A diversidade é o ponto forte na cultura de uma cidade que se cria a partir da mistura de povos e manifestações de diferentes lugares do país, e a cultura popular permanece ligada ao conjunto de conhecimentos de viver e enxergar o mundo, além de estar conectada a uma tradição oral. Exemplos disso, atualmente, Brasília tem cerca de 10 grupos profissionais de mamulengo, que percorrem o DF, além de outros estados e países com a brincadeira brasiliense. O teatro popular de bonecos do Nordeste, inclusive o que é feito em Brasília, foi reconhecido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como Patrimônio Imaterial Brasileiro.
A criação cênica com os bonecos requer bom jogo de improviso e comunicação direta com o público, que se torna parte integrante da apresentação, e não apenas observador. Entre os grupos que acumulam uma trajetória significativa e ampla na região estão a sambada e a criação cênica de Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro; os bonecos e a brincadeira de Mamulengo Fuzuê e Mamulengo Presepada; as cores e a mistura do Boi de Seu Teodoro; e o ritmo e a musicalidade de Zé do Pife e as Juvelinas.
Para os idealizadores do grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, que nasceu em 2004, falar sobre a origem do mundo e o mito do surgimento do cerrado parecia ideia fantasiosa. O encontro aconteceu entre pessoas dispostas a criar uma brincadeira, uma tradição para Brasília, e a proposta já chegou junto com o mito. A inspiração era o cerrado. Tico Magalhães conta que começou a olhar para a cidade, rodeada por concreto, com os olhos do mato: “Essa terra em que pisamos tem uma enormidade de histórias antes mesmo de Brasília nascer. Com esse olhar foi possível descobrir, aqui mesmo, o historiador Paulo Bertran, abrir os ouvidos para as histórias dos candangos e de nossos mestres populares, conhecer a professora Vera Lessa Catalão e sua relação com as águas, Mestre Claudio e tantos outros. Tudo isso vira arte. O cerrado e a própria história da cidade, de sua construção, são incríveis”, destaca o ator, brincante e um dos criadores do grupo.
IMAGINÁRIO COMUM
Criado em 2004, Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro busca novas formas de manifestação artística, criando uma identidade cultural através das artes cênicas, da música e da dança, através de elementos do cerrado e da vida candanga. O grupo explora também o imaginário popular com personagens baseados na fauna e em elementos característicos do cerrado e de Brasília. Traz ainda influências das tradições pernambucanas do maracatu e do cavalo-marinho, segundo Tico Magalhães, um dos fundadores. Lançou o primeiro CD em 2009. Em 2007, foi premiado pelo Ministério da Cultura como grupo de cultura popular tradicional, e em 2010 como ponto de cultura.
Seu Estrelo se tornou importante a partir do momento em que criou um trabalho tendo a cidade como ponto de partida e mostrou a história de Brasília sob outro ângulo. Suas peças falam da forma lúdica de suas mazelas e mágicas, levando a crianças e jovens olhares para todo o Distrito Federal: “Moramos em Brasília, por isso estamos em outro registro de tempo. Um grupo que aqui brinca mamulengo, que toca maracatu, coco ou pratica outra manifestação, é diferente de qualquer outro lugar. Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, pelo que criou, é, sim, tradição da cidade. Quem não acha isso é porque está preso ao passado e não entende toda a modernidade da cultura popular”, afirma Tico Magalhães.
O grupo faz há 12 anos, sem interrupção, três festejos anuais em sua sede: a Festa de Abrição do Terreiro, o Fuazeiro (festa em homenagem a seu Estrelo) e a Festa em Homenagem ao Calango Voador. Uma em abril, a outra em junho e a terceira em setembro, respectivamente. Além disso, criou e hoje é parceiro na realização do Festival Brasília de Cultura Popular, no São Batuque e no Festival Brasileiro de Teatro de Terreiro.
Há três anos, o Seu Estrelo ganhou sua escola, o Centro Tradicional de Invenção Cultural, aberto aos mestres e brincantes de Brasília e do restante do país. “O centro foi criado, principalmente, para que possamos repassar a nossa brincadeira, nossa reinação, a tradição que criamos. É incrível ver gente o tempo todo chegando, querendo aprender o jeito que fazemos nosso samba, o Samba Pisado. Gente querendo fazer teatro para colocar, botar as figuras de nosso mito”, conta Tico.
Vale lembrar também que todas essas manifestações carregam a capacidade de transformar o cotidiano das comunidades em que estão inseridas. É o caso da vila, onde está a sede do Seu Estrelo. Tico Magalhães conta que quando chegaram ao local, há 12 anos, havia certa insegurança dos moradores e presença de traficantes no local. Depois disso, a vila foi se transformando e diversos artistas redirecionaram seus trabalhos para lá, transformando-a na Vila Cultural, onde acontecem ensaios, oficinas e festejos. “Acho que tudo isso vai muito mais além. Poder olhar a cidade com outros olhos, poder me aproximar de quem é daqui e me diferenciar de quem não é por meio de uma brincadeira é muito precioso. Não existe nada mais forte no mundo que nossa identidade”, conta o artista.
Enquanto isso, o Boi de Seu Teodoro, nascido no Rio de Janeiro, em 1953, mostra a mistura da cultura de nossa capital. Mestre Teodoro Freire se mudou para Brasília em 1962 e fundou aqui a brincadeira em Sobradinho, para matar a saudade do Maranhão. Atualmente, o Boi é considerado Patrimônio Cultural Imaterial do DF. Guarapiranga Freire, filho do Mestre Teodoro, conta que a perseverança foi o maior fator de contribuição para manter esse legado de 54 anos: “Na época, não foi fácil, mas o Mestre Teodoro tinha aquilo como principal meta de vida. Apesar de representarmos a cultura do estado do Maranhão, a cidade nos abraçou e uma entidade que nos proporcionou esse respeito e carinho da sociedade foi a Universidade de Brasília (UnB), além das escolas públicas”, afirma.
REFERÊNCIA POPULAR
Criado por ocasião da fundação da nova capital, o Boi de Seu Teodoro continua em atividade até hoje, em Sobradinho (DF), dirigido pelo seu chefe, Teodoro Freire, maranhense residente em Brasília desde 1961. Em 1963, ele fundou a Sociedade Brasiliense de Folclore e em junho daquele ano o bumba meu boi foi apresentado pela primeira vez. A partir de 1972, a SBF passou a chamar-se Centro de Tradições Populares. Seu Teodoro morreu em 2012 e, ainda em vida, recebeu das mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Ordem do Mérito Cultural, que o tornou referência de cultura popular da capital. Ele também teve seu trabalho reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Distrito Federal, em 2006.
O artista conta que a necessidade de manter viva essa cultura popular parte da vontade de preservar as ações de nossos ancestrais. O Boi de Seu Teodoro narra a história de Pai Francisco e Mãe Catirina, e os brincantes são convocados para ensaiar no Sábado de Aleluia e todos os sábados seguintes até junho, véspera de São João. Para o dia do santo, 23 de junho, o Boi é batizado e acontece um grande arraial que lembra as festas do Maranhão. A partir do bumba meu boi, suas formas e ritmos foram adaptados e ganharam novas criações para o Distrito Federal.
A brincadeira com bonecos também faz parte dessa invenção da tradição brasiliense. Entre os importantes nomes que expandem suas criações entre palhaços de rua, teatro popular e músicas, está o Mamulengo Fuzuê. O grupo busca celebrar a arte e despertar a transformação pessoal e coletiva a partir da experimentação e convivência com mestres populares e do fazer artístico. A trupe teve iniciou em 2007, em Taguatinga, e segue celebrando a memória, a identidade social, a convivência comunitária e a tradição oral dos mamulengos. “Acreditamos que nosso trabalho contribui para a continuidade das brincadeiras e folguedos populares brasileiros e colabora para a consolidação da identidade local e o fortalecimento da cultura popular brasiliense, na medida em que mantemos viva nossa brincadeira caminhando pelas feiras, escolas, teatros e praças do Distrito Federal, dialogando com outros fazeres artísticos e com a comunidade local”, diz Thiago Francisco, um dos integrantes do grupo.
PRÊMIOS E FESTIVAIS
O grupo nasceu no Ponto de Cultura Invenção Brasileira, em Taguatinga, em 2007, com influências de Babau da Paraíba e do mamulengo da Zona da Mata pernambucana. Em 2012, a brincança do Mamulengo Fuzuê recebeu dois prêmios: Mais Cultura: Microprojetos Rio São Francisco e Prêmio Funarte de Teatro na Rua. Já participou de eventos importantes, como o Encontro de Cultura da Chapada dos Veadeiros (2010/2011), Festival Internacional de Bonecos de Brasília (2010), Festa dos Mamulengos do Brasil (2010), XII Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (2013), 11º Festival América do Sul em Corumbá - MS (2014) e Mamulengo de RAPente (2015).
Segundo ele, a brincadeira dos mamulengos de Brasília já tem identidade própria, com influências de Babau da Paraíba e do mamulengo da Zona da Mata pernambucana, criando suas próprias estruturas teatrais e diversificando seus ritmos musicais. “Acredito que o mamulengo é uma forma de dar voz ao povo para contar a história não oficial. É uma brincadeira que pode ser realizada em qualquer espaço, feiras, ruas e praças, dialogando diretamente com o público”, destaca o artista.
O grupo Mamulengo Presepada é outro responsável por manter viva a tradição na cidade. A ideia partiu de Chico Simões, que, antes de criar a própria companhia, percorreu o Nordeste e conviveu com a brincadeira dos mamulengos de lá. Dezenas de brincantes passaram pelo grupo desde sua criação. O Presepada constrói, ao longo dos anos, um trabalho de reconhecimento e identidade na região. Para Chico, a cultura popular permanece além dos modismos e se propaga como identidade de um povo que se reconhece pelos valores simbólicos e identitários que carrega: “Brasília é capital do Brasil, reunião, síntese, reelaboração, diversidade reunida e complexo cultural. Isso é bem particular, é diferente do que se faz em outros estados. Como Brasília foi construída para reunir, para agregar, vieram para cá pessoas de diversos lugares, com culturas diferentes”, diz o artista.
TRADIÇÃO DOS BONECOS
O Mamulengo Presepada surgiu no início dos anos 1980, e Mestre Solón (Carpina, PE), do Mamulengo Invenção Brasileira, foi quem presenteou o grupo com os primeiros bonecos. São mais de 30 anos de estrada, mais de 2.500 apresentações e 25 países visitados. O grupo, criado por Chico Simões , já recebeu diversas premiações, como o Prêmio Betinho, pelo trabalho desenvolvido com crianças que vivem nas ruas de Brasília (1994); Bolsa Virtuose, para pesquisar na Europa a tradição do teatro de bonecos (1998); o Prêmio Mazzaropi - Mestres da Cultura Popular (2012); o Prêmio Myriam Muniz de Teatro pela Funarte (2014). Recentemente, recebeu o Prêmio de Melhor Espetáculo de Rua - Festival Nacional de Teatro de Anápolis (GO).
Chico Simões lembra a chegada do Boi de Seu Teodoro na cidade, que se mantém fiel conservador da tradição daquele vindo do Maranhão. Enquanto isso, o Boi de lá se transformou e recebeu influências de outras manifestações, o que não aconteceu em Brasília, onde Seu Teodoro se manteve conservador. “Quando o Boi de Teodoro se apresentou no Maranhão, fez grande sucesso e passou a influenciar outros bois, que voltaram a brincar conforme a tradição conservada por Mestre Teodoro, de Brasília. Ou seja, às vezes é importante manter uma tradição como ela é, e às vezes é preciso atualizar-se e se renovar para sobreviver e não virar folclore”, afirma Simões.
Se virarmos nossa atenção para a tradição musical da cultura popular, encontramos Zé do Pife e as Juvelinas, que se iniciou em 2007 a partir da primeira oficina de pífano que Zé administrou na UnB. O convite veio de um funcionário da universidade que sempre via o artista e seus pífanos pelo local, enquanto ensinava a tocar o instrumento. “Ele é um dos mestres mais ativos no DF. Já ensinou, ensina e vai ainda ensinar muitos jovens a tocar. Ele ensina também músicas de forró, relembrando a tradição das bandas de pífano”, conta Isa Flor, uma das Juvelinas. O grupo cria também essa tradição nordestina em um cenário diferente, envolvendo o cenário e a cultura local, e seus ensaios acontecem em uma sede perto do espaço de Seu Estrelo.
O trabalho de construção dos artistas passa por arranjos musicais com Zé do Pife, composições próprias e releituras de outros compositores. Além das canções, o grupo cria seus bonecos, danças e brincadeiras, levando um trabalho cênico para seu meio musical. Zé do Pife mora há 25 anos em Brasília e desde então criou um público cativo. Isa Flor acredita que a tradição brasiliense se crie justamente entre essa mistura e reinvenção de ritmos e saberes: “Pesquisamos e nos inspiramos em diversas tradições e as recriamos com o nosso sentimento e nossa identidade”.
BANDA DE PÍFANOS
Mestre Zé do Pife é um pernambucano de São José do Egito, tocador e fabricante de pífanos há 50 anos. Veio para Brasília há mais de 20 anos e em 2007 formou a banda com as Juvelinas. Zé do Pife e as Juvelinas inclui diversas vozes, um pífano principal, três pífanos auxiliares, caixa, pratos, triângulo e zabumba, além de intervenções com instrumentos melódicos como sanfona e rabeca. Mestre Zé do Pife recebeu o Prêmio Culturas Populares - Mestre Humberto de Maracanã, em 2008. Participou do encontro Mestres do Mundo, no Ceará (Limoeiro do Norte, em 2007, e Juazeiro do Norte, em 2008). É Mestre Griô do Ação Griô Nacional, projeto do MinC que premia mestres e seus aprendizes com bolsas para realização de projetos.
A musicista destaca que a cultura popular tem grande importância na formação do indivíduo ao reafirmar suas origens e transformar seu próprio cotidiano. “A cultura oral faz com que tenhamos uma relação mais afetiva, resgatemos esse laço. E a partir desse laço se reconstrói o verdadeiro poder de um povo, de transformar nossa realidade no que realmente é bom para nós”, afirma a artista.