre o fenômeno da experiência de quase-morte. “Estamos ainda nos primórdios da compreensão do universo psíquico e da consciência, o que exige humildade e autêntico espírito científico”, explica.

Muitos que passam por esse tipo de experiência buscam as religiões para ter explicações ou conforto. Segundo o padre Adailton Mendes, da paróquia São Camilo – que realiza atendimento religioso nos hospitais de Base, Sarah Kubitschek, Santa Luzia e Hmib –, os acontecimentos da experiência podem variar de acordo com a crença do paciente. “Já ouvi relatos de católicos que descrevem ter visto a Virgem Maria ou uma figura feminina com manto branco e feições dóceis. Com certeza, os postulados do caminho espiritual de cada um podem definir o tipo de experiência”, explica o religioso.

Outro ponto ressaltado pelo padre está na maneira em que os fiéis encaram a morte após esse tipo de vivência. “Um fator considerável é que esses indivíduos encaram isso como uma segunda chance. Nossa cultura não nos ensina a morrer. Ela nos ensina a desfrutar a vida. Mas isso não significa qualidade e realização. Vivemos em uma sociedade que pratica a negação da morte e não fomos ensinados a viver. Isso com certeza faz parte de um dilema antropológico”, destaca o padre.

O espiritismo qualifica a EQM como desdobramento: 'Há médiuns que conscientemente conseguem sair do seu corpo e analisam tudo que está a sua volta', diz Adilson Mariz, presidente da Comunhão Espírita (Raimundo Sampaio/ Encontro/ DA Press)
O espiritismo qualifica a EQM como desdobramento: "Há médiuns que conscientemente conseguem sair do seu corpo e analisam tudo que está a sua volta", diz Adilson Mariz, presidente da Comunhão Espírita
Depois de muitos anos realizando atendimentos em ambiente hospitalar, ele ouviu testemunhos variados e a maioria deles tem um ponto em comum: uma sensação agradável e tranquilizante. “A percepção de inteireza é um dos elementos mais significativos para quem passa por essa experiência”, afirma Adailton, que é da ordem camiliana e se dedica com afinco à área da saúde.
Na interpretação budista, esse tipo de experiência pode ser considerada um renascimento. Segundo a monja Cris E-Gen, mais importante do que pensar na pós-vida é aproveitar a vida na Terra para praticar a bondade. “Para nós, apenas a ciência pode explicar e qualificar a experiência de quase-morte.”

Já a doutrina espírita, fundada por Allan Kardec, qualifica esse tipo de experiência como desdobramento. “Durante o sono, podemos vivenciar um desdobramento. Há médiuns que conscientemente conseguem sair do seu corpo e analisam tudo que está à sua volta. As pessoas que passam por essa experiência e não possuem essa mediunidade podem ficar surpresas, principalmente se isso acontece diante de uma situação extrema”, ressalta Adilson Mariz, presidente da Comunhão Espírita.

O Livro dos Espíritos, uma das obras que servem como base para o caminho espiritual fundado no período do Iluminismo francês, aborda essa experiência como um tipo de “emancipação da alma” e afirma que os corpos físico e espiritual são interligados por um cordão prateado através do que os espíritos classificam como perispírito, um fluido que segundo a crença é responsável por ligar o corpo ao espírito.

“Essas experiências de quase morte são interessantes exatamente para o despertar de  sociedade materialista em relação ao lado espiritual da vida. Isso é um fato valioso  principalmente com pessoas que não aceitam a sobrevivência no espírito e como certeza influencia esses indivíduos à busca pela espiritualidade”, conclui Adilson.
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