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O cerrado está na mesa

Mais do que nunca, chefs de Brasília valorizam produtos da região na criação de pratos

Julyerme Darverson - Publicação:13/12/2019 13:14Atualização:13/12/2019 14:43

Quem conhece o cerrado, o segundo maior bioma brasileiro no país e de suma importância para o ecossistema, sabe das particularidades de sua fauna e flora, com belas paisagens naturais e clima quente, podendo ter longos períodos de chuva e de seca. O que muita gente não conhece ainda são suas riquezas gastronômicas, com sabores peculiares, que vêm se tornando fontes de estudos para pesquisadores e que ganham cada vez mais força na cozinha, principalmente em restaurantes de Brasília.

Frutos e sementes
típicos do cerrado:
a alta gastronomia
valoriza os sabores
regionais (Wallace Martins/Esp. Encontro/DA Press)
Frutos e sementes típicos do cerrado: a alta gastronomia valoriza os sabores regionais
 

Chefs da capital federal se unem em movimentos para popularizar os ingredientes e resgatar parte da cultura local, que vem se perdendo com o crescimento das cidades e o avanço da tecnologia. Eles levam também os seus conhecimentos mundo afora, seja com a criação de pratos, releituras de receitas tradicionais ou até mesmo compartilhando seus aprendizados em eventos do setor. Do já conhecido pequi às novas descobertas, não falta sabor à mesa. Cagaita, maracujá- -pérola-do-cerrado, buriti, cajuzinho- -do-cerrado, castanha-de-baru, baunilha-do-cerrado, pimenta-de-macaco, macaúba, guariroba e jatobá são apenas alguns dos ingredientes que podem ser utilizados na cozinha.

 

Um dos pioneiros na utilização de insumos oriundos da região em suas receitas é o chef Francisco Ansiliero, à frente do restaurante Dom Francisco. Embora seja nascido em Videira (SC), o cozinheiro, que acaba de completar 80 anos de idade, nutre uma forte paixão pelo bioma. “Muitas das minhas descobertas foram feitas por meio de conversas com moradores que viviam na região antes mesmo da construção da capital federal.” Segundo ele, embora seja uma cidade muito nova, Brasília precisa fazer um resgaste gastronômico de tudo que havia antes de ela ser fundada. “São receitas e técnicas muito únicas e que valorizam os ingredientes do cerrado, que é muito lindo e rico”, diz Ansiliero.

Francisco Ansiliero, chef-proprietário do Dom Francisco, é um
pioneiro no uso dos produtos da região em sua cozinha: 'Os
pratos com os ingredientes do cerrado proporcionam uma
explosão de sabores e dão uma variedade de combinações' (Wallace Martins/Esp. Encontro/DA Press )
Francisco Ansiliero, chef-proprietário do Dom Francisco, é um pioneiro no uso dos produtos da região em sua cozinha: "Os pratos com os ingredientes do cerrado proporcionam uma explosão de sabores e dão uma variedade de combinações"
 

Para o chef Marcelo Petrarca, que comanda as cozinhas do Bloco C, Lago Restaurante e Reverso e acaba de ser premiado em sua categoria por Encontro Gastrô – O Melhor de Brasília 2019, o cerrado compõe muito a história de Brasília e ajuda numa busca de identidade própria. “Ele é nosso quintal. É quem dá muito do que temos e reflete um pouco do que somos. Os produtos, muitas vezes, não são valorizados, mas estamos tentando popularizá-los e levá-los a um patamar que ele real - mente merece”, afirma.

 

Outro nome que vem fazendo um trabalho de fomento desses produtos é a chef Mara Alcamim, do Universal. Para ela, a região é fonte de inspiração e força, pois sofre muito com a seca e grandes queimadas, mas sempre renasce. “As pessoas olham para esse importante bioma de uma forma muito simples. Há 10 anos, insiro o cerrado na minha cozinha. Mas, isso tem muita influência pelo meu contato, na infância, com os frutos que já estavam ao meu redor, espalhados por várias partes da cidade e no ambiente familiar”, diz.

A chef Mara Alcamim recomenda
o uso de furos típicos em molhos
e risotos: no seu restaurante
Universal, o destaque vai para
a carne de porco na lata com
vinagrete de maracujá-pérola (Wallace Martins/Esp. Encontro/DA Press)
A chef Mara Alcamim recomenda o uso de furos típicos em molhos e risotos: no seu restaurante Universal, o destaque vai para a carne de porco na lata com vinagrete de maracujá-pérola
 

Lui Veronese também faz questão de exaltar o cerrado por onde vai. Em sua participação em um reality show gastronômico na TV, o chef citou o bioma e destacou o seu amor e dedicação para que os ingredientes ganhem maior visibilidade dentro da culinária nacional. “A riqueza do cerrado é pouco valorizada, principalmente na gastronomia. Como cozinheiro, procuro explorá-lo da melhor forma, valorizando nossos ingredientes e fortalecendo a produção local. Faço isso com a intenção de preservar o que temos e com um esforço enorme para que isso sobreviva”, explica Lui. Para Marcelo Petrarca, o problema é encontrar os produtos o ano inteiro: “Acho que o único empecilho é a sazonalidade, pois ela atrapalha a difusão dos produtos do cerrado”.

 

Nos pratos, os chefs procuram explorar o máximo que podem. Utilizam os insumos em diversas receitas. No Dom Francisco, é possível provar um frango grelhado – que pode ser substituído por um robalo, por exemplo – com um surpreendente molho de pequi com cajuzinho-do-cerrado, acompanhado de um saboroso e aromático arroz com lascas de buriti e de guariroba, feito com óleo de buriti. “Os pratos com os ingredientes do cerrado proporcionam uma explosão de sabores e dão uma variedade de combinações. Nesse prato, a agressividade do pequi é suavizada com o cajuzinho, que cria um aroma diferenciado ao molho”, explica Ansiliero.

 

Lui Veronese gosta de apresentar o prato criado por ele em tributo ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, que sofreu, nos últimos anos, grandes queimadas por causa da seca e de incêndios criminosos. “Busco um propósito para cada prato que faço, envolvendo muito sabor, mas que tenha uma razão, um motivo, uma ideia, sempre entre seus ingredientes”, conta, ao explicar o preparo, que representa um tronco retorcido (feito de chocolate), sem folhas, em cima de uma terra escura (representada por uma farofa de brownie), que cobre a castanha-de-baru, com ganache de maracujá-pérola-do - -cerrado, creme de cagaita e molho de cajuzinho-do-cerrado com pequi. “São cinco elementos do cerrado que estão ali, debaixo da terra, comestíveis. Conforme você vai ‘cavando’ e comendo, vai sentindo todo o sabor do cerrado ali”, conta.

Lui Veronese criou um prato em homenagem à
Chapada dos Veadeiros, em Goiás: receita do chef leva
castanha-de-baru, maracujá-pérola-do-cerrado,
cagaita, cajuzinho-do-cerrado e pequi (Rafael Facundo/Divulgação )
Lui Veronese criou um prato em homenagem à Chapada dos Veadeiros, em Goiás: receita do chef leva castanha-de-baru, maracujá-pérola-do-cerrado, cagaita, cajuzinho-do-cerrado e pequi
 

No Universal, o destaque vai para a carne de porco na lata com vinagrete de maracujá-pérola. “Gosto de trabalhar os frutos do cerrado em molhos e risotos. Outras formas de usá-los são em receitas com proteínas, como o porco, peixe, frango e pato, por exemplo”, diz Mara Alcamim. Outra sugestão do cardápio é o creme de pequi com pamonha frita.

 

A boa pedida no Lago Restaurante é um peixe branco com crosta de baru, pupunha assada e queijo canastra. Quem gosta de sobremesa, no Bloco C pode encontrar uma canjica com baunilha-do-cerrado. “Por ser um produto de característica forte, demoramos mais a achar algo que combine ou uma técnica que caiba na preparação. O baru e o cajuzinho são os mais aceitos entre o público. A baunilha está em ascensão e os frutos combinam muito bem nas sobremesas, principalmente em forma de sorvete”, afirma Petrarca.

Marcelo Petrarca
diz que o cerrado é
o quintal de Brasília:
'Estamos tentando
popularizar os produtos
e levá-los a um patamar
que ele realmente
merece', afirma o chefproprietário do Lago,
Bloco C e Reverso (Wallace Martins/Esp. Encontro/DA Press)
Marcelo Petrarca diz que o cerrado é o quintal de Brasília: "Estamos tentando popularizar os produtos e levá-los a um patamar que ele realmente merece", afirma o chefproprietário do Lago, Bloco C e Reverso
 

A valorização do cerrado vai além dos restaurantes. Escolas e projetos já utilizam a temática como ponto central de suas aulas. É o caso do Senac, com o projeto Ação Móvel. No curso de gastronomia, ministrado pela professora Maria Eliete da Silva Alves, os alunos também participam, levando ideias de novas receitas e produtos que encontram no meio da mata, em Planaltina, onde o curso acontece. “Estamos trazendo para a sala de aula o uso dos produtos do cerrado. Na aula de pizzaiolo, por exemplo, temos farinha de jatobá, massas à base de pequi e recheios com baru, castanha de pequi, buriti, pequi e mangaba”, diz a professora.

 

Maria Eliete conta que frutos, como o jatobá e a macaúba, podem ser usados em forma de farinha ou massas no preparo de pizzas, pães e até mesmo em mingaus. Aos alunos, a professora ensina a fazer pizzas com os recheios mais inusitados, como pequi e buriti. “É uma combinação que traz até valores nutritivos bem importantes. Meus alunos já estão familiarizados com os ingredientes que, muitas vezes, são eles que colhem e trazem para a aula”, diz.

A professora Maria Eliete Alves leva o cerrado até mesmo para a aula de
pizzaiolo: farinha de jatobá, massas à base de pequi e recheios com baru,
castanha de pequi, buriti, pequi e mangaba estão na composição de pizzas (Wallace Martins/Esp. Encontro/DA Press)
A professora Maria Eliete Alves leva o cerrado até mesmo para a aula de pizzaiolo: farinha de jatobá, massas à base de pequi e recheios com baru, castanha de pequi, buriti, pequi e mangaba estão na composição de pizzas
 


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