Já tomou seu remédio tarja branca hoje?
Documentário em cartaz em Belo Horizonte defende uma 'revolução' pela brincadeira para crianças e adultos
Valéria Mendes - Saúde Plena
Publicação:04/07/2014 07:00Atualização: 04/07/2014 09:44
Costa Rica e Grécia disputavam os pênaltis por uma vaga nas quartas de final da Copa do Mundo e a sala 3 do Cine Usiminas Belas Artes, em Belo Horizonte, já estava com cerca de 70% de sua capacidade ocupada por espectadores interessados em um documentário de 80 minutos de nome provocativo: “Tarja Branca – a revolução que faltava”, de Cacau Rhoden. Está certo que o local continuou sendo ocupado logo após o país da América Central garantir sua classificação para a próxima fase, mas no país do futebol, sede da competição esportiva mais esperada do planeta, é de se admirar que aquelas pessoas tenham reservado as últimas horas do domingo para refletir sobre uma questão que, apesar de tão necessária, é pouco valorizada nos dias atuais: por que a brincadeira é importante na vida da criança e do adulto?
Conhecido internacionalmente também como o país do carnaval, a fama incomoda alguns brasileiros. Nos tempos atuais, características como austeridade e seriedade são extremamente valorizadas principalmente no mercado de trabalho, em detrimento do lúdico. Mas para o mundo funcionar como ele é hoje, uma fatia considerável das pessoas precisa gastar a maior parte do seu tempo fazendo o que não gosta, alerta o poeta e escritor Marcelino Freire já nos minutos iniciais. Enquanto imagens de grandes cidades e amontoados de pessoas ocupam a grande tela, ele alfineta: Querem o quê? Que seja conhecido como o país do laboratório? Do escritório? Da diplomacia?".
Igualmente preocupante, o pouco tempo livre já chegou, inclusive, à infância. Muitas crianças têm agenda de compromissos incompatível com a brincadeira. “Ninguém nasceu para fazer vestibular, a gente nasceu para ser gente. As escolas deveriam ter muito mais tempo de recreio, mas quando defendemos o resgate do brincar as pessoas acham que é voltar no tempo”. A constatação é de uma das principais educadoras do país, Lydia Hortélio, uma das entrevistadas do filme. A pedagoga Maria Amélia Pereira lembra ainda que brincar é a coisa mais séria para uma criança, é quando a concentração é levada às últimas consequências e define: “Brincar pra mim é usar o fio inteiro de cada ser. Quando você está usando o seu fio de vida inteiro, você está brincando”.
Alegria fora de moda
Para Rhoden, acontece com os pequenos o mesmo que com o adulto. “A forma como vivemos hoje mata o espírito lúdico do ser humano. É um pecado o que estamos fazendo com as crianças, estamos tirando delas a capacidade de originalidade, a possibilidade de contato consigo próprias e com o outro de maneira autônoma. A consequência é uma sociedade de seres mais frágeis”, reflete.
No documentário, o psicanalista Ricardo Goldenberg narra que fez um levantamento sobre os artigos científicos dos últimos anos que mostra que foram desenvolvidos 45 mil trabalhos dedicados à depressão e à melancolia contra 400 pesquisas dedicadas à alegria. “A alegria não está na moda”, resume o diretor de Tarja Branca que cunha o termo ‘sociedade flat’ (plano, em inglês) para defender seu ponto de vista. “É como se os sentimentos só coubessem em uma vida plana, mas a vida é uma montanha-russa e o ser humano precisa lidar melhor com isso para resolver suas questões. Para isso, o espírito lúdico é fundamental”, diz.
Uma dose de tarja branca, por favor
Um dos personagens mais carismáticos do documentário é o artista plástico Hélio Leites. É ele quem conceitua a expressão ‘tarja branca’ após contar sua história. “Durante 25 anos fiquei carimbando cheque devolvido de gente que eu não conhecia num banco. Até que um dia eu descobri que podia sair do banco”. Atualmente, apesar de ganhar menos dinheiro, ele vive da arte em miniatura.
Durante seu depoimento, Hélio Leites aponta uma pequena garrafa e oferece à câmera uma dose de tarja branca, uma ironia aos medicamentos tarja preta. “É a palavra que vai consertar a pessoa. O remédio tem que entrar por aqui – apontando para o ouvido – e não pela boca”, diz. A ideia pode ser resumida em duas falas marcantes do longa-metragem: “Quem vive o prazer não quer o pessimismo” e “Quem brinca é mais feliz”.
Como começar?
Apesar de algumas profissões serem socialmente julgadas como pouco criativas, Cacau Rhoden reforça o quão equivocado é este pensamento. “A força criadora está em qualquer ofício”, acredita. E lembra: “a ciência é uma das maneiras mais plenas de se brincar. Só quando a sociedade entender a importância da brincadeira será possível aplicar esse espírito lúdico nas nossas ações mais sérias e não só na diversão”. É esta a revolução que o filme propõe.
O poeta Marcelino Freire aponta um caminho: “Você tem que lembrar do menino que você foi, e perguntar: o que você fez de mim?”. No filme, alguns personagens escolhem uma foto que resume um momento feliz da infância para encontrar essa resposta. Talvez essa criança não apareça na primeira tentativa, mas “se a imagem fizer você sorrir já estará no território sagrado da infância”.
O diretor confessa que o tema ao qual se debruçou por tanto tempo não lhe era familiar antes de o trabalho começar. “O filme transformou a minha vida. Quando começamos a costurar a narrativa, me colocava muito mais como um espectador do que como um diretor. As pessoas que estão no filme foram muito generosas em dividir conhecimento, sentimentos, emoções. Realmente acenderam uma faísca dentro de mim para me abrir para uma reflexão mais profunda sobre a seriedade da brincadeira. O filme é uma semente, um convite para pensar sobre o assunto”, conta. E recomenda: “Observe uma criança brincar que perceberá que é sério”.
Em Belo Horizonte, o filme fica em cartaz até 9 de julho, no Cine Usiminas Belas Artes, com sessões, às 14h40 e 18h*. Quem quiser se aventurar nessa busca pela criança que vive em cada um de nós poderá ouvir as histórias de personalidades como Domingos Montagner, Wandi Doratiotto, Helder Vasconcellos, Alfredo Bello, Antonio Nóbrega e José Simão que revelou: “Já fui colocado de castigo por ser engraçado”.
*Dia 05/07 (sábado) não haverá a sessão das 18h
"Observe uma criança brincar que perceberá que é sério"
Veja o trailer:
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Brincar é coisa séria. Brincar é urgente. É esta a pegada do documentário que mostra que vivenciar o lúdico não é exclusividade das crianças, mas inerente ao ser humano. “Na sociedade de consumo somos formatados para ser uma engrenagem do sistema. Desde muito cedo, o indivíduo já começa a ser preparado para isso. Essa é uma relação equivocada com o tempo e com a qualidade do tempo. Atualmente, existe uma competição por quem trabalha mais, como se isso determinasse uma vida bem-sucedida, mas é um grande equívoco que está sendo repetido, um modelo que vem se fortalecendo ao longo do tempo, mas que não traz satisfação real, não existe autonomia”, afirma Rhoden. -
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Igualmente preocupante, o pouco tempo livre já chegou, inclusive, à infância. Muitas crianças têm agenda de compromissos incompatível com a brincadeira. “Ninguém nasceu para fazer vestibular, a gente nasceu para ser gente. As escolas deveriam ter muito mais tempo de recreio, mas quando defendemos o resgate do brincar as pessoas acham que é voltar no tempo”. A constatação é de uma das principais educadoras do país, Lydia Hortélio, uma das entrevistadas do filme. A pedagoga Maria Amélia Pereira lembra ainda que brincar é a coisa mais séria para uma criança, é quando a concentração é levada às últimas consequências e define: “Brincar pra mim é usar o fio inteiro de cada ser. Quando você está usando o seu fio de vida inteiro, você está brincando”.
"Você queria ser conhecido como o país do escritório?"
Para Rhoden, acontece com os pequenos o mesmo que com o adulto. “A forma como vivemos hoje mata o espírito lúdico do ser humano. É um pecado o que estamos fazendo com as crianças, estamos tirando delas a capacidade de originalidade, a possibilidade de contato consigo próprias e com o outro de maneira autônoma. A consequência é uma sociedade de seres mais frágeis”, reflete.
No documentário, o psicanalista Ricardo Goldenberg narra que fez um levantamento sobre os artigos científicos dos últimos anos que mostra que foram desenvolvidos 45 mil trabalhos dedicados à depressão e à melancolia contra 400 pesquisas dedicadas à alegria. “A alegria não está na moda”, resume o diretor de Tarja Branca que cunha o termo ‘sociedade flat’ (plano, em inglês) para defender seu ponto de vista. “É como se os sentimentos só coubessem em uma vida plana, mas a vida é uma montanha-russa e o ser humano precisa lidar melhor com isso para resolver suas questões. Para isso, o espírito lúdico é fundamental”, diz.
Diretor Cacau Rhoden diz que fazer este filme transformou sua vida
Um dos personagens mais carismáticos do documentário é o artista plástico Hélio Leites. É ele quem conceitua a expressão ‘tarja branca’ após contar sua história. “Durante 25 anos fiquei carimbando cheque devolvido de gente que eu não conhecia num banco. Até que um dia eu descobri que podia sair do banco”. Atualmente, apesar de ganhar menos dinheiro, ele vive da arte em miniatura.
Durante seu depoimento, Hélio Leites aponta uma pequena garrafa e oferece à câmera uma dose de tarja branca, uma ironia aos medicamentos tarja preta. “É a palavra que vai consertar a pessoa. O remédio tem que entrar por aqui – apontando para o ouvido – e não pela boca”, diz. A ideia pode ser resumida em duas falas marcantes do longa-metragem: “Quem vive o prazer não quer o pessimismo” e “Quem brinca é mais feliz”.
Brincar é se relacionar através do riso
Brincar é ir atrás do próprio desejo
Brincar é uma necessidade primordial
Brincar é a linguagem do espontâneo
Brincar é recuperar o lúdico na vida cotidiana
Brincar é ir atrás do próprio desejo
Brincar é uma necessidade primordial
Brincar é a linguagem do espontâneo
Brincar é recuperar o lúdico na vida cotidiana
Em cartaz no Cine Usiminas Belas Artes
Apesar de algumas profissões serem socialmente julgadas como pouco criativas, Cacau Rhoden reforça o quão equivocado é este pensamento. “A força criadora está em qualquer ofício”, acredita. E lembra: “a ciência é uma das maneiras mais plenas de se brincar. Só quando a sociedade entender a importância da brincadeira será possível aplicar esse espírito lúdico nas nossas ações mais sérias e não só na diversão”. É esta a revolução que o filme propõe.
O poeta Marcelino Freire aponta um caminho: “Você tem que lembrar do menino que você foi, e perguntar: o que você fez de mim?”. No filme, alguns personagens escolhem uma foto que resume um momento feliz da infância para encontrar essa resposta. Talvez essa criança não apareça na primeira tentativa, mas “se a imagem fizer você sorrir já estará no território sagrado da infância”.
O diretor confessa que o tema ao qual se debruçou por tanto tempo não lhe era familiar antes de o trabalho começar. “O filme transformou a minha vida. Quando começamos a costurar a narrativa, me colocava muito mais como um espectador do que como um diretor. As pessoas que estão no filme foram muito generosas em dividir conhecimento, sentimentos, emoções. Realmente acenderam uma faísca dentro de mim para me abrir para uma reflexão mais profunda sobre a seriedade da brincadeira. O filme é uma semente, um convite para pensar sobre o assunto”, conta. E recomenda: “Observe uma criança brincar que perceberá que é sério”.
Em Belo Horizonte, o filme fica em cartaz até 9 de julho, no Cine Usiminas Belas Artes, com sessões, às 14h40 e 18h*. Quem quiser se aventurar nessa busca pela criança que vive em cada um de nós poderá ouvir as histórias de personalidades como Domingos Montagner, Wandi Doratiotto, Helder Vasconcellos, Alfredo Bello, Antonio Nóbrega e José Simão que revelou: “Já fui colocado de castigo por ser engraçado”.
*Dia 05/07 (sábado) não haverá a sessão das 18h
"A força criadora está em qualquer ofício"