Sabores da capital
Cinco chefs apresentam os pratos que conquistaram os brasilienses, misturas de várias influências e cozinhas
No início tinha Nordeste, tinha Sudeste, tinha Norte, tinha Sul. Em um descampado de terra batida, Brasília se ergueu em meio a culturas, sotaques e – como não? – em sabores regionais de todo o Brasil e, posteriormente, do mundo. Quase seis décadas após a inauguração da capital federal, somos a terceira cidade em oferta gastronômica no país, mas não deixamos de sucumbir à questão: afinal, qual a cara da comida daqui? Em um misto de elogio e desabafo, cinco cozinheiros atestam que, sim, nós já temos personalidade quando se trata de receitas. E o nosso diferencial está, justamente, na miscigenação. Viva, então, o caldeirão!
“A região do planalto tinha uma cozinha”, lembra Francisco Ansiliero, nome responsável pela marca de restaurantes que neste ano completa 29 anos e que virou tradição para os brasilienses. Na cozinha do Dom Francisco, ele cita pratos da parte central do país, a exemplo do clássico frango com pequi e do galopé, mas que não resistiram à construção dos eixos. “Cada um veio fazendo seu prato e não houve a cultura de aprender a comer as coisas da localidade”, explica o chef criador de uma das receitas mais icônicas por aqui: a picanha com farofa de ovos.
Pergunte a qualquer brasiliense, ande em bufês ou repare na parte de acompanhamentos dos cardápios espalhados pelo traço do avião. A criação servida ao lado da carne tornou-se, aos poucos, patrimônio da cidade. “Nós não temos de buscar uma identidade gastronômica para a cidade”, defende Marcelo Petrarca, que há dois anos comanda o próprio restaurante, depois de ter feito escola com os reconhecidos Mara Alcamim (Restaurante Universal) e Dudu Camargo (Dudu Bar & Restaurante e Simples Assim).
O chef do Bloco C discorda da possibilidade de algum dia termos uma comida característica. “Talvez esta seja a graça de Brasília: termos um garçom do Piauí, um cozinheiro italiano, um chef do Rio Grande do Sul”, diz Petrarca. A procura pelo chamado prato típico, segundo o Melhor Restaurante e Melhor Chef por Encontro Gastrô – O Melhor de Brasília 2016, nem faz mais sentido. “Nós já temos os pratos que são a cara da cidade”, defende Petrarca, citando apresentações que viraram ícones para o público, como o Sexy Shrimp, de Mara.
Encaixa-se nessa lista, inclusive, o fenômeno filé com rapadura servido com risoto de grana padano, que só no ano passado vendeu 12 mil unidades na casa que faz homenagem a Brasília desde o nome. “Na época em que eu era presidente da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), tentei ver se criávamos um prato de comida de Brasília, para começar uma tradição”, conta Fátima Hamú. Chef do tradicional árabe Lagash por quase 30 anos, que agora segue em formato de rotisserie, na 112 Norte, com o termo Meditarranée agregado ao nome, ela reconhece as barreiras: “É muito difícil”, admite, lembrando que sempre as criações chegavam muito próximo aos sabores goianos.
Anos depois, a cozinheira parece satisfeita com o panorama que aprendeu a entender: “A culinária de Brasília tem a do Nordeste, de Minas, de Goiás, do Rio Grande do Sul, do Norte. É como andar nas quadras. Encontramos plantas de todos os estados”, diz. O fato de sermos berço de embaixadas e termos recebido muitas colônias também refletiu diretamente nos costumes dos pratos. “Teve um boom de comida árabe”, afirma Fátima. Ela cita o aumento da oferta nos últimos anos, especialmente comparados com o início da cena gastronômica, quando as opções passeavam apenas entre Beirute, Arabeske e a casa que ajudou a fundar ao lado da mãe, descendente de árabes. Talvez por isso seja tão fácil para Fátima apontar uma receita que conquistou o brasiliense: “O carneiro marroquino é um prato que, desde que a abertura, ficou no %u2028Lagash por 27 anos”, orgulha-se sobre o também carro-chefe da casa.
As irmãs Flávia, Amanda e Fernanda Labecca recordam a época em que eram praticamente únicas no segmento de confeitaria para festas. Hoje, com 13 anos da empresa focada em doces e bolos, elas não demoram a elencar a guloseima unânime ao paladar local: “Brigadeiro. De todos os tipos, mas principalmente o tradicional”, revela Flávia, que cuida da produção do Labecca Café + Bistrô.
Em homenagem ao aniversário da capital, a confeitaria pensou em uma criação que vai ao encontro de ingredientes do cerrado, aposta recente nas cozinhas profissionais. “Pensando em produtores locais, em comidas que sejam da região, da estação, nós propusemos uma receita de brigadeiro com baru”, diz Amanda. O resultado foi um brownie de chocolate meio amargo acompanhado de brigadeiro da castanha (veja receita).
Já Flávio Leste, responsável pela abertura do icônico Villa Tevere ao lado da mãe, Suzana Leste, que por anos comandou um dos bufês de maior sucesso na capital nos anos 1980, resume o debate da cozinha local em um ponto: “O brasiliense gosta de comidas que lhe trazem afetividade, boas memórias.” A impressão de Flávio caminha junto à experiência de quase 18 anos no restaurante de inspiração arquitetônica e gastronômica italiana, ao curso que dialoga com o início da cidade. “Todas as pessoas daqui têm memórias afetivas de outros lugares”, observa, incluindo até os mais jovens, que carregam as raízes dos sabores da mãe ou da avó.
Prova da teoria é que o único prato que permanece até hoje no cardápio do estabelecimento da 115 Sul é o picadinho de carne em redução de vinho, farofa e banana grelhada. Um misto de Brasil com Minas Gerais, que acabou tornando-se uma comida afetiva da cidade. “É uma receita que existia pré-Villa Tevere e que tem a ver com momentos históricos do país”, diz o chef, contando alguns deles, como o último aniversário de Ulisses Guimarães, em 1992, em que o bufê era o picadinho, servido na casa dele. “Com Tancredo Neves, na votação do Colégio Eleitoral, em 1985, também houve um café da manhã, feito pelo bufê da minha mãe, e depois, na vitória, houve picadinho”, diz.
Para ele, os pratos que temos aqui não são típicos, mas refletem a junção de influências, natural também da globalização de uma cidade que cresceu: “A picanha com a farofa de ovos do Francisco, por exemplo, de onde é? Não é do Sul, não é da Argentina”, afirma. Indagado se um dia teremos uma gastronomia para chamar de nossa, Flávio rebate: “É a mesma questão do sotaque. Brasília não tem um, mas quem mora aqui sabe que aqui existe um jeito especial de falar”.