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ENTREVISTA | Flávio Cadegiani »

'Não existe obeso saudável"

Endocrinologista explica o conceito de diabesidade, que associa diabetes e obesidade e trata as duas como doenças cada vez mais comuns entre os brasileiros

Paloma Oliveto - Publicação:28/11/2016 09:48Atualização:28/11/2016 10:43
Na infância, ele foi vítima de bullying. Por volta dos 9 anos, Flávio Cadegiani começou a engordar e chegou a ser espancado num acampamento da escola, por causa do peso. “Então emagreci, tive um pouco de anorexia, fui para a bulimia, depois fui para a compulsão alimentar. Aí cheguei a 120-125 kg, com um pico de 145 kg”, conta o médico, hoje referência no tratamento da obesidade em Brasília. “Eu sempre quis ser endocrinologista para lidar com esses problemas”, revela. Aos 22 anos, teve início a virada. Então estudante de medicina na Universidade de Brasília (UnB), Cadegiani resolveu deixar o excesso de peso para trás. Hoje, pesa 97 kg, distribuídos por 1,84 m, e se orgulha do percentual de gordura corporal de apenas 7,9%. Desde que se formou e começou a clinicar, o médico já ajudou centenas de pacientes a sair das estatísticas de uma epidemia que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), afeta dois quintos da população do planeta e não para de crescer. No fim de outubro, Cadegiani presidiu o primeiro simpósio dedicado ao tema em Brasília. A procura foi tanta que o evento deve ocorrer periodicamente na cidade – em princípio, a cada dois anos.
 (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)

ENCONTRO BRASÍLIA - Existe ex-obeso?

FLÁVIO CADEGIANI - Não existe. Isso é uma coisa muito importante. A pessoa magra que foi obesa na balança é uma obesa controlada. As alterações químicas, metabólicas, inflamatórias e cerebrais não zeram, sempre terão memória. O risco de doenças para o ex-obeso sempre vai ser superior ao risco de alguém que nunca esteve acima do peso. Uma grande mudança no paradigma que nós buscamos é deixar de tratar o obeso como uma simples frescura. As pesquisas já mostraram que não existe obeso saudável. De 40% a 70% da obesidade é genética, segundo artigo publicado na revista científica The Lancet no ano passado. São 92 genes associados à obesidade. Por isso essa facilidade de ganho de peso é real. Existe um gene, chamado FTO, que aumenta o risco em mais de 60%, porque ele simplesmente pega toda caloria que você consome e joga para dentro da célula de gordura. Ele é extremamente eficiente, impede que você acelere o metabolismo se comer mais, diminui mais o metabolismo quando você faz dieta. Essa foi uma vantagem evolutiva [da espécie humana] para sobreviver em períodos de escassez de alimentos. Só que agora ela está atrapalhando. Antes de mais nada, temos de fazer a obesidade ser entendida como ela realmente é. Infelizmente, ainda existem médicos que dizem que não tratam obesidade, só tratam doenças, como se a obesidade não fosse doença.

A Organização Mundial de Saúde fala em epidemia de obesidade...
Com certeza. Obesidade tem de parar de ser tratada como simples perda e manutenção. No período inicial da manutenção, o peso é muito instável. Os hormônios que ativam o metabolismo caem, os hormônios que diminuem a fome caem, os que aumentam a fome aumentam, toda a capacidade de reganho de peso está otimizada. Toda e qualquer caloria é armazenada. Um exemplo hipotético e interessante é o de gêmeos idênticos: um emagreceu 10 kg entre junho e julho de determinado ano; e o outro emagreceu os mesmos 10 kg entre novembro e dezembro. No ano-novo eles consumiram as mesmas quantidades de comida e bebida. O que perdeu em junho reganhou 1 kg e o que perdeu em dezembro reganhou 8 kg. O tempo é importante, porque, em vez de ser perda e manutenção apenas, tem uma fase no meio que é da consolidação do peso. Do ponto de vista de peso, a consolidação é igual à manutenção, mas é uma fase muito instável, por isso o tratamento tem de ser tão ou até mais importante do que na perda.

O obeso terá de ser acompanhado para o resto da vida?
Sim, como qualquer outro paciente crônico. Ele pode até receber alta do endocrinologista depois de uns dois ou cinco anos, mas sempre acompanhado por um nutricionista ou psicólogo. As pessoas não devem encarar como um problema a necessidade de o tratamento ser crônico, porque o errado é tratar por pouco tempo. Sabemos, hoje, que nos Estados Unidos mais de 550 bilhões de dólares são relacionados a gastos com obesidade e diabetes. Uma perda de 10% no peso é responsável por reduzir em até 70% esse custo. Então, é extremamente importante fazer o tratamento, que não é caro, se comparado a custos em longo prazo. Fora o custo indireto, como produtividade, rejeição social e  uma série de situações que dificulta a vida do obeso.

Ainda existe muito preconceito com os emagrecedores no Brasil? Houve uma época em que a venda desses medicamentos chegou a ser proibida.
Existe um estigma muito forte, que chamamos de farmacofobia, no tratamento da obesidade, porque historicamente se fez um mau uso do tratamento. É preciso destacar dois problemas. Primeiro: sempre se abusou dos medicamentos. Segundo: nunca se tratou a obesidade da forma adequada, em longo prazo e com desmame, como se faz com qualquer doença crônica. Então, o tratamento com remédios sempre foi um pouco “oba-oba”. Os medicamentos que foram proibidos de fato não têm o perfil de segurança cardiovascular estabelecidos, como os novos. A própria medicina foi melhorando os níveis de exigência. Eu, particularmente, não vejo necessidade de aquelas anfetaminas antigas voltarem. E, sim, de aceitarmos as novas que estão vindo, como um análogo da anfetamina que tem um nível de sucesso muito grande, mas apenas quando há compulsão alimentar associada.
 (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)

O que significa a diabesidade?
O conceito de diabesidade surgiu no ano 2000 e começou a se tornar mais popular há cerca de cinco anos. Noventa por cento dos pacientes de diabetes tipo 2 – e diabetes tipo 2 é 90% dos casos – têm a doença associada a excesso de peso. Então, o primeiro ponto é que não tem como dissociar as duas doenças. Segundo, as consequências inflamatórias e metabólicas da obesidade são exatamente as mesmas do diabetes. Isso é extremamente importante. Terceiro ponto: praticamente todos os novos medicamentos para diabetes emagrecem. Então, não dá para dissociar as duas coisas mais. Dificilmente uma cirurgia de redução de estômago melhora uma sem melhorar a outra, tanto que existe uma tendência de se operar mais por conta da presença de diabetes do que só pelo IMC (o índice de massa corporal). Para a cirurgia, a presença de comorbidades é mais importante do que ter um IMC alto, embora um IMC muito alto esteja associado quase sempre às comorbidades, como diabetes.

Todo obeso é um diabético em potencial?

Sim. Ele está, com certeza, em alguma fase da fisiopatologia do diabetes. O diabetes é o fim da doença do ponto de vista de alterações. Lembrando que o excesso de açúcar no sangue já significa que em algum grau ele não conseguiu produzir insulina suficiente para aquela demanda. Antes disso, há a fase da hipertrofia das células beta, mesmo sem uma crise insulímica. Quando ele passa a ter uma baixa produção de insulina, começa a ter pré-diabetes, que é a hiperglicemia. Aí depois começa o diabetes.

Então, não é preciso esperar todos os sintomas do diabetes aparecerem para tratar o obeso?
Não, porque esperar o paciente virar o diabético clássico é inércia, é negligência. Hoje, temos várias formas de prevenção de diabetes. Inclusive, a última diretriz da Associação Americana de Endocrinologistas Clínicos aprovou oficialmente o uso de antidiabéticos para prevenção em pacientes pré-diabéticos ou com resistência à insulina. Eles estão entendendo que o diabetes já é o fim de uma doença. Uma coisa que se pode pensar é por que se demorou tanto para associar diabetes com obesidade. Na verdade, demora uns anos para o diabetes se desenvolver no paciente obeso, e a epidemia de obesidade tem cerca de 20, 30 anos. Então agora é que está tendo uma epidemia de obesidade decorrente da epidemia de diabetes.

Existe alguma pesquisa que associe os genes do diabetes aos da obesidade?

Não, os genes da obesidade são distintos dos do diabetes. Embora as duas condições sejam poligênicas. Então, sempre vamos ter algum grau de combinação de genes. Por exemplo: todo paciente obeso tem algum grau de disfunção glicêmica, antes mesmo do pré-diabetes. O que acontece é que, se a pessoa tem muitos genes de diabetes, é diabética, se tem poucos, vai precisar de outros fatores para desenvolver a doença.

Se o componente genético é tão forte para a obesidade, como explicar que no passado não havia tantos obesos assim?
Raramente a genética é determinista. Ela tem sempre uma interação com o ambiente para gerar a doença. Também há substâncias que silenciam genes bons e aumentam a expressão de genes ruins. Entre elas, o carboidrato branco. Culpávamos muito a gordura e sabemos que a gordura tem um grau de culpa, mas a do carboidrato é muito maior. Nos Estados Unidos, por exemplo, a epidemia de obesidade começou exatamente quando caiu o consumo de gordura em razão das recomendações nutricionais e o de açúcar refinado aumentou. A China tem um consumo calórico per capita maior do que os Estados Unidos, mas eles são bem mais magros porque na China o consumo de carboidrato é menor. Então, a epidemia de obesidade e diabetes tem relação muito maior com sedentarismo, com a piora da alimentação e com o tamanho das porções, que aumentou demais nas últimas décadas. Hábitos que eram reservados para dias especiais, como tomar sorvete no domingo, viraram diários.
 (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)

Em todos os países onde está havendo a epidemia de obesidade também ocorre a de diabetes?
É indissociável. Nos Estados Unidos, tem um modelo muito interessante, que é de comparar os índices estado por estado. Lá, o mapa do diabetes e o mapa da obesidade são iguais, mesmo fazendo análises distintas. Os números de diabetes e obesidade estão subindo. Hoje, mais de 25% dos gastos que eles têm na saúde pública são com obesidade e complicações. No Brasil, esse gasto é de 10%, e a tendência é crescer exponencialmente. Hoje, por exemplo, já podemos falar que a principal causa de diálise no país, que é outra epidemia, é a obesidade.

No sentido de políticas públicas, como esse novo paradigma da diabesidade deve influenciar as tomadas de decisão?
Na prática, nós temos de ser mais agressivos e mais precoces nas intervenções desses pacientes. A criança obesa, por exemplo, tem uma chance altíssima de ser um adulto obeso, principalmente se os pais forem obesos. A chance é de quase 100%. Ela também tende a ter riscos para o resto da vida.

No Brasil, dados do Ministério da Saúde mostram um aumento da obesidade em todas as faixas etárias, sugerindo que ainda não sabemos lidar com esse problema.
Talvez por conta do estigma isolado da obesidade, os gestores públicos tivessem mais dificuldade de tomar atitudes. A diabesidade traz o diabetes junto. Então, talvez seja bem mais eficaz tratar a obesidade e o diabetes junto. E a política pública vai ter de dar muito mais atenção a isso. O grande erro das políticas públicas é tratar o indivíduo como responsável, como se a obesidade fosse fruto única e exclusivamente de más escolhas racionais. E não é. É uma doença química, metabólica, psiquiátrica, hormonal. Então, temos de parar de achar que é uma mera e simples orientação. O paciente sabe que tem de se conscientizar.
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