Responsável por personagens marcantes no cinema, televisão e no teatro - entre eles, o Cintura Fina, da minissérie global Hilda Furacão; e João Grilo, do filme Auto da Compadecida - o paulista Matheus Nachtergaele, de 47 anos, esteve em Brasília no primeiro fim de semana de junho para apresentar a peça Processo de Conscerto do Desejo, na qual traz aos palcos poemas escritos pela mãe, Maria Cecilia. Ela cometeu suicídio quando ele tinha apenas três meses de vida. Na conversa com a reportagem, um dia antes de estrear a temporada na capital, o ator se mostrou antenado a seu tempo.
ENCONTRO - A ausência de sua mãe durante o seu crescimento foi algo muito doloroso. Você acha que recitar os poemas dela é uma forma de conhecê-la?
Matheus Nachtergaele - Sim. Assim eu a conheci do jeito mais visceral que pude. Todo órfão passa a vida tentando fazer a imagem do pai perdido, principalmente da mãe perdida. Existe um período em que você e a mãe são um só, e não é apenas durante a gestação, mas na amamentação também. Dizem que o bebê passa seis meses ainda nesse estado, em que ele e a mãe são um só. A separação ocorre mais ou menos em três meses. As crianças passam a entender que a mãe não é ela, que existe outra pessoa. E assim ganha alteridade. Minha mãe morreu justamente nesse momento em que percebi que eu era um só. Por mais triste que ela estivesse para tomar a decisão de se suicidar, ela esperou a minha alteridade. Só isso me faz amar demais a minha mãe. É um gesto desesperado, mas cheio de amor. Ela esperou, sabia que então eu já poderia viver sem ela. É claro que dói e eu passei a minha vida tentando construir, como qualquer órfão, a imagem da mamãe.
E: Como foi o processo de descoberta dos poemas da sua mãe?
MN: O que havia até então eram relatos do meu pai, dos meus avós, coisas nostálgicas, fotos... Quando eu tinha 16 anos, me contaram como ela morreu. Meu pai me chamou para uma conversa que marca a minha maturidade. Foi inclusive a época que pedi a minha emancipação. Ele contou a maneira e detalhes sobre o dia. Foi um papo muito difícil, mas me ajudou a cair numa real para sair da adolescência. No mesmo dia, ele entregou esses poemas. Saí dessa conversa absolutamente desestruturado e li aqueles textos. Foi forte.
E: Quais sentimentos invadiram sua mente enquanto lia os textos?
MN: Os poemas são bonitos e têm boa escrita. Passei por um grande período de entendimento disso tudo. Pensei sobre o que fazer com essas poesias. Publicar, já que ela não teve tempo? Dirigir uma peça com alguma atriz representando a minha mãe? Mas tudo vinha sendo adiado. Graças a todos os deuses, trabalhei muito e o tempo foi generoso comigo para que eu chegasse aos 40 anos decidido a celebrar, a jogar luz no que era escuro. Apresentar os poemas da minha mãe e, com isso, apresentar o meu amor por ela. Vale a pena passar pelo luto para poder encontrar a luz das lembranças. Finalmente, agora eu faço alguma coisa com ela: eu sou ator e ela é autora. Estamos juntos do jeito que foi possível.
E: Seus personagens do cinema costumam ser bastante densos e mostram diferentes realidades do país. Que critérios você utiliza para a escolha desses trabalhos?
MN: Eu costumo me apaixonar pela vocação do projeto, muito mais do que pelo personagem. Eu nunca aceitei um filme, minissérie ou novela pensando no personagem, mas sempre no projeto. Tipos bem intensos foram oferecidos a mim tanto na comédia quanto no drama e na tragédia. No cinema, esses personagens vêm até mim. Ao longo da minha carreira, a partir de certo momento, passei a "ser" os personagens, cada vez mais em primeira pessoa. Não esquecendo que eles têm sotaque, classe social, profissão e sexualidade diferentes da minha. Estou cada vez mais enxertando de mim. Como se o personagem fosse a tripa de uma linguiça que eu enchesse com minhas próprias entranhas moídas. Minha entrega ao personagem é total.
E: Como você enxerga a cena teatral de Brasília? Algum ator tem chamado mais sua atenção?
MN: A maioria dos atores de Brasília que fazem cinema já é conhecida nacionalmente. Fiz um filme de DNA brasiliense (A Concepção), do José Eduardo Bel-monte, e nele eu conheci pessoas que vou admirar para sempre. Entre eles, o Juliano Cazarré, que antes de fazer qualquer personagem em televisão eu o chamei para ser o segundo personagem do longa que eu dirigi, A Festa da Menina Morta. Ele é pelotense, mas chegou a Brasília quando era bebê e se formou em teatro com o Hugo Rodas.
E: Em sua opinião, como as atuais mudanças políticas afetam a cultura no Brasil?
MN: Acho que nenhuma ré pode ser dada porque estamos em contrapasso com relação ao desenvolvimento nas áreas de educação e cultura, desenvolvimento agrário, humanismo e saúde. Isso é algo básico. Apoio as ocupações nos espaços culturais como a Funarte. Elas são pacíficas e cheias de pessoas lindas, talentosas e livres. Não vamos aceitar nenhum retrocesso brutal das poucas conquistas que tivemos não só durante o governo Lula e Dilma, mas ao longo de todos os anos de nossa democracia. Economia não se faz tirando ministérios importantes, economia se faz roubando menos dinheiro dos cidadãos brasileiros.
E: Sua conexão com a natureza é bem forte desde a infância e agora você mora em um sítio em Tiradentes (MG). De que forma esse contato contribui para seu processo criativo?
MN: Eu rezo na natureza. A natureza é minha igreja. Eu não tenho religião, mas sou um homem que encontra sinais de milagre na natureza. Fui menino de roça, passei muitos anos no sítio dos meus avós em Atibaia, no interior de São Paulo. Convivi com caipiras paulistas que moravam em casas de pau a pique e viviam da terra de uma maneira considerada politicamente correta nos dias de hoje. Eles utilizavam os recursos que cada estação do ano oferece. Minha infância foi vendo isso, o que me deixou uma marca forte, influencia todo o meu trabalho.
E: Recentemente você ressaltou a importância de Zé do Caixão para a cultura brasileira (o ator interpretou o personagem para uma série no Canal Space). Você acha que José Mojica Marins é um nome pouco valorizado no Brasil?
MN: Ele ocupa seu lugar de relevância dentro de seus altos e baixos. É um cara muito libertário que em alguns momentos teve êxitos comerciais e artísticos e em outros, não. Ciclica-mente ele é revisto. Eu acredito que a história tem se encarregado em vida de dizer o quanto ele é importante. Ele tem fãs mundo afora, um livro bonito sobre sua trajetória e uma série que é para ele. O cinema é um instrumento bonito para homenagear e pensar nossa história.
E: Como foi o estudo do personagem para a série Zé do Caixão?
MN: Eu li o livro, vi filmes e assisti entrevistas. Existem algumas cenas antológicas do Zé do Caixão. Eu estudava e gostava de copiá-lo. Tinha a liberdade de ser eu às vezes e me encontrar dentro daquele personagem. Nós sempre nos encontrávamos em estreias de filmes. E ele sabia que eu faria o personagem e gostava da ideia.
E: Você chegou a conviver com José Mojica mais intensamente?
MN: Ele foi até o set de cadeira de rodas, mas não conseguia falar, porque na época estava muito doente e tinha acabado de sair de uma internação. Nós dois ficamos muito emocionados. Vi uma en-%u2028trevista recente dele e estava todo pomposo e cheio de projetos querendo dirigir uma autobiografia. Perguntaram a ele se isso faria sentido, já que tínhamos feito a série, e ele respondeu: 'O Matheus Nachtergaele é muito bom, mas faltou muita coisa'. Ele tem uma forma muito peculiar de falar e se expressar. Eu fiquei muito feliz em vê-lo bem.