Há mais de uma década, ao abrir o envelope para revelar o vencedor de melhor filme, as sobrancelhas cínicas e debochadas do ator Jack Nicholson já davam a dimensão do atraso e do preconceito da Academia. A vitória de Crash: No Limite, do diretor Paul Haggis, um filme condenado a envelhecer mal, fraquíssimo, de histórias entrecortadas, pretensioso na cópia do estilo Robert Altman, era o berro de que os votantes rejeitaram o romance inédito, antirretrato da era W. Bush, de dois caubóis nativos do Wyoming, estado norte-americano ultraconservador.
Vencedor do Festival de Veneza, O Segredo de Brokeback Mountain, do diretor Ang Lee, era uma incômoda novidade. Poucas vezes, o cinema dos Estados Unidos retratara o amor de dois homens, ainda por cima vaqueiros e casados, típicos caubóis, de uma forma tão delicada e magistral. Já em dezembro de 2005, Brokeback levou praticamente todos os prêmios de associações de críticos do país. Na temporada do ouro, com largada nos Globos de Ouro, não foi diferente. Faltava só o Oscar de melhor filme para Hollywood fazer história.
A rejeição clara e obscena, anunciada por Jack Nicholson na cerimônia de 2006, de alguma maneira foi corrigida com a consagração de Moonlight no Oscar deste ano. A produção independente do diretor Barry Jenkins, que retrata a trajetória do garoto negro Chiron, com toda a edificação do seu caráter e personalidade, é produto da pioneira argamassa que Ang Lee usou para contar o roteiro do longa-metragem inesquecível, injustiçado pela temática e pela coragem de não esconder o que grandes diretores só ousavam insinuar.
Os atores Alex R. Hibbert e Mahersala Ali (vencedor do Oscar de ator coadjuvante), em cena de Moonlight: escolhido melhor filme em ano repleto de produções de altíssima qualidade
Moonlight demorou para chegar ao conhecimento da crítica e do público brasileiro. De última hora, a distribuidora nacional Diamond Filmes comprou os direitos da produtora A24, em coprodução com a Plan B Entertainment, do astro Brad Pitt, para lançar o drama no circuito nacional. Já se ouvia falar, desde outubro, que era um filmaço, o “melhor do ano”, mas os cinéfilos daqui não tiveram oportunidade de ver o longa-metragem em nenhum festival, que geralmente antecipa todos os fortes concorrentes à categoria máxima do Oscar.
O entusiasmo precoce pelo musical La La Land se justifica. Damien Chazelle, vencedor na categoria de melhor direção, realmente fez um lindo filme, com trilha sonora deliciosa. Algodão doce de altíssima qualidade, que bateu recordes com suas 14 indicações, tem seu valor e excelência marcados, apesar das tardias e controversas denúncias de plágio. Porém, é nítido que Moonlight, mais singelo, mais real, é o melhor filme de 2016.
Venceu o melhor, em um ano com seleção de altíssima qualidade, com produções consideradas imediatas obras-primas, a exemplo do cerebral A Chegada e da pequena zebra A Qualquer Custo. Justamente por tudo isso, ao fazer história premiando um projeto de temática gay, com o elenco formado majoritariamente de artistas negros, é imperdoável a confusão ou o erro na troca de envelopes entregues a Bonnie & Clyde, ou melhor, Faye Dunaway e Warren Beatty.
Minutos preciosos se perderam, cedendo espaço a teorias estapafúrdias e besuntadas do mais asqueroso ódio e preconceito. Isso numa festa feita para a televisão que prima pela seriedade na auditoria e faz troça das taças de champanhe servidas nos Globos de Ouro. Uma trapalhada vergonhosa, na mesma linha do oposto e tão combatido governo Donald Trump.