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ENTREVISTA | MARIA FRANCISCA MAURO »

"A obesidade não é doença mental", diz psiquiatra especialista em transtornos alimentares

Especialista fala sobre as diferenças entre obesidade, anorexia, bulimia e compulsão alimentar, e como podem ser tratadas

Paloma Oliveto - Publicação:19/12/2018 15:59Atualização:19/12/2018 16:16

Em um mundo cada vez mais obcecado pela aparência física, a pressão para se enquadrar nos padrões de beleza rígidos impostos pela indústria da moda adoece a população. No Brasil, não há estatísticas sobre a frequência de transtornos alimentares, mas dados mundiais indicam uma prevalência que vai de 1% a 3,5%. Mulheres, tradicionalmente as mais cobradas pela sociedade, respondem por 80% dos pacientes de anorexia, bulimia e compulsão alimentar. Porém, os casos entre os homens avançam, à medida que eles também começam a se preocupar excessivamente com a utopia do corpo “perfeito”.

 

Recentemente, a psiquiatra paulista Maria Francisca Mauro esteve em Brasília como convidada do 26° Congresso Brasileiro de Psiquiatria, promovido pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), para ministrar um curso e participar de mesas-redondas sobre obesidade. Além de clinicar no Rio de Janeiro e a partir de 2019, no Distrito Federal, a médica é pesquisadora de obesidade, cirurgia bariátrica e transtornos alimentares, e tem diversos artigos científicos publicados a respeito desses transtornos.

 

Nesta entrevista, Maria Francisca Mauro explica que ainda há muito desconhecimento entre o público em geral, o que pode acabar gerando mitos. Por exemplo, nem todo obeso – pessoas com índice de massa corporal acima de 30 – é um comedor compulsivo. Da mesma forma, nem toda pessoa que sofre com episódios de compulsão alimentar é obesa. Ela também esclarece que a cirurgia de redução de estômago não predispõe à dependência: muitos ainda acham que o paciente operado troca o “vício” de comida por álcool, drogas ou sexo, por exemplo. O ambiente familiar é fundamental para evitar que os transtornos se instalem, afirma a psiquiatra. Nas casas onde há controle rígido da alimentação, com excesso de proibições e de preocupação com o peso, o risco é maior. “Os pais devem proporcionar refeições de uma forma tranquila: o hábito de comer deve ser um ato da família”, afirma.

QUEM É 
Maria Francisca Mauro, 
37 anos 


ORIGEM
: Barretos (SP)

FORMAÇÃO: Graduada em medicina pela Universidade Federal de Goiás, 
fez residência em psiquiatria 
na Universidade do Estado 
do Rio de Janeiro (UERJ)

CARREIRA: Pesquisadora colaboradora 
no Programa de Obesidade 
e Cirurgia Bariátrica 
do Hospital Universitário Clementino Fraga. Participante 
do Grupo de Obesidade 
e Transtornos Alimentares 
do Instituto de Psiquiatria 
da Universidade Federal 
do Rio de Janeiro (UFRJ) (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
QUEM É
Maria Francisca Mauro, 37 anos

ORIGEM : Barretos (SP)
FORMAÇÃO: Graduada em medicina pela Universidade Federal de Goiás, fez residência em psiquiatria na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
CARREIRA: Pesquisadora colaboradora no Programa de Obesidade e Cirurgia Bariátrica do Hospital Universitário Clementino Fraga. Participante do Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
 

 

ENCONTRO BRASÍLIA – O que são transtornos alimentares? A obesidade seria um deles?

 

MARIA FRANCISCA MAURO – Quando falamos de transtornos alimentares, nós nos referimos a anorexia, bulimia nervosa e ao transtorno compulsivo alimentar. Temos outros subtipos, como o transtorno purgativo, mas, em termos de classificação clínica, esses são os principais diagnósticos. Em psiquiatria, temos um sistema de classificação que se chama DSM, feito pela Associação Psiquiátrica Norte-americana, e que vale no mundo todo. Nessa classificação, temos um capítulo de transtornos alimentares, com esses principais tipos e outros subtipos. Já a obesidade não é doença mental. Existem algumas questões de alteração de comportamento mais presentes nos obesos, mas isso não significa que tenham um transtorno. A obesidade está ligada a questões endocrinológicas. Não podemos associá-la à doença mental: é uma doença complexa do ponto de vista genético, psicológico, familiar.

 

 

Então nem todo obeso tem compulsão alimentar?

 

Entre 40% e 50% das pessoas com obesidade têm alterações de comportamento alimentar, não só compulsão. A compulsão alimentar é quando a pessoa come por uma, duas horas, de forma descontrolada, uma quantidade de comida que outras pessoas não conseguiriam ingerir. Por exemplo, comer seis pacotes de bolacha mais um pote de dois litros de sorvete. Um episódio de compulsão alimentar, na realidade, caracteriza-se pelo fato de a pessoa se sentir descontrolada, não conseguir inibir aquela ação e comer uma grande quantidade de comida. Depois, ela vai sentir muito sofrimento. Fica muito deprimida, angustiada, sente que não consegue se controlar. Mas é diferente, por exemplo, da gula, que, em termos técnicos, se chama hiperfagia – hiper de muito e fagia, do grego, comida. O que muitos obesos têm é hiperfagia. São aquelas pessoas gulosas, mas que não têm sensação de descontrole, de ficarem perturbadas. Podem ficar um pouco arrependidas, mas nada que cause sofrimento. No episódio de compulsão, a pessoa come muito mais rápido que o normal, tem vergonha.

 

 

E quando o obeso não tem o problema?

O obeso do grupo que não tem compulsão alimentar é aquele que tem gula e ingere alimentos muito calóricos, que contribuem para o aumento do peso. Então, há um grupo de obesos que vai precisar de acompanhamento psiquiátrico, e outro grupo que não, que precisa é de mudança de estilo de vida e de investigação clínica, caso tenha alguma alteração metabólica. Agora, pacientes com obesidade têm mais chance de ter depressão. A depressão é um fator de risco para a pessoa evoluir para a obesidade tanto quanto a obesidade aumenta a chance de depressão.

 

 

A depressão também é fator de risco para os transtornos alimentares?

 

Não. A depressão é um transtorno de humor, mas não há associação de fator de risco, devido aos mecanismos químicos envolvidos na depressão. A obesidade é um estado inflamatório, com alterações bioquímicas, que compartilham algumas características em comum com a depressão. Isso não acontece em relação à anorexia e à bulimia, nem ao transtorno de compulsão alimentar.

 

 

A frequência dos transtornos alimentares tem associação com o ambiente em que a pessoa vive?

 

Tem. Os que mais sofrem influência do meio são a bulimia e a compulsão alimentar. A anorexia tem muita influência genética, trata-se de um conjunto de genes que são marcadores comuns para outras doenças, como enxaqueca e transtorno obsessivo compulsivo. Mas, mesmo herdando os genes, a pessoa não necessariamente terá anorexia. O meio influencia muito os transtornos alimentares quando há uma pressão para se ter uma aparência magra, quando isso é o objetivo principal da vida da pessoa. É por isso que modelos, atletas, pessoas que trabalham com sua imagem pessoal e estudantes de saúde, principalmente de nutrição, estão no grupo de risco. Além disso, quando os pais pressionam muitos os filhos a terem uma alimentação muito rígida, esse ambiente de cobrança exagerada também é um fator de risco. Começar uma dieta é um fator de risco. O início desses quadros, principalmente de anorexia e bulimia, se dá a partir do momento em que a pessoa começa uma dieta muito restritiva, a ter uma limitação muito grande na quantidade de comida. Isso pode favorecer o desenvolvimento de uma perturbação em relação à comida.

'Pacientes que 
têm obesidade têm mais chance de ter depressão. A depressão é um fator de risco para a pessoa evoluir para a obesidade tanto quanto 
a obesidade aumenta a chance de depressão', conta a psiquiatra Maria Francisca Mauro (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press )
"Pacientes que têm obesidade têm mais chance de ter depressão. A depressão é um fator de risco para a pessoa evoluir para a obesidade tanto quanto a obesidade aumenta a chance de depressão", conta a psiquiatra Maria Francisca Mauro
 

 

Qual é o transtorno alimentar mais frequente na população?

 

Não temos dados de prevalência e incidência no Brasil. Tem um estudo, ainda inicial, que vai medir a incidência e a frequência do transtorno da compulsão alimentar no Rio de Janeiro. Mas, em termos mundiais, o mais frequente é o da compulsão alimentar. A anorexia tem uma frequência de 1%, a bulimia em torno de 2%. E o transtorno da compulsão alimentar em torno de 3,5%, então esse último é o mais comum.

 

 

É possível ter mais de um transtorno alimentar ao mesmo tempo?

 

Não. O critério diagnóstico da anorexia é o paciente ter um índice de massa corporal (IMC) menor que 17, apresentar alterações em relação à alimentação, ter preocupação com a forma, o peso: esse é o objetivo principal da vida dele. Aí temos os subtipos da anorexia. A restritiva é quando a pessoa restringe o que come. Geralmente são pacientes muito perfeccionistas em relação à comida. Se vai comer uma ervilha é só uma ervilha. E tem a anorexia purgativa. Ela tem IMC abaixo de 17, faz a restrição, mas come um pouco mais e, depois, faz comportamentos compensatórios: pode usar laxante, diurético, praticar exercício físico muito intenso, jejuar, com objetivo de perder peso e diminuir o desconforto que ela tem com a forma física. Isso é a anorexia.

 

 

Bulimia é diferente?

 

A bulimia é quando uma paciente que tem um IMC maior que 17,5, apresenta episódios de compulsão, tem um desconforto com relação à alimentação, come uma grande quantidade de comida e depois fica perturbada. A paciente bulímica exerce métodos compensatórios para evitar isso. Ela pode fazer exercícios por até seis horas por dia. Já no transtorno da compulsão, acontecem esses episódios compulsivos, mas a pessoa não faz, como na bulimia, os métodos compensatórios. Ela sofre, mas não faz nada para compensar aquilo que comeu descontroladamente.

 

 

Mulheres são mais suscetíveis?

 

Cerca de 80% dos pacientes são mulheres. Mas sabemos que vem aumentando o número de casos entre homens. Entre as mulheres, existe a busca por ser magra. Nos homens, é uma busca por ter um corpo mais definido, mais “sarado”. Os homens também estão sofrendo pressão por aparência, mas sem dúvida a pressão é muito maior sobre as mulheres. Além disso, a mulher sofre com questões hormonais, que fazem oscilar mais o peso.

 

Como os pais podem identificar se os filhos sofrem transtornos alimentares?

 

O mais importante que temos de discutir é que as famílias muito preocupadas com a forma, que têm obsessão pelo corpo ou por uma alimentação muito perfeita podem gerar na criança um estresse em relação à alimentação. São aquelas famílias que proíbem uma série de alimentos. Os pais devem ficar atentos a isso e proporcionar refeições de uma forma tranquila. O hábito de comer deve ser um ato da família. Os pais também devem ver se o filho não está perdendo muito peso, passou a se isolar, mudou seus hábitos. Outro ponto é observar se o filho já está magro e acha que está gordo, se ele passa a evitar ambientes que têm exposição do corpo, se deixou de ir a uma festinha porque achou que estava gordo, se fica com vergonha do próprio corpo. Se isso acontece, há um indício de que, para ele, a comida é um ponto de sofrimento.

 

A psiquiatra Maria Francisca Mauro, especialista em transtornos alimentares, explica: 'O início dos quadros de anorexia e bulimia se dá quando a pessoa começa uma dieta muito restritiva, o que pode favorecer uma perturbação em relação 
à comida' (Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/DA Press)
A psiquiatra Maria Francisca Mauro, especialista em transtornos alimentares, explica: "O início dos quadros de anorexia e bulimia se dá quando a pessoa começa uma dieta muito restritiva, o que pode favorecer uma perturbação em relação à comida"
 

Como é o tratamento dos transtornos alimentares?

 

O tratamento é sempre integrado, composto por uma equipe de psiquiatra, nutricionista, psicólogo. De acordo com o nível de gravidade, o paciente pode fazer o tratamento desde uma forma ambulatorial, ou seja, indo ao consultório, ou até mesmo pode ter uma indicação de internação. Às vezes, a pessoa entra em risco de morte iminente e precisa ser alimentada por sonda, principalmente quando tem anorexia. Em termos de transtornos mentais, a anorexia é a que mais mata, porque a pessoa pode entrar em falência de múltiplos órgãos.

 

 

No Congresso Brasileiro de Psiquiatria, a sra. também falou sobre mitos a respeito da cirurgia bariátrica. Quais são eles?

 

Para fazer a cirurgia bariátrica, o paciente precisa ter IMC acima de 35 e alguma comorbidade clínica ou ter IMC acima de 40. Esses são os critérios para indicação. Só pacientes com grau 2 ou 3 de obesidade podem ser operados, então não é para qualquer caso de obesidade. Em termos de mito, escutamos que a pessoa fez a cirurgia e se tornou viciada, trocou a compulsão da comida por compulsão por sexo, álcool. Tem um tipo de cirurgia, a bypass, que pode, sim, acarretar um maior risco de, pós-cirurgia, uso abusivo de álcool, porque a forma como a cirurgia modifica o estômago e o intestino modifica também a maneira como o álcool é metabolizado. Em algumas pessoas, o álcool circula mais na corrente sanguínea e dá um efeito maior, então, a pessoa pode tender a usar o álcool de forma abusiva. Lembrando que isso não vale para os outros tipos de cirurgia. Com relação a essa questão de ser viciada em comida e no pós-operatório ser viciada em outras coisas, isso é um mito. Até porque o paciente não necessariamente era viciado em comida antes de operar.

 

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