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'Violência obstétrica é negligenciada do ponto de vista jurídico e social', afirma autora de documentário

Além de ser de difícil comprovação, os casos de violência obstétrica reviram sentimentos dolorosos. Em casos de processos, as condenações são poucas, profissionais de saúde raramente são responsabilizados e as indenizações por danos morais e materiais giram em torno de R$ 60 mil em casos de morte ou consequências físicas e psicológicas irreversíveis para a mãe ou para o bebê

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Valéria Mendes - Saúde Plena Publicação:09/12/2013 09:01Atualização:06/12/2013 14:59
'O número de denúncias de violência obstétrica no Brasil ainda é pequeno, primeiro porque falta informação de como proceder e também porque muitas mães ao saírem saudáveis e com o bebê bem só querem esquecer o que passaram' (Divulgação)
"O número de denúncias de violência obstétrica no Brasil ainda é pequeno, primeiro porque falta informação de como proceder e também porque muitas mães ao saírem saudáveis e com o bebê bem só querem esquecer o que passaram"
O documentário 'A dor além do parto' foi lançado em 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Ele é resultado de um trabalho de conclusão do curso de direito da Universidade Católica de Brasília. Amanda Rizério, Letícia Campos, Nathália Machado e Raísa Cruz são as autoras do filme.



O Saúde Plena conversou com uma delas, Letícia Campos, que afirma que a violência obstétrica é negligenciada do ponto de vista jurídico e social. Para ela, “o poder de escolha da mulher é cerceado e o abuso à sua integridade física e moral ocorre de forma ampla, independentemente de idade ou classe social”.

Leia matéria sobre o filme: Documentário denuncia que maioria dos erros médicos estão ligados à obstetrícia

Além de o termo não ser amplamente conhecido, o número de denúncias ainda é pequeno no Brasil. "A iniciativa de denunciar qualquer das formas de violência obstétrica mostra-se dificultosa na maioria dos casos, pois os processos, quer sejam administrativos ou judiciais, envolvem acusações de difícil comprovação, reviram sentimentos dolorosos e expõe a intimidade da vítima", explica Letícia. A bacharel em direito pontua também que as condenações são poucas e os profissionais de saúde raramente são responsabilizados.

Leia a entrevista e compartilhe:

Saúde Plena: O que motivou a realização do documentário ‘A dor além do parto’?


Letícia Campos: A abordagem do tema violência obstétrica deu-se por ser de alta relevância social, pois sua ocorrência perdura no tempo, sendo recorrente tanto na rede pública quanto na rede privada de saúde, sem que a população sequer saiba que os maus tratos sofridos implicam uma violação de direitos e que não deve ser aceita como algo pertinente ao procedimento médico.

O cuidado com o bem estar emocional da parturiente acabou ficando perdido em meio ao ambiente impessoal e mecânico dos hospitais, tendendo a aumentar o medo, a dor e a ansiedade daquela que está dando a luz e consequentemente aumentando as complicações obstétricas.

A princípio almejávamos um tema para o trabalho que nunca houvesse sido feito e que pudesse ser utilizado além da universidade, com intuito de realmente ter uma utilidade pública.

Escolheu-se o tema porque várias mulheres sofrem esse tipo de violência diariamente, negligenciada do ponto de vista jurídico e social. Além disso, entende-se que a omissão do Estado brasileiro, no que se refere à proteção jurídica efetiva da mulher parturiente, é um flagrante retrocesso. A tutela é necessária, pois, o poder de escolha da mulher é cerceado e o abuso à sua integridade física e moral ocorre de forma ampla, independentemente de idade ou classe social. Alertar a sociedade sobre os abusos cometidos é determinante para garantir, o respeito aos direitos das mulheres.

'Punição não é solução, a solução ideal é a educação, mas até chegarmos nesse nível, onde a ética é princípio inabalável leva um tempo' (Reprodução A dor além do parto)
"Punição não é solução, a solução ideal é a educação, mas até chegarmos nesse nível, onde a ética é princípio inabalável leva um tempo"
SP: Qual era o objetivo de vocês quando pensaram em fazer esse documentário?

LC: O objetivo primordial deste documentário é servir como veículo de informação e denúncia, constituindo-se num importante instrumento de conscientização dos profissionais do direito e da saúde, bem como das mulheres que pretendem ser mães.
O vídeo procura mostrar a falta de conhecimento que existe sobre o tema, e salienta a falta de humanização nos serviços público e privado de saúde, além de descrever os principais tipos de violência no parto.

Além disso, tem como finalidade instigar a reflexão sobre a necessidade de buscar soluções para o problema.

SP: No filme tem um relato de uma mulher que não foi anestesiada para a episiotomia (corte cirúrgico feito no períneo, a região muscular que fica entre a vagina e o ânus, durante o parto de via vaginal). Por que aquela mãe não foi anestesiada? Qual o argumento médico para isso? Em alguma medida isso é feito com recorrência no país ou é algo isolado?


LC: Infelizmente a episiotomia é realizada em quase 90% dos partos normais no Brasil, enquanto pesquisas recentes apontam que só seria necessária em torno de 15% dos casos. Na maioria das vezes, a episiotomia é realizada sem anestesia, a qual é aplicada posteriormente só para sutura. O argumento utilizado é que o períneo da mulher está naturalmente anestesiado pelas contrações e dores do parto, ou que não dá tempo para aplicar (pois a necessidade da realização é constatada pelo médico, no momento em que o bebê está coroando, com a finalidade de evitar lacerações no períneo, mas é utilizada rotineiramente).

SP: As mulheres que participaram do filme denunciaram os médicos? E em termos gerais, têm aumentado o número de denúncias de violência obstétrica no Brasil?


Das mulheres que foram entrevistadas apenas a Sheila Britto, mãe que perdeu o bebê, entrou com um processo que ainda está em trâmite na segunda instância judiciária.

Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, constatou que 1 em cada 4 mulheres sofreu violência no parto, mas durante a pesquisa percebemos que esse número pode ser muito maior, pois muitas mulheres sofreram violência, tiveram direitos violados, mas pela falta de informação e conhecimento não tiveram essa percepção e também não tomaram nenhuma providência.

O número de denúncias no Brasil ainda é pequeno, primeiro porque falta informação de como proceder e também porque muitas mães ao saírem saudáveis e com o bebê bem só querem esquecer o que passaram.

As condenações também são poucas. Coletamos vários julgados sobre erros médicos no momento do parto e a condenação dos hospitais se dá baseada da responsabilidade objetiva dos hospitais, tendo em vista que prestam serviços para o Estado, as indenizações por danos morais e materiais giram em torno de 60 mil reais em casos de morte ou consequências físicas e psicológicas irreversíveis para a mãe ou para o bebê. Além disso, os profissionais da saúde raramente são responsabilizados.
Esse quadro só vai mudar quando as mulheres forem informadas e exigirem o respeito aos seus direitos.

'Infelizmente a episiotomia é realizada em quase 90% dos partos normais no Brasil, enquanto pesquisas recentes apontam que só seria necessária em torno de 15% dos casos' (Reprodução A dor além do parto)
"Infelizmente a episiotomia é realizada em quase 90% dos partos normais no Brasil, enquanto pesquisas recentes apontam que só seria necessária em torno de 15% dos casos"
SP: O que a mulher ou o acompanhante dela podem fazer no momento do parto para garantir seus direitos? Como uma das autoras você “orientaria” de alguma forma uma mulher grávida?

LC: O primeiro passo é se informar, estudar sobre os procedimentos médicos realizados no momento do parto, quais as vantagens e malefícios de cada um e como podem ser evitados. Conhecer seus direitos já garantidos em Leis e nas portarias do Ministério da Saúde que estabelecem diretrizes para o atendimento ao parto e nascimento, é primordial para entender o que se pode exigir e a quem recorrer.

Outro fator relevante é realizar o pré-natal, de preferência com o mesmo médico que irá realizar o parto, pois no decorrer da gravidez todos os aspectos do que a mulher deseja ou não para o momento do parto serão discutidos.
No entanto, caso o estabelecido não seja cumprido, ou a mulher seja desrespeitada seja com gestos, ofensas verbais, ameaças, tratamento sem o zelo necessário, abuso do uso de medicamentos e a realização e de procedimentos desnecessários ou abusivos, existem meios dedenúncias.

Atualmente muitos sites têm auxiliado as gestantes nesse aspecto. As denúncias podem ocorrer por intermédio de canais de reclamação, ouvidorias como as da ANS e do Ministério da Saúde, por meio de uma representação administrativa, no Conselho Regional de Medicina – CRM ou Conselho Regional de Enfermagem (COREN), além do registro de ocorrência em qualquer delegacia da mulher ou representação em Comissões ou Conselhos de Defesa dos Direitos Humanos, bem como a denúncia ou representação ao Ministério Público.

A iniciativa de denunciar qualquer das formas de violência obstétrica mostra-se dificultosa na maioria dos casos, pois os processos, quer sejam administrativos ou judiciais, envolvem acusações de difícil comprovação, reviram sentimentos dolorosos e expõe a intimidade da vítima.

'A mulher deverá guardar o maior número de documentos possíveis, tais como, exames, guia de internação, cartão gestante, termos de consentimento, ou seja, todos os instrumentos facilitadores para a fase comprobatória' (Reprodução A dor além do parto)
'A mulher deverá guardar o maior número de documentos possíveis, tais como, exames, guia de internação, cartão gestante, termos de consentimento, ou seja, todos os instrumentos facilitadores para a fase comprobatória"
Por isso, diante da decisão de denunciar tais maus tratos, a mulher deverá guardar o maior número de documentos possíveis, tais como, exames, guia de internação, cartão gestante, termos de consentimento, ou seja, todos os instrumentos facilitadores para a fase comprobatória.

SP: Por onde passa a solução para diminuir a incidência da violência obstétrica? As lideranças que lutam pelo parto humanizado acreditam que penalizar é o caminho?

LC: Para mudar a realidade brasileira é necessário que a cultura passe por uma transformação e o modelo obstétrico centrado na figura do médico também. É essencial que os profissionais de saúde dispensem um tratamento humanizado e preocupado com as opções e preferências individuais, pois nesse modelo obstétrico adotado no Brasil a mulher perde a autonomia e a capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, o que impacta negativamente na sua qualidade de vida, acarretando como resultado danos físicos e psicológicos.

No trabalho de pesquisa, propomos algumas soluções para o problema, tais como maior empenho das Universidades em oferecer uma educação aos profissionais de saúde preocupada com o tratamento humanizado e a atualização das técnicas utilizadas; a pactuação de projetos voltados para a mudança do parto e nascimento no Brasil, a promoção de campanhas de conscientização, bem como a criação de meios mais eficazes de denúncia.

Em face da inexistência de tipificação específica, medida já adotada por outros países da América Latina, como Venezuela e Argentina, muitas vezes os atos praticados em sede de violência obstétrica subsomem-se a outros tipos penais, como os crimes contra a honra, lesão corporal e até mesmo homicídio. Uma solução totalmente plausível seria a introdução de qualificadoras nesses tipos penais, de modo que a penalidade originária fosse aumentada quando a prática criminosa se dirigisse à mulher gestante ou em estado puerperal que se encontra em ambiente hospitalar.

Punição não é solução, a solução ideal é a educação, mas até chegarmos nesse nível, onde a ética é princípio inabalável leva um tempo. Por isso é indispensável impedir que a impunidade se estenda de forma a resultar a produção de danos físicos e psicológicos em massa sobre as parturientes, sob pena de grave violação aos direitos humanos e desrespeito à dignidade da mulher. Dessa forma, a punição se torna medida protetiva, seja ela de cunho pecuniário, administrativo ou restritiva de direitos.

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