Muito mais que um lago bonito: a história do Paranoá começou no século XIX
História é recriada diariamente por brasilienses que reconhecem o espelho d'água como parte de suas vidas
É possível que a pressa do rio Paranoá – um flume veloz cujas corredeiras cortavam Planaltina e Luziânia – em contornar topografia pedregosa do cerrado fosse para compensar o que lhe fariam em 1959: represadas para formar o lago Paranoá, suas águas tornaram-se rigorosamente quietas. Não fi caram, porém, menos vivas. Não fosse o paredão erguido com 684 mil metros cúbicos de pedra e a força de 1,2 mil a 3 mil candangos – os registros não são precisos –, as águas do rio Paranoá seguiriam intrépidas pela depressão que, antes da barragem, era coberta de mata alta e densa.
Apesar da pressa, o rio não pôde fugir de seu destino, previsto no fi m do século XIX pelo francês Auguste Glaziou. Convidado por dom Pedro II, o botânico e engenheiro civil desembarcou no Brasil para repaginar os jardins imperiais. Apesar de importantes obras, seu maior feito foi profetizar o represamento do rio Paranoá e a criação de um lago com mesmo nome quando integrou a 2a Missão Cruls, entre 1892 e 1896. “Além da utilidade da navegação, a abundância de peixe, que não é de somenos importância, o cunho de aformoseamento que essas belas águas correntes haviam de dar à nova capital, despertariam certamente a admiração de todas as nações”, disse.
Lúcio Costa explica, no Relatório Descritivo do Plano Piloto, que evitou residências próximas da orla para preservá-la: “O lago Paranoá foi fundamental desde o início e não foi proposta minha. [...] o lago foi uma peça fundamental na proposta da nova capital. Acho, de fato, que se deve tornar o lago mais acessível para a maioria da população”. O secretário de Estado do Meio Ambiente, José Sarney Filho, compartilha dessa opinião. Ele defende que o lago é um patrimônio de todo o DF. “O acesso à orla deve ser o mais democrático possível. Por isso, estamos melhorando a infraestrutura dos parques e levantando as áreas degradadas. Nosso trabalho será focado em recuperar nascentes e matas ciliares, além de incentivar a criação de agroflorestas”, diz.
O lago Paranoá não é importante O lago Paranoá não é importante apenas durante a seca, quando trabalha pela manutenção da umidade do ar. Durante o ano inteiro recebe atletas, pesquisadores e pescadores, entre outros tantos públicos que desenvolvem as mais variadas atividades em suas águas. Aos 14 anos, Júlia Vilas Boas de Azevedo Sampaio é especialista quando o assunto é o espelho d’água. Velejadora desde os 11, ela diz que os ventos são inconstantes em direção e velocidade, o que exige muita atenção dos atletas. “No período da seca, entre os meses de julho e agosto, há ventos com rajadas acima de 20 nós (cerca de 30 km/h). Em razão disso, o lago forma grandes velejadores. Os irmãos Torben e Lars Grael aprenderam a velejar aqui mesmo”, conta Julia, que conquistou, em janeiro, a terceira colocação na categoria sub-16 feminina do Campeonato Brasileiro da Classe Laser 4.7, em Niterói (RJ).
Cristiano Silva, de 40 anos, curte o lago de um jeito mais pacato: pescando. Ele reserva o momento para contemplação. “Apesar de o lugar necessitar de mais policiamento e cuidados com a infraestrutura, é um espaço em que posso espairecer e sair um pouco da rotina”, diz o analista de sistemas que, apesar da concentração, ainda não fisgou nenhum peixinho.
Ao contrário dele, Geraldo Gonçalves da Cruz sustentou 13 filhos apenas vendendo pescados por ele mesmo no lago Paranoá. Aposentado, o cearense de 77 anos chegou a Brasília na década de 1960. Sempre trabalhou como pescador, vendendo principalmente carpas e tilápias, mas também tucunarés, surubins e tambaquis. “Pescando com tarrafas e redes, conseguia até 100 quilos de peixe em um dia de trabalho e vendia por todo o Distrito Federal. A fiscalização sempre estava em cima, mas a pesca era, e ainda é, o sustento de muitas pessoas”. Geraldo já viu jacarés, sucuris, lontras, ariranhas e capivaras no lago. “Mas também vi coisas estranhas, como defuntos. O lago tem muita história”, relembra o pioneiro.
Apesar de muitas pessoas ganharem a vida pescando no Paranoá, poucos estabelecimentos assumem comercializar os pescados. Ainda assim, os peixes são vendidos em feiras de todo o DF, como as de Samambaia e Ceilândia. E, para os especialistas, essa atividade é importante e necessária para o equilíbrio e limpeza do espelho d’água. Mauro César Lambert de Brito Ribeiro, gerente do Centro de Estudos Ambientais do Cerrado, na Reserva Ecológica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em Brasília, explica que carpas, por exemplo, reviram o fundo do lago, onde parte dos resíduos da Caesb fica depositada. Por isso, a quantidade desses peixes deve ser controlada.
“Esse comportamento dos peixes faz com que fósforo e nitrogênio, que não são completamente removidos pela Caesb, voltem para a superfície da água. São nutrientes importantes para o crescimento de algas que poluem o lago”, conta.
Lambert desenvolveu, há pouco mais de uma década, um trabalho junto à Companhia de Saneamento para despoluir o Paranoá. Ele e o pesquisador Fernando Starling, da Caesb, concluíram que não bastava ter uma das melhores tecnologias de purificação de esgoto para manter o lago limpo: é preciso controlar os peixes que agravam a poluição. A solução, na época do estudo, era inserir a carpa prateada – que purifi ca a água – e autorizar a pescaria ambiental de algumas espécies, o que incluía também capacitar os pescadores para a atividade. “Após uma série de estudos, apresentamos ao Conselho de Recursos Hídricos do DF um projeto de lei que regulariza a pesca no lago. O problema é que ele está parado há 15 anos. Mesmo que fosse considerado, hoje, precisaríamos refazer os estudos para verifi car se as condições da água são as mesmas”. Na época, os cientistas encontraram 25 espécies de peixes no lago, sendo 14 delas exóticas (como carpas, tilápias, tucunarés) e 11 nativas, por exemplo lambaris e cascudos.
Ricardo Moreira é gerente de monitoramento da qualidade da água da Caesb. Segundo ele, a companhia começou a monitorar o lago na década de 1970 para estudar o adensamento populacional na produção de esgoto e os efeitos na água. “Para a balneabilidade, monitoramos 33 fontes e verificamos a concentração de coliformes fecais, por exemplo. A partir disso, determinamos o que é natural e o que não é”, diz. Moreira explica que as estações de tratamento têm controle muito rigoroso e os processos são verifi cados em tempo real. “Em termos de laboratório, já fi zemos mais de 20 mil análises da água nos primeiros meses de 2019. Consideramos o lago limpo e soltamos sempre mapas de balneabilidade para que a população tenha segurança na recreação.”
LINHA DO TEMPO DO PARANOÁ
1894 – 1895
èNa Segunda Missão Cruls, Auguste Glaziou sugere a criação de um lago na Nova Capital
1955
èRelatório da Comissão de Localização da Nova Capital prevê novamente a criação do lago
èJuscelino Kubitschek é eleito
1956
èEdital do concurso para projeto do Plano Piloto prevê um lago
èIsrael Pinheiro anuncia início das obras do lago
1957
èO projeto de Lúcio Costa é escolhido
èConcluído anteprojeto da usina hidrelétrica
1959
èFecha-se a barragem do Paranoá.
èMinistério da Agricultura traz 1,5 mil peixes para o lago