Aberta à comunidade, a Universidade de Brasília guarda tesouros em seu setor de Obras Raras
Há desde manuscritos da Idade Média vindos de Portugal a exemplares originais do Correio Braziliense, de José Hipólito, fundado no século XIX
“No Egito, as bibliotecas eram chamadas de ‘tesouro dos remédios da alma’. De fato, é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades, e a origem de todas as outras.” A frase, do teólogo Jacques Bossuet, produzida no século XVII, não poderia ser mais verdadeira. Para quem mora ou visita Brasília, uma rica “farmácia” com mais de 1,5 milhão de livros e periódicos está à disposição da população de segunda a sexta. Trata-se da Biblioteca Central da Universidade de Brasília (BCE), inaugurada na década de 1960 e que atende não apenas os alunos e professores da instituição, mas toda a comunidade.
Nesse templo do saber, uma coleção em particular guarda tesouros preciosos. Com 13,5 mil livros, 10 mil periódicos, 60 mil documentos, 3,6 mil ex-libris (rótulos personalizados que, colados nos livros, identificam a quem eles pertencem) e três pergaminhos medievais do século XIV, a sessão de obras raras da BCE é uma mina de ouro para pesquisadores e garante a conservação de peças que, seja pela antiguidade seja pela singularidade, merecem preservação especial no acervo.
Para que o público possa contemplar algumas dessas preciosidades, o setor organizou uma pequena mostra permanente, aberta à visitação. “A ideia é dar um pouco de representatividade ao nosso acervo”, explica Raphael Greenhalgh, coordenadador de formação e desenvolvimento de acervos da BCE. O setor de obras raras também organiza visitas agendadas. Já os pesquisadores podem consultar e manusear os livros e documentos, embora não seja possível tomá-los emprestados.
Greenhalgh explica o que caracteriza a raridade de uma obra: “Existem 27 critérios que as diferem do restante do acervo. Mas, no geral, seria o período ou contexto histórico, a relevância cultural ou um elemento adquirido depois da publicação, como uma dedicatória”, diz. “Raro não significa difícil acesso. O importante não é a biblioteca ter obras raras, mas sim garantir e permitir de forma adequada o acesso ao que é raro. A BCE tem uma coleção muito boa de documentos raros que são bem conservados e divulgados de forma competente”, observa o doutor em ciência da informação Ricardo Rodrigues Crisafulli, consultor técnico do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e ex-presidente da Associação dos Bibliotecários do Distrito Federal.
A sessão de obras raras existe desde 1962, quando a BCE foi inaugurada. Seis anos depois, ocupando o prédio definitivo, a instituição organizou o setor que, a essa altura, já contava com um importante acervo, incluindo os manuscritos medievais portugueses. Entre as principais coleções, Greenhalgh destaca as do deputado constituinte Homero Pires (1887-1962), do médico e escritor mineiro Pedro Nava (1903-1984), do crítico literário Agripino Grieco (1888-1973) e do político Carlos Lacerda (1914-1977). Deste último, a sessão conta com nada menos que 60 mil documentos, divididos em vida pessoal, política, empresarial e produção intelectual. O acervo Lacerda pertencia a uma biblioteca particular e foi comprada pela BCE.
Com 10 mil peças, a coleção de periódicos é composta por importantes títulos da imprensa brasileira, como o Correio Braziliense editado em Londres no século XIX; a revista modernista Klaxon, que circulou entre 1922 e 1923; a Revista Brasileira, criada em 1855, e várias publicações de oposição à ditadura militar, como O Pasquim. De Portugal, a BCE tem exemplares da Revista Portuguesa, dirigida pelo escritor Eça de Queiroz, e da Farpas, que contava, além de Queiroz, com o escritor português Ramalho Ortigão.
No acervo de livros, a obra impressa mais antiga do setor de Obras Raras é o Epistolarum, uma coleção de cartas do naturalista romano Caio Plínio II, que viveu no século I d.C. A impressão é de 1533. Um pouco mais “novo”, o exemplar do Barleus, que narra os feitos de Mauricio de Nassau no Brasil, é de 1647 e traz 53 ilustrações de costumes brasileiros, além de mapas. Greenhalgh também destaca o Dicionário Português-Português mais antigo de que se tem notícia, de 1720.
Embora não sejam antigos, 23 livros da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, que existiu entre 1943 e 1966, também são destaque no setor de obras raras e já foram tema de dissertação de mestrado na UnB. Esse grupo foi criado pelo mecenas e industrial Carlos Maya e composto por empresários e intelectuais que, em comum, amavam os livros. Por ano, era impressa uma obra, ilustradas por artistas como Di Cavalcanti, Portinari, Djanira e Enrico Bianco. A BCE é uma das poucas bibliotecas do país que tem a coleção completa.
Guardados em um cofre climatizado, estão o Livro das Aves, o Flos Sanctorum e o Diálogos de São Gregório, manuscritos medievais produzidos em um mosteiro de Portugal no fim do século XIV. As três obras foram escritas pouco tempo depois de o português se separar do galego e chegaram à UnB em 1964, compradas da coleção de Serafim da Silva Neto, um dos mais importantes especialistas brasileiros em língua portuguesa. São tão importantes que inspiraram a universidade a criar um programa de estudos medievais e já renderam cerca de 30 trabalhos acadêmicos, nos níveis de graduação, mestrado e doutorado.
Os pergaminhos são obras religiosas e eram muito populares no período medieval. Segundo Greenhalgh, os manuscritos que estão na UnB são raríssimos: o Diálogos de São Gregório é um dos quatro do mundo escritos na língua portuguesa. Já o fragmento do Livro das Aves e o Flos Sanctorum são, até onde se sabe, os únicos manuscritos existentes em português. Atualmente, as três obras estão sendo catalogadas pela historiadora Juliana Medeiros e pelo aluno de mestrado Thiago Veloso. Juliana se formou na UnB e seu trabalho de conclusão de curso foi sobre o Livro das Aves. “O padrão dos três manuscritos, que provavelmente foram feitos pela mesma pessoa e talvez formassem um único volume, é muito diferente dos demais. O Thiago e eu queremos responder a várias perguntas sobre a origem deles”, conta a historiadora.
SAIBA MAIS
èO setor de obras raras fica no 1º andar da Biblioteca Central da Universidade de Brasília e funciona de segunda a sexta, das 7h às 13h. Visitas guiadas e outras informações: (61) 3107-2684 e obrasraras@bce.unb.br
ACERVO PARA VER
Confira alguns dos destaques do setor de Obras Raras da Biblioteca Central da UnB
èLivro das Aves
O bestiário medieval (foto) é o único dos três rico em iluminuras. Resta apenas um fragmento do original: há nove fólios, que usam as aves para ensinar lições de moralidade aos monges
èFlos Sanctorum
Embora faltem algumas páginas, o manuscrito de 81 fólios está bem conservado. Traz narrativas de milagres. A letra P colorida e grande marca o início de um capítulo – na escrita medieval, não havia pontuação
èDiálogos de São Gregório
Bem preservado, o manuscrito de 160 fólios traz as pregações que teriam sido escritas pelo papa Gregório Magno. As capitulares são decoradas com filigranas e uma delas traz a figura de um monge dentro da letra C
èEx-Libris
A coleção já contava com 1,7 mil ex-libris e, recentemente, ganhou outros 3,6 mil, como doação da família do artista e colecionador Jorge de Oliveira. Há rótulos criados pelo próprio Oliveira. A maioria foi produzida por artistas brasileiros, embora muitos sejam internacionais
èArquivo Carlos Lacerda
Cerca de 60 mil documentos, divide-se nas séries vida pessoal, produção intelectual, vida empresarial e vida política, com materiais entre os anos de 1883 e 1977