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O último refúgio de JK

Fazenda habitada pelo ex-presidente em seus últimos anos de vida, em Luziânia, guarda tesouros afetivos e será aberta à visitação pública em setembro

Gabriel de Sá - Publicação:02/09/2016 08:57Atualização:02/09/2016 10:40

O monomotor aproximava-se do Planalto Central quando foi acometido por uma pane de óleo. Era o alvorecer dos sombrios anos 1970 e o voo, saído de Minas Gerais, rumava para Anápolis (GO). Diante do grave problema técnico, o piloto contatou o aeroporto de Brasília para que lhe fosse autorizado um pouso de emergência na capital federal. "Quem está a bordo? ", perguntaram lá de baixo. Quando o nome do ex-presidente Juscelino Kubitschek veio à tona, o pedido foi veementemente negado. JK era considerado inimigo pela ditadura militar e a vinda do estadista à cidade era proibida pelos então governantes.

O aeroporto mais próximo era o de Luziânia, cidade goiana a 60 km de Brasília. Foi ali, então, que eles pousaram forçadamente. Diz a história que, lá, o presidente bossa-nova pediu para que o levassem a algum ponto em que pudesse avistar as luzes da capital erguida por ele e onde, por ironia do destino, estava impossibilitado de botar os pés. E assim o fizeram: em meio ao cerrado nativo e selvagem, Juscelino avistou de longe, emocionado, a incandescência de sua mais notável criação.

Esta é a história por trás da Fazendinha JK, propriedade rural habitada pelo presidente em seus dois últimos anos de vida, de 1974 a 1976. Aquela noite, que poderia ter sido trágica, acabou por reaproximar Juscelino da capital federal. Em 1972, com a ajuda de amigos, ele comprou o terreno. Dois anos depois, a casa, com desenho do amigo Oscar Niemeyer, estava de pé. Batizado com o nome da mulher de JK, o Solar Dona Sarah preserva tesouros praticamente intactos de um dos políticos mais populares do país, ainda hoje.

Batizado com o nome da mulher, o Solar Dona Sarah tem desenho do grande amigo de Juscelino, Oscar Niemeyer: lugar preserva tesouros praticamente intactos de um dos políticos mais populares do país  (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Batizado com o nome da mulher, o Solar Dona Sarah tem desenho do grande amigo de Juscelino, Oscar Niemeyer: lugar preserva tesouros praticamente intactos de um dos políticos mais populares do país

Em 1984, a viúva Sarah Kubitschek autorizou a venda da fazenda para o ex-deputado paranaense Lázaro Servo. O filho mais novo dele, o agropecuarista Antônio Henrique Belizário Servo, ao lado da mulher, Rosana Servo, toma conta da propriedade. A partir de setembro, o casal abrirá a propriedade para a visitação do público.

"Não tem como falar sobre a história de JK e não se lembrar da última casa em que ele viveu", diz Rosana à reportagem de Encontro Brasília durante visita ao local, em uma manhã ensolarada e seca de julho. Escondida nos arredores de Luziânia, ir à Fazendinha é entender o porquê de Juscelino ter se encantado pela região.
Belezas naturais: ao conhecer a Fazendinha, qualquer pessoa pode entender por que Juscelino se encantou tanto pela região (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Belezas naturais: ao conhecer a Fazendinha, qualquer pessoa pode entender por que Juscelino se encantou tanto pela região

Mineiro de Diamantina, JK ganhou de Niemeyer um projeto de casa bem similar às que o político frequentava na infância. A residência térrea, em azul e branco, tem pé-direito alto, sacadinhas, janelas compridas e arandelas. A área externa tem chão de ardósia e uma piscina moderna, em que, dizem, é possível ler as letras J e K. O jardim em frente à casa, outro presente ilustre, tem paisagismo do também amigo Roberto Burle Marx.

Tudo parece estar em harmonia na Fazendinha JK. Ainda na parte de fora, um item chama a atenção de quem passa: um sino. "Juscelino dormia pouco. Às vezes, ia se deitar às 5h e às 6h já estava de pé. Uma hora era o suficiente, ele dizia. Batia o sino, então, para avisar que já havia se levantado", conta Rosana. A passagem teria sido contada por Vera Brant, uma das melhores amigas e confidentes do ex-presidente, morta em 2014. Eram frequentadores assíduos da fazenda, também, o coronel Affonso Heliodoro, membro da equipe presidencial, e Carlos Murilo, deputado e primo do estadista. Vera, Heliodoro e Murilo, assim como JK, eram mineiros de Diamantina e encontravam na Fazendinha um recanto muito familiar.
Cercado por árvores de pequi, cagaita e araticum, o cruzeiro foi erguido onde hoje é a Ermida Santa Júlia: símbolo de fé (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press; Edições Bloch/Reprodução)
Cercado por árvores de pequi, cagaita e araticum, o cruzeiro foi erguido onde hoje é a Ermida Santa Júlia: símbolo de fé

Entrar no Solar Dona Sarah é retornar ao passado. Na residência, é possível ver móveis de época intactos, além de dezenas de presentes recebidos dos vários amigos que JK conquistou mundo afora. Impressiona, sobretudo, a biblioteca de 1,8 mil livros erguida pelo presidente. Entre os exemplares, publicações de medicina, história, geografia e até autoajuda. "Ele era um leitor compulsivo", diz Rosana, que estudou a fundo a vida do político para detalhá-la ao público.

Antônio Henrique e Rosana, que moram na casa, exibem com orgulho alguns dos livros. Em vários deles há anotações e bilhetinhos escritos por Juscelino, além de dedicatórias direcionadas a ele. "Temos coisas aqui que nem o Memorial JK tem", afirma Antônio Henrique. A biblioteca, contudo, não era originalmente parte da casa. O pai de Antônio Henrique, Lázaro Servo, adquiriu a coleção de livros depois da compra da Fazendinha, e tratou de integrá-la à paisagem da casa. Mas é como se sempre tivessem estado por lá.
O casal Antônio Henrique Belizário Servo e Rosana Servo: a partir de setembro, %u2028os proprietários vão abrir a casa ao público  (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
O casal Antônio Henrique Belizário Servo e Rosana Servo: a partir de setembro, %u2028os proprietários vão abrir a casa ao público

Outra preciosidade adquirida mais tarde foi uma Mercedes 1963, que estava no apartamento do ex-presidente no Rio de Janeiro e agora adorna a Fazendinha. "Meu pai era um juscelinista roxo", garante Antônio Henrique. Segundo ele, o automóvel havia sido encomendado por JK para as eleições presidenciais de 1965, às quais ele acabou não concorrendo por ter sido cassado pelo regime militar enquanto era senador pelo estado de Goiás. O automóvel tem ar-condicionado, bancos em couro marfim, rádio e volante feito de osso.

A cozinha, ao contrário do que se poderia supor, pela herança mineira, não tem um fogão a lenha, mas sim um industrial de seis bocas. Juscelino, como distinto diamantinense, adorava um frango ao molho pardo com quiabo. As panelas em pedra-sabão de Dona Sarah, assim como uma coleção de receitas, estão no mesmo lugar. Há também um espremedor de torresmo.

Um dos cômodos mais interessantes, e que diz muito sobre o estilo de JK, é a sala de jogos, também usada como discoteca. Lá estão, por exemplo, a mesa de jogos, onde Juscelino recebia os amigos para as intermináveis e acaloradas partidas de pôquer, e também a jarra que ele deu à mulher, Sarah, quando do casamento dos dois. O casal contou que alguns visitantes já passaram mal ao chegar lá, tamanha a emoção de estar numa casa de JK. Tudo está muito bem conservado, e algumas pequenas reformas estão sendo feitas para a abertura ao público. "Até as espécies das plantas são as mesmas que eles usavam para adornar os cômodos", afirma Rosana.
Um dos cômodos mais interessantes diz muito sobre o estilo de JK: a sala de jogos era também usada como discoteca (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Um dos cômodos mais interessantes diz muito sobre o estilo de JK: a sala de jogos era também usada como discoteca

Da sala de jogos, passa-se à sala de estar, biblioteca, sala de jantar, cozinha e quartos. O último do corredor é o de JK, com uma cama box de madeira, um imenso crucifixo na parede e uma charmosa porta de vidro para a varanda. Chamam a atenção, ainda, as várias referências à mãe, Júlia, espalhadas pela casa, sobretudo quadros pintados por diferentes artistas. No jardim, logo ali, repousa um frondoso pé de jabuticaba. Esta era a fruta preferida de JK. Quando o estadista exilou-se após o Golpe de 1964, Dona Júlia certa vez questionou: "Como Nonô pode morar fora do país, se lá não há jabuticaba?". Nonô era o modo pelo qual a mãe chamava o filho.

Um dos motivos pelos quais Juscelino queria ter uma fazenda no Planalto Central, segundo Antônio Henrique, era para provar que o cerrado, escolhido por ele para erguer a nova capital, era "viável". Assim, JK plantou eucaliptos, trigo e milho, e produziu leite. As represas construídas na área ajudavam na irrigação e davam um charme à paisagem. "Ele queria produzir açúcar a partir da beterraba. Esse era um dos planos dele aqui. Mas não chegou a acontecer", destaca o proprietário. "Eu não tenho ideia do preço que valeria hoje, mas eu chutaria uns 30 milhões de reais", diz.

Varanda da Fazendinha JK: a propriedade rural foi habitada pelo presidente bossa-nova em seus dois últimos anos de vida, de 1974 a 1976 (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Varanda da Fazendinha JK: a propriedade rural foi habitada pelo presidente bossa-nova em seus dois últimos anos de vida, de 1974 a 1976
A biblioteca de 1,8 mil livros acumulados pelo presidente: 'Ele era um leitor compulsivo', diz Rosana, uma das proprietárias da Fazendinha  (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
A biblioteca de 1,8 mil livros acumulados pelo presidente: "Ele era um leitor compulsivo", diz Rosana, uma das proprietárias da Fazendinha

Logo ali, a cerca de 2 km da casa, está o mirante pelo qual JK se encantou naquela primeira visita. Lá, cercado por árvores de pequi, cagaita e araticum, foi erguido um cruzeiro. No dia do batizado de uma de suas netas, a cruz foi inaugurada e, sobre o cimento ainda fresco, Juscelino escreveu com o dedo: "Esta cruz, símbolo da nossa fé, foi erguida na linda alvorada de 9 de julho de 1976, sexta-feira, quando o sol mal começava a aquecer e iluminar as tranquilas paisagens da Fazendinha JK. Pedimos a Deus que nos conceda paz, saúde e alegria". Após a morte de JK, em 1976, os amigos trataram de levantar uma capela na região do mirante. A Ermida Santa Júlia é uma réplica da capela do Palácio da Alvorada, com projeto do onipresente Niemeyer e vitrais de Marianne Peretti, artista plástica francesa que também criou os vitrais da Catedral de Brasília. A capela foi inaugurada em 1978 e originalmente tinha uma imagem de Santa Júlia feita por Alfredo Ceschiatti.
Esta Mercedes 1963 adorna a Fazendinha: ar-condicionado, bancos em couro marfim, rádio e volante feito de osso eram um luxo (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Esta Mercedes 1963 adorna a Fazendinha: ar-condicionado, bancos em couro marfim, rádio e volante feito de osso eram um luxo
JK ganhou de Niemeyer um projeto de casa bem similar às que o político frequentava na infância: pé-direito alto, sacadinhas, janelas compridas e arandelas (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
JK ganhou de Niemeyer um projeto de casa bem similar às que o político frequentava na infância: pé-direito alto, sacadinhas, janelas compridas e arandelas

Juscelino Kubitschek de Oliveira, do Partido Social Democrático, presidiu o Brasil entre 1956 e 1961, tendo na construção de Brasília seu feito mais notável. Senador por Goiás eleito em 1962, JK teve o mandato cassado pelos militares a partir de 1964, o que minou os planos do mineiro de concorrer novamente à presidência em 1965. JK partiu, então, para um exílio voluntário entre Europa e Estados Unidos, e retornou ao país em 1967. Ele sempre manteve as pretensões políticas, mas tinha de esperar uma década para que readquirisse seus direitos cassados. A época em que ele habitou a Fazendinha, de acordo com a historiadora da Universidade de Brasília (UnB) Albene Klemi, coincidiu com o momento de rearticulação de JK no meio político. "Ele estava se movimentando, se reorganizando em termos de contatos", diz ela.
Cozinha intacta: um espremedor de torresmo e as panelas em pedra-sabão de Dona Sarah estão no mesmo lugar  (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Cozinha intacta: um espremedor de torresmo e as panelas em pedra-sabão de Dona Sarah estão no mesmo lugar
Retorno ao passado: curiosidades e dezenas de presentes recebidos dos vários amigos que JK conquistou mundo afora (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Retorno ao passado: curiosidades e dezenas de presentes recebidos dos vários amigos que JK conquistou mundo afora

Albene conta que JK passava muito tempo na Fazendinha e que isso lhe trazia um sentimento ambíguo, já que, ao mesmo tempo que tinha sossego e tempo para a leitura e para si, também estava muito isolado. "Certa vez, saiu um boato de que ele havia morrido, mas ele estava na fazenda bem-humorado e sorridente. Amigos foram lá para conferir se estava tudo bem", conta a estudiosa. O presidente morreria em controverso acidente de carro no dia 22 de agosto de 1976, na rodovia Presidente Dutra, no estado do Rio de Janeiro. Os restos mortais do presidente estão no Memorial JK, em Brasília.
Histórias e lembranças ao alcance do público: JK batia o sino cedo sempre que queria avisar que já havia se levantado (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
Histórias e lembranças ao alcance do público: JK batia o sino cedo sempre que queria avisar que já havia se levantado
No jardim há um frondoso pé de jabuticaba: esta era a fruta preferida de Juscelino Kubitschek (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
No jardim há um frondoso pé de jabuticaba: esta era a fruta preferida de Juscelino Kubitschek

Para os fins de setembro, os proprietários estão armando uma festança para celebrar a abertura da Fazendinha ao público. Pretendem contar com vários admiradores, historiadores, antigos amigos e "juscelinistas" de todo o país. A noite deverá contar com uma seresta, tão apreciada pelo boêmio Juscelino, e seguindo os moldes das tantas que devem ter rolado por lá nos últimos anos do presidente bossa-nova. "É como se o tempo tivesse parado aqui", diz Rosana. "Eu me sinto como se estivesse trabalhando para o povo brasileiro, que um dia vai ter noção da importância dessa história", arremata Antônio Henrique. "É um presente para o futuro."

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