Um olhar sobre a história
Belo Vale e Moeda, na região do Vale do Paraopeba, em Minas Gerais, são lugares que guardam memórias dos tempos do ouro e da escravidão. Preservá-las é um desafio para a cultura brasileira
O casarão imita o estilo colonial das edificações mineiras do século XVIII, mas o que ele abriga representa um capítulo verídico da história do Brasil. Fica em Belo Vale, a 86 km de Belo Horizonte, no Vale do Paraopeba, o único museu do país inteiramente dedicado à escravidão, período que compreende os anos de 1530 a 1888. A importância histórica do lugar atraiu a atenção de professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eles estão mergulhados no processo de requalificação do espaço, que abriga quase 4 mil objetos antigos. A iniciativa faz parte de ação de compensação ambiental do Grupo Gerdau, que atua na região. Além de melhorar a parte estrutural do museu, a meta é inserir reflexões contemporâneas acerca do tema.
O protagonista de toda essa história é o padre belo-valense Luciano Penido, de 94 anos. Há três décadas, ele conseguiu o terreno para construir o prédio no centro do município, atrás da igreja matriz de São Gonçalo da Ponte, de 1764. O lugar passou a ser ocupado por antiguidades que o então administrador da basílica Senhor do Bom Jesus, em Congonhas, conseguiu por meio de doações. “Construí o museu para dar relevo à minha querida cidade e mostrar que a Igreja não era omissa em relação à questão dos escravos”, diz o padre, que atualmente mora no Rio de Janeiro (RJ) e atua na paróquia de Santo Afonso, no bairro da Tijuca.
O casarão de seis cômodos e janelas grandes representa a Casa-Grande. Ao fundo, fica a construção em formato de U, a Senzala, que abriga a reprodução do pelourinho, com a estátua de um negro amarrado em um tronco. “É a parte do museu pela qual as pessoas mais se interessam. Alguns sentem até arrepios”, diz José Felipe Neto, um dos quatro monitores. Lá estão expostos instrumentos de tortura, de trabalho e um túmulo que guarda ossos de um escravo não identificado. Há ainda os objetos que fizeram parte do filme Zumbi – Quilombo dos Palmares, doados pelo cineasta Cacá Diegues.
Mas é na parte interna do casarão que os visitantes têm acesso a uma infinidade de peças: pratarias, utensílios domésticos antigos, imagens sacras e documentos que datam do período da abolição da escravatura. “A sintonia entre o grupo de trabalho, a prefeitura e a comunidade tem sido fundamental”, diz José Eustáquio Machado, coordenador do projeto de requalificação arquitetônica e museológica do espaço e que pretende transformá-lo em mais um polo de cultura da região (veja mapa).
Eduardo França Paiva, professor do Departamento de História da UFMG, também está à frente dos trabalhos de requalificação. Seu objetivo é propor um olhar mais amplo sobre o tema. “É importante reconhecer o papel que os escravos tiveram na construção do Brasil, na forma de falar, de organizar a família e de se relacionar com a fauna e a flora”, diz Eduardo, uma das referências do assunto no país. Ainda de acordo com o professor, outro desejo é o de mostrar que a escravidão não existiu apenas nos engenhos ou casarões, mas também na parte urbana das cidades nos séculos XVIII e XIX.
Responsável pela revitalização museológica, o professor Renné Lommez Gomes está diante de um grande desafio, até porque o museu não será fechado para as reformas. “A mudança é lenta e delicada. Lida com arquitetura e restauro de objetos. Qualquer passo em falso pode colocar tudo em risco”, explica ele, que já trabalhou em outros projetos museográficos importantes, como do Memorial Minas Gerais Vale, na Praça da Liberdade, em BH. Há muito trabalho pela frente, mas Lommez revela que a principal motivação está no entorno do casarão. “Fui seduzido pela forma carinhosa com que a comunidade enxerga o museu”, diz.
Belo-valense e uma das monitoras do espaço, Grasiele Regina Ribeiro ressalta que as visitas vêm aumentando e a ideia é manter a interação, sobretudo, com a comunidade negra da região. “Isso faz parte da história de todos nós”, diz a moça, que participa da festa de congado, realizada em outubro. O museu é um dos pontos de passagem do cortejo. “É a nossa porta de entrada”, diz Eliana dos Santos, secretária de Cultura da cidade e coordenadora do museu. Para ela, o lugar tem um potencial muito grande para atrair mais turistas do país e do exterior.
Apesar de não muito visíveis, algumas ações já foram executadas, como a criação de um banco de dados para catalogação do acervo, um inventário e a contabilidade das peças. Neste segundo semestre, terão início as obras emergenciais, custeadas pela prefeitura da cidade. Cerca de 250 mil reais serão gastos com reparos na fundação, no telhado e nas paredes que apresentam infiltrações. “Aproximadamente 70% dos nossos turistas chegam aqui atraídos pelo museu”, diz José Lapa dos Santos, prefeito de Belo Vale. Motivos não faltam para valorizar e preservar um importante capítulo da nossa história.
ONDE FICA
A 86 km de Belo Horizonte, Belo Vale está cercada por cidades com grande apelo turístico, como Congonhas, Patrimônio Cultural da Humanidade; Bonfim, famosa pelas Cavalhadas no carnaval; Brumadinho, que abriga o Museu Inhotim; e Moeda. A Fazenda da Boa Esperança, que fica a 6 km de Belo Vale, também é outro ponto com grande potencial turístico. Tombada pelo Iepha-MG e erguida no século XVIII, ela será revitalizada, a partir de parceria entre a prefeitura da cidade, governo estadual e Inhotim.
VESTÍGIOS DO OURO
O distrito de São Caetano da Moeda, a pouco mais de 50 km de BH, revela-se como um instigante e precioso monumento a ser descoberto. E parte dessa empreitada já está em curso. Mergulhados em um projeto de preservação do território, professores da UFMG atestaram que a região é um imenso sítio arqueológico, cuja memória está ligada ao período colonial.
No pacato distrito, mais conhecido como Moeda Velha, ruínas de uma antiga fazenda, sede de um complexo de fundição clandestino de ouro, mantêm-se de pé. “Ele funcionou até o ano de 1731, quando foi descoberto pela Coroa portuguesa”, diz o arquiteto e urbanista José Eustáquio Machado de Paiva, também coordenador do Plano de Preservação e Uso Sustentável de São Caetano da Moeda. Assim como em Belo Vale, o projeto está sendo executado com recursos da mineradora Gerdau, fruto de medida de compensação ambiental.
A primeira etapa dos trabalhos foi concluída em junho deste ano. Foram feitos, além da prospecção que constatou a presença de 13 sítios arqueológicos, o projeto de zoneamento, definindo as áreas onde serão permitidas alterações na paisagem, e os planos luminotécnico do conjunto principal – formado pelas ruínas da fábrica e pela igreja de São Caetano – e de resíduos sólidos. As primeiras obras em relação ao projeto paisagístico e urbanístico devem começar até o início do próximo ano. De acordo com José Eustáquio, os trabalhos almejam transformar o vilarejo em mais um importante ponto histórico e cultural do estado.
E haja história. Os vestígios visíveis são do antigo sítio de Boa Vista do Paraopeba, onde se instalou, na primeira metade do século XVIII, Inácio de Souza Ferreira, homem muito influente e ousado da época, que liderou um esquema de fundição de barras de ouro e moedas falsas. “Hoje, sabemos que o selo de fundição era original e os químicos usados também eram de controle dos portugueses”, diz o urbanista. Inácio, portanto, contava com cúmplices da monarquia na empreitada. Apesar disso, foi delatado e o esquema, desbaratado. “Antes da abertura dessa fundição, toda a região era chamada apenas de Paraopeba”, afirma Lidiane Gomes da Silva, historiadora que participou do projeto de pesquisa. Sua função era a de entender como se deu o processo de ocupação da área.
Para Lidiane, a grande mudança aconteceu quando a fábrica de produção clandestina de barras de ouro e de moedas foi instalada. Toda a população começou a viver sob a influência desse complexo. “Isso pode ser comprovado pelo próprio nome do município”, diz a pesquisadora. “As pessoas conhecem o lugar mais como Moeda Velha do que por São Caetano.” De acordo com José Eustáquio, os moradores foram essenciais para que o projeto se tornasse possível. “Se esse lugar está preservado até agora, isso se deve a eles”, reconhece o urbanista. Por isso, a ideia também é criar condições para que as mais de 500 pessoas que moram na região tenham contrapartidas, como a redução de impostos.
O vilarejo, em tese, já devia estar preservado, por se localizar na chamada zona de amortecimento da Serra da Moeda. Contudo, nos últimos anos, surgiram alguns imóveis em desacordo com a lei de preservação. “A ideia é frear esse avanço e empoderar a comunidade para que ela também participe desse processo”, afirma José Eustáquio.
Não é difícil encontrar moradores orgulhosos da história. É o caso de Malbia Aparecida Amorim, dona do restaurante Casa da Moeda Velha, que fica bem no centro do vilarejo. “Este lugar é tudo para mim. Tentei viver em BH, mas não me adaptei”, diz a mulher, que prepara a famosa costelinha na lata, um dos sucessos do estabelecimento. O vilarejo é calmo, principalmente, durante o dia, quando os moradores estão trabalhando.