ABC da hepatite: falta de conhecimento do vírus pode ser fatal
A doença e suas variantes estão altamente disseminadas no país, mas os casos são subnotificados. Cada tipo merece um conjunto de cuidados
Gláucia Chaves - Revista do CB
Publicação:21/08/2014 13:00Atualização: 21/08/2014 13:00
Dados sobre a quantidade exata de infectados ainda carecem de precisão, já que o exame não consegue diferenciar os pacientes doentes dos que já se curaram, por conta dos anticorpos que continuam no organismo. De qualquer forma, de acordo com Edson Roberto Parise, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia, há cerca de 2,5 milhões de pessoas realmente infectadas por hepatite C no país. Trata-se de um tipo sorrateiro: geralmente assintomático, é rápido e potencialmente mortal. O vírus pode demorar de 25 a 30 anos para se manifestar. Enquanto isso, vai minando o fígado, pouco a pouco, até evoluir para um quadro de cirrose.
Muitas vezes, quando se descobre o hóspede indesejado, já é tarde demais. “Em indivíduos jovens e em mulheres em geral, a evolução é mais lenta”, completa o médico. “Quando adquirido em uma idade em que a imunidade é boa, o vírus pode não progredir.” Sofrem ainda mais pessoas que abusam do álcool, que já passaram por um transplante, as infectadas em idade avançada e também as soropositivas. De acordo com Parise, um aspecto que chama a atenção é a forma de contágio dos pacientes que estão atualmente em tratamento. Metade deles foi contaminada por conta do uso de seringas de vidro, comuns há 40 anos. Naquela época, o procedimento de avaliação de sangue doado também não existia — por isso, transfusões de sangue foram um vetor do vírus, com um impacto difícil de calcular. “Em 2030, teremos um aumento no número de casos de pacientes com câncer no fígado, cirrose e transplante de fígado”, estima o médico.
“Achei que a medicina não poderia me ajudar”
Toda a esperança da comunidade médica e, principalmente, dos pacientes, recai em novos medicamentos que prometem a cura em menos tempo e com efeitos colaterais mais brandos. Um dos grandes problemas do tratamento atual, explica Edson Roberto Parise, é a desistência. Porém, estudos mostram que vale a pena, sim, insistir. Pacientes infectados com a forma leve da doença, ao fim do tratamento, apresentam sobrevida igual à da população geral. “Mesmo entre os que estão em estágio avançado, a mortalidade por doenças hepáticas praticamente se estabiliza”, completa. O médico espera que o índice de cura chegue a 95% num futuro próximo.
A bancária Ana Paula Barcellos (foto), 36 anos, convive com a hepatite C desde 2005. A descoberta veio por acaso: após sentir fortes cólicas, ela resolveu ir ao médico. Em um dos exames, foi constatado que algo estava errado com o fígado dela, porém, nenhum especialista quis dar prosseguimento a uma investigação mais minuciosa. Muitas consultas depois, a gastroenterologista que a atendia desconfiou que o problema poderia ser hepatite. “Ela quis investigar e recebi o diagnóstico positivo para hepatite C”, relembra Ana Paula.
A contaminação aconteceu quando Ana Paula tinha apenas 8 anos e precisou de uma transfusão de sangue. À época, ela lutava contra uma pneumonia severa e precisou passar por um procedimento cirúrgico. “Naquele tempo, o sangue (usado em transfusões) ainda não era testado”, completa. A situação de Ana Paula foi atípica: dos 8 anos de idade, quando foi infectada, aos 27, quando a doença foi descoberta, a hepatite ainda estava no estágio inicial. “Os médicos não souberam explicar por que, mas parece que, quando uma pessoa é infectada criança, a doença progride devagar”, explica.
Na época em que Ana foi diagnosticada, pacientes com baixo grau de fibrose não eram candidatos a receber o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Por conta da agressividade dos medicamentos, apenas aqueles que estavam com fibrose severa — ou seja, paciente cirróticos — estariam autorizados a receber os remédios e fazer o acompanhamento necessário. Em 2008, após ter a cirrose detectada por uma biópsia, Ana Paula pôde começar o tratamento. Ela passou a tomar doses de Interferon na veia uma vez por semana e comprimidos de Ribavirina, os dois únicos medicamentos existentes contra hepatite C até então.
Os efeitos colaterais dos dois remédios são severos. Ana descreve a sensação como “uma gripe muito forte, que dura 24 horas por dia, por seis meses”. Os dias posteriores à injeção de Interferon eram sinônimo de prostração. Ainda assim, ela esforçava-se para ficar de pé e continuar indo ao trabalho. “Nunca consegui trabalhar oito horas seguidas durante o tratamento. Estava sempre cansada, com dor e febre”, relembra. “Ficava também indisposta e bastante irritada. É algo orgânico, não tem como controlar.”
Ao todo, o tratamento deveria durar 48 semanas. Porém, ao fim do prazo, os exames indicaram que Ana Paula não estava respondendo bem. A medicação foi suspensa. “Bateu muito medo. Achei que a medicina não poderia me ajudar.” Sem perder as esperanças, ela continuou a pesquisar sobre a doença por conta própria. As dicas e as orientações que encontrou, ela compartilha no blog Animando-C e na página do Facebook de mesmo nome. Ana ainda não está curada: espera pelos novos remédios que estão por vir, que prometem mais de 90% de chance de cura em menos tempo. O vírus ainda está presente no organismo, lesionando o fígado aos poucos. Mas isso não quer dizer que todo o tempo foi perdido. “Mesmo quando o tratamento não dá certo, a carga viral reduz e isso dá um alívio para o fígado”, justifica. Por isso, é como se a doença estivesse novamente em seu estágio inicial.
Ao longo do tratamento, o foco era não ceder à depressão. “Quando descobri, perdi o chão, entrei em desespero e achei que fosse morrer”, descreve Ana. “Mas é um sentimento combatido com informação.” À medida que pesquisava e entrava em contato com outros pacientes, a angústia passou a dar lugar à vontade de vencer. Já que não havia como evitar que a doença progredisse, ela resolveu fortalecer o corpo com treinos de musculação, cinco vezes por semana. “Não deixo ninguém pegar leve comigo, porque não sou doente. Estou doente.”
As vacinas disponíveis
Técio Genzini, hepatologista da Beneficência Portuguesa de São Paulo, explica que, atualmente, a hepatite já foi classificada até o tipo G. A diferenciação é feita pelas formas de contágio, avanço e consequências da doença. No Brasil, os tipos mais comuns são o A, o B, o C e o D. “A hepatite A é endêmica no Brasil inteiro: de 60% a 70% da população entra em contato com o vírus ao longo da vida”, completa. O tipo B também se manifesta no país inteiro, contudo, se diferencia do A pela possibilidade de cronificação, que pode ocorrer em 10% dos casos.
Ainda de acordo com o médico, após a identificação correta do vírus, o objetivo é frear e, se possível, encerrar a sua multiplicação. Melhorar a imunidade do paciente é a primeira providência a ser tomada para que o tratamento dê certo. Pacientes com má alimentação, condições higiênicas e sanitárias deficientes, que têm doenças crônicas associadas (como tuberculose, câncer e Aids), que tenham passado por transplante ou que façam uso de imunossupressores veem a doença progredir mais rápido. “O que tratamos nos pacientes é o vírus, mas também os hábitos”, completa Genzini.
Já existem vacinas para as hepatites tipo A e tipo B. Inclusive, a primeira acaba de ser incluída no Calendário Nacional de Vacinação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para o tipo C, porém, ainda falta muita pesquisa. “O que acontece é que a hepatite A e a B datam da década de 1960, então, houve mais tempo para desenvolver medicações”, justifica Genzini. “A tipo C foi descoberta em 1989. O diagnóstico no Brasil começou em 1993 — é um período muito curto.”
"Recebi dois litros de sangue. Provavelmente, estava contaminado"
Oscar Campos (foto), 56 anos, foi uma das vítima do desconhecimento médico da época. Ele é paulista e veio parar em Brasília em 2007, graças a um concurso público. Quando mal tinha pisado na capital, o nariz já começou a sangrar. Acreditando que era apenas um efeito da seca, não deu muita importância. O incômodo, contudo, não passava de jeito nenhum. Oscar, então, resolveu ir ao médico e descobriu que o problema, na verdade, era uma consequência do desvio de septo nasal. Era preciso uma cirurgia corretiva, mas os resultados dos exames pré-operatórios detectaram a hepatite C.
O servidor público acredita ter sido infectado em 1975, quando passou por uma operação para corrigir uma má-formação no coração. “Recebi pelo menos dois litros de sangue. Provavelmente, ele estava contaminado, porque a doença já estava circulando, mas não tinha sido classificada. Só se falava em hepatite A”, relembra. Oscar começou a bateria de exames e o tratamento. Anemia, irritação, perda de memória, de cabelo e de peso — ele chegou a perder 25kg durante o processo — foram efeitos sentidos imediatamente. “Quando você recebe a ‘picada’ da injeção é que vem a pancada”, recorda. Para que ele conseguisse estar de pé para trabalhar às segundas-feiras, as doses precisavam ser tomadas na quinta.
Além de lidar com os efeitos colaterais, Oscar precisou rever diversos aspectos da própria rotina que poderiam piorar consideravelmente o que já estava ruim. “Você recebe a notícia e, depois, é como se fosse recebendo mais um soco por vez”, compara. A cerveja do fim de semana, por exemplo, transformou-se em mera lembrança, assim como o cigarro. Rodízio de carne ou de massas? Nem pensar. Até a roda de amigos mudou. “Não dá mais para sair com os que bebem. As pessoas começam a te achar chato, e você está mesmo.”
Da contaminação à cura, Oscar passou por diversos tratamentos e até mesmo por uma peleja na justiça contra o Governo do Distrito Federal, pois precisava de autorização para importar os remédios. A experiência serviu como mote para ajudar outras pessoas. Oscar resolveu, então, criar o Grupo Candangos do C, para auxiliar portadores do vírus e informar sobre a doença. O plano é, além da divulgação de informações, organizar ações para realizar o teste rápido em vários locais da cidade. “Hoje em dia, a terapia é outra. Já existem remédios que elevam a chance de cura em 98% e há novos medicamentos no horizonte”, anima-se. “Quero descobrir e ajudar novos portadores até que a associação vá a falência, por não ter mais gente para se tratar.”
Mitos e preconceitos
Os estudos sobre a hepatite continuam sendo feitos ao redor do mundo. Em julho, o congresso Hepatologia do Milênio, organizado pela Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) em parceria com a Sociedade Brasileira de Infectologia e com a Associação Médica Brasileira (AMB), reuniu médicos e especialistas para discutir novas abordagens e medicamentos contra a doença. Raimundo Paraná, presidente do congresso e ex-presidente da SBH, explica que um ponto importante para entender a doença é deixar preconceitos de lado. “A hepatite C, por exemplo, não se diagnostica na fase aguda”, detalha. “A ideia do olho que fica amarelo não é real.”
Outro mito é com relação às formas de contágio. Ao contrário da hepatite B, o tipo C não é, necessariamente, transmitido sexualmente. Para que isso aconteça, é necessário que haja uma relação sexual que envolva sangramento. “Há casos de casais em que apenas um dos parceiros tem hepatite C”, reforça Paraná.
Entre as dificuldades no enfrentamento da doença estão os planos de saúde que não cobrem todo o tratamento (sobrecarregando o SUS) e a escassez de hepatologistas e infectologistas preparados para lidar com o víru. “Os médicos não solicitam o exame. Se os ginecologistas e os urologistas, que são médicos frequentados com mais assiduidade, pedissem, seguramente teríamos um cenário melhor”, sugere Raimundo Paraná. “Precisamos de educação médica.”
“A doença pode estar mais perto do que se imagina”
Era 2008 quando Josiane Réus (foto), 33 anos, descobriu que estava infectada com hepatite C. A notícia foi dada por telefone, por uma epidemiologista de um hospital em que a encarregada administrativa havia ficado internada no ano anterior. Desde então, ela faz o acompanhamento da doença. Nas duas primeiras biópsias, o grau de fibrose ainda estava classificada como F0, ou seja, ainda não havia indícios de cirrose. Por isso, ela não estava apta a receber o tratamento pelo SUS, indicado para pacientes com fibrose mediana a severa. Dois anos depois, Josiane leu no jornal sobre uma pesquisa que estava sendo feita para desenvolver novos medicamentos. Os pesquisadores estavam à procura de voluntários e ela resolveu se candidatar. Após o processo de seleção e uma nova biópsia, a surpresa: a cirrose já era F4, um dos estágios mais avançados da complicação.
Felizmente, após oito semanas, a carga viral foi negativada, ou seja, o vírus estava indetectável no sangue. Josiane terminou as 24 semanas de tratamento, mas não tem boas recordações do período. “Emagreci 10kg, perdi cabelo e tive que sair da empresa em que trabalhava há 10 anos”, enumera. Diarreia, vômito, dor de cabeça e febre também eram efeitos colaterais comuns. De “brinde”, como ela mesma diz, veio a depressão. “Até aquele momento, se alguém me perguntasse o que era depressão, eu diria que era coisa de quem não tinha o que fazer. Isso até ela se instalar na minha vida.”
Após o término do tratamento para hepatite C, Josiane segue com acompanhamento psiquiátrico e medicamentos específicos para controlar a depressão. “Fui muito forte nesse tempo, ouvia as pessoas dizerem que eu era guerreira e não queria que elas me vissem fraca”, desabafa. “Eu dizia que estava bem, mas, por dentro, não estava.” A família foi um ponto que a ajudou a ir em frente: o marido e os dois filhos adolescentes serviram de apoio quando as coisas tornavam-se mais complicadas. Amigos, naturalmente, também entraram na briga contra a doença. “A hepatite trouxe algumas pessoas para perto e afastou outras”, pondera. “Sempre deixei claro que estava doente, falava sobre as formas de contágio. O problema foi que o quadro depressivo fez com que eu mesma me afastasse.”
Todo o esforço valeu a pena: o tratamento acabou há seis meses e, no começo de agosto, Josiane recebeu a tão esperada ligação do hospital, anunciando que o vírus continua indetectável. Apesar disso, a cirrose continua. “Não vou me curar dela nunca, mas, pelo menos, o vírus não está mais ‘machucando’ meu fígado”, comemora. Superada a doença, Josiane se dedica agora a divulgar a importância de encarar a hepatite C de frente e de alertar possíveis portadores desavisados. “A hepatite não tem cara, tem cura. A doença pode estar mais perto do que se imagina, inclusive em nós mesmos”, alerta.
Saiba mais...
A hepatite não pode ser considerada um mal desconhecido, embora ainda não tenha sido completamente desvendado. As dúvidas mais comuns pairam sobre os diferente tipos. Formas de contágio, evolução e consequências do não tratamento são informações primordiais para entender do que a doença é capaz. Os tipos mais estudados são a hepatite A, a B e a C, sendo esta a mais severa manifestação do vírus. Atualmente, estão mapeadas outras variações (E, F e G), o que demonstra o empenho da medicina em atualizar suas armas. A cada dia, novas pesquisas tentam encontrar medicamentos capazes de curar a enfermidade. A promessa mais recente é a cura da hepatite C, por meio de remédios em fase final de estudo.- Vacina contra hepatite A entra no calendário do SUS
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Dados sobre a quantidade exata de infectados ainda carecem de precisão, já que o exame não consegue diferenciar os pacientes doentes dos que já se curaram, por conta dos anticorpos que continuam no organismo. De qualquer forma, de acordo com Edson Roberto Parise, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia, há cerca de 2,5 milhões de pessoas realmente infectadas por hepatite C no país. Trata-se de um tipo sorrateiro: geralmente assintomático, é rápido e potencialmente mortal. O vírus pode demorar de 25 a 30 anos para se manifestar. Enquanto isso, vai minando o fígado, pouco a pouco, até evoluir para um quadro de cirrose.
Muitas vezes, quando se descobre o hóspede indesejado, já é tarde demais. “Em indivíduos jovens e em mulheres em geral, a evolução é mais lenta”, completa o médico. “Quando adquirido em uma idade em que a imunidade é boa, o vírus pode não progredir.” Sofrem ainda mais pessoas que abusam do álcool, que já passaram por um transplante, as infectadas em idade avançada e também as soropositivas. De acordo com Parise, um aspecto que chama a atenção é a forma de contágio dos pacientes que estão atualmente em tratamento. Metade deles foi contaminada por conta do uso de seringas de vidro, comuns há 40 anos. Naquela época, o procedimento de avaliação de sangue doado também não existia — por isso, transfusões de sangue foram um vetor do vírus, com um impacto difícil de calcular. “Em 2030, teremos um aumento no número de casos de pacientes com câncer no fígado, cirrose e transplante de fígado”, estima o médico.
Toda a esperança da comunidade médica e, principalmente, dos pacientes, recai em novos medicamentos que prometem a cura em menos tempo e com efeitos colaterais mais brandos. Um dos grandes problemas do tratamento atual, explica Edson Roberto Parise, é a desistência. Porém, estudos mostram que vale a pena, sim, insistir. Pacientes infectados com a forma leve da doença, ao fim do tratamento, apresentam sobrevida igual à da população geral. “Mesmo entre os que estão em estágio avançado, a mortalidade por doenças hepáticas praticamente se estabiliza”, completa. O médico espera que o índice de cura chegue a 95% num futuro próximo.
A bancária Ana Paula Barcellos (foto), 36 anos, convive com a hepatite C desde 2005. A descoberta veio por acaso: após sentir fortes cólicas, ela resolveu ir ao médico. Em um dos exames, foi constatado que algo estava errado com o fígado dela, porém, nenhum especialista quis dar prosseguimento a uma investigação mais minuciosa. Muitas consultas depois, a gastroenterologista que a atendia desconfiou que o problema poderia ser hepatite. “Ela quis investigar e recebi o diagnóstico positivo para hepatite C”, relembra Ana Paula.
A contaminação aconteceu quando Ana Paula tinha apenas 8 anos e precisou de uma transfusão de sangue. À época, ela lutava contra uma pneumonia severa e precisou passar por um procedimento cirúrgico. “Naquele tempo, o sangue (usado em transfusões) ainda não era testado”, completa. A situação de Ana Paula foi atípica: dos 8 anos de idade, quando foi infectada, aos 27, quando a doença foi descoberta, a hepatite ainda estava no estágio inicial. “Os médicos não souberam explicar por que, mas parece que, quando uma pessoa é infectada criança, a doença progride devagar”, explica.
Na época em que Ana foi diagnosticada, pacientes com baixo grau de fibrose não eram candidatos a receber o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Por conta da agressividade dos medicamentos, apenas aqueles que estavam com fibrose severa — ou seja, paciente cirróticos — estariam autorizados a receber os remédios e fazer o acompanhamento necessário. Em 2008, após ter a cirrose detectada por uma biópsia, Ana Paula pôde começar o tratamento. Ela passou a tomar doses de Interferon na veia uma vez por semana e comprimidos de Ribavirina, os dois únicos medicamentos existentes contra hepatite C até então.
Os efeitos colaterais dos dois remédios são severos. Ana descreve a sensação como “uma gripe muito forte, que dura 24 horas por dia, por seis meses”. Os dias posteriores à injeção de Interferon eram sinônimo de prostração. Ainda assim, ela esforçava-se para ficar de pé e continuar indo ao trabalho. “Nunca consegui trabalhar oito horas seguidas durante o tratamento. Estava sempre cansada, com dor e febre”, relembra. “Ficava também indisposta e bastante irritada. É algo orgânico, não tem como controlar.”
Ao todo, o tratamento deveria durar 48 semanas. Porém, ao fim do prazo, os exames indicaram que Ana Paula não estava respondendo bem. A medicação foi suspensa. “Bateu muito medo. Achei que a medicina não poderia me ajudar.” Sem perder as esperanças, ela continuou a pesquisar sobre a doença por conta própria. As dicas e as orientações que encontrou, ela compartilha no blog Animando-C e na página do Facebook de mesmo nome. Ana ainda não está curada: espera pelos novos remédios que estão por vir, que prometem mais de 90% de chance de cura em menos tempo. O vírus ainda está presente no organismo, lesionando o fígado aos poucos. Mas isso não quer dizer que todo o tempo foi perdido. “Mesmo quando o tratamento não dá certo, a carga viral reduz e isso dá um alívio para o fígado”, justifica. Por isso, é como se a doença estivesse novamente em seu estágio inicial.
Ao longo do tratamento, o foco era não ceder à depressão. “Quando descobri, perdi o chão, entrei em desespero e achei que fosse morrer”, descreve Ana. “Mas é um sentimento combatido com informação.” À medida que pesquisava e entrava em contato com outros pacientes, a angústia passou a dar lugar à vontade de vencer. Já que não havia como evitar que a doença progredisse, ela resolveu fortalecer o corpo com treinos de musculação, cinco vezes por semana. “Não deixo ninguém pegar leve comigo, porque não sou doente. Estou doente.”
As vacinas disponíveis
Técio Genzini, hepatologista da Beneficência Portuguesa de São Paulo, explica que, atualmente, a hepatite já foi classificada até o tipo G. A diferenciação é feita pelas formas de contágio, avanço e consequências da doença. No Brasil, os tipos mais comuns são o A, o B, o C e o D. “A hepatite A é endêmica no Brasil inteiro: de 60% a 70% da população entra em contato com o vírus ao longo da vida”, completa. O tipo B também se manifesta no país inteiro, contudo, se diferencia do A pela possibilidade de cronificação, que pode ocorrer em 10% dos casos.
Ainda de acordo com o médico, após a identificação correta do vírus, o objetivo é frear e, se possível, encerrar a sua multiplicação. Melhorar a imunidade do paciente é a primeira providência a ser tomada para que o tratamento dê certo. Pacientes com má alimentação, condições higiênicas e sanitárias deficientes, que têm doenças crônicas associadas (como tuberculose, câncer e Aids), que tenham passado por transplante ou que façam uso de imunossupressores veem a doença progredir mais rápido. “O que tratamos nos pacientes é o vírus, mas também os hábitos”, completa Genzini.
Já existem vacinas para as hepatites tipo A e tipo B. Inclusive, a primeira acaba de ser incluída no Calendário Nacional de Vacinação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para o tipo C, porém, ainda falta muita pesquisa. “O que acontece é que a hepatite A e a B datam da década de 1960, então, houve mais tempo para desenvolver medicações”, justifica Genzini. “A tipo C foi descoberta em 1989. O diagnóstico no Brasil começou em 1993 — é um período muito curto.”
Oscar Campos (foto), 56 anos, foi uma das vítima do desconhecimento médico da época. Ele é paulista e veio parar em Brasília em 2007, graças a um concurso público. Quando mal tinha pisado na capital, o nariz já começou a sangrar. Acreditando que era apenas um efeito da seca, não deu muita importância. O incômodo, contudo, não passava de jeito nenhum. Oscar, então, resolveu ir ao médico e descobriu que o problema, na verdade, era uma consequência do desvio de septo nasal. Era preciso uma cirurgia corretiva, mas os resultados dos exames pré-operatórios detectaram a hepatite C.
O servidor público acredita ter sido infectado em 1975, quando passou por uma operação para corrigir uma má-formação no coração. “Recebi pelo menos dois litros de sangue. Provavelmente, ele estava contaminado, porque a doença já estava circulando, mas não tinha sido classificada. Só se falava em hepatite A”, relembra. Oscar começou a bateria de exames e o tratamento. Anemia, irritação, perda de memória, de cabelo e de peso — ele chegou a perder 25kg durante o processo — foram efeitos sentidos imediatamente. “Quando você recebe a ‘picada’ da injeção é que vem a pancada”, recorda. Para que ele conseguisse estar de pé para trabalhar às segundas-feiras, as doses precisavam ser tomadas na quinta.
Além de lidar com os efeitos colaterais, Oscar precisou rever diversos aspectos da própria rotina que poderiam piorar consideravelmente o que já estava ruim. “Você recebe a notícia e, depois, é como se fosse recebendo mais um soco por vez”, compara. A cerveja do fim de semana, por exemplo, transformou-se em mera lembrança, assim como o cigarro. Rodízio de carne ou de massas? Nem pensar. Até a roda de amigos mudou. “Não dá mais para sair com os que bebem. As pessoas começam a te achar chato, e você está mesmo.”
Da contaminação à cura, Oscar passou por diversos tratamentos e até mesmo por uma peleja na justiça contra o Governo do Distrito Federal, pois precisava de autorização para importar os remédios. A experiência serviu como mote para ajudar outras pessoas. Oscar resolveu, então, criar o Grupo Candangos do C, para auxiliar portadores do vírus e informar sobre a doença. O plano é, além da divulgação de informações, organizar ações para realizar o teste rápido em vários locais da cidade. “Hoje em dia, a terapia é outra. Já existem remédios que elevam a chance de cura em 98% e há novos medicamentos no horizonte”, anima-se. “Quero descobrir e ajudar novos portadores até que a associação vá a falência, por não ter mais gente para se tratar.”
Mitos e preconceitos
Os estudos sobre a hepatite continuam sendo feitos ao redor do mundo. Em julho, o congresso Hepatologia do Milênio, organizado pela Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) em parceria com a Sociedade Brasileira de Infectologia e com a Associação Médica Brasileira (AMB), reuniu médicos e especialistas para discutir novas abordagens e medicamentos contra a doença. Raimundo Paraná, presidente do congresso e ex-presidente da SBH, explica que um ponto importante para entender a doença é deixar preconceitos de lado. “A hepatite C, por exemplo, não se diagnostica na fase aguda”, detalha. “A ideia do olho que fica amarelo não é real.”
Outro mito é com relação às formas de contágio. Ao contrário da hepatite B, o tipo C não é, necessariamente, transmitido sexualmente. Para que isso aconteça, é necessário que haja uma relação sexual que envolva sangramento. “Há casos de casais em que apenas um dos parceiros tem hepatite C”, reforça Paraná.
Entre as dificuldades no enfrentamento da doença estão os planos de saúde que não cobrem todo o tratamento (sobrecarregando o SUS) e a escassez de hepatologistas e infectologistas preparados para lidar com o víru. “Os médicos não solicitam o exame. Se os ginecologistas e os urologistas, que são médicos frequentados com mais assiduidade, pedissem, seguramente teríamos um cenário melhor”, sugere Raimundo Paraná. “Precisamos de educação médica.”
Era 2008 quando Josiane Réus (foto), 33 anos, descobriu que estava infectada com hepatite C. A notícia foi dada por telefone, por uma epidemiologista de um hospital em que a encarregada administrativa havia ficado internada no ano anterior. Desde então, ela faz o acompanhamento da doença. Nas duas primeiras biópsias, o grau de fibrose ainda estava classificada como F0, ou seja, ainda não havia indícios de cirrose. Por isso, ela não estava apta a receber o tratamento pelo SUS, indicado para pacientes com fibrose mediana a severa. Dois anos depois, Josiane leu no jornal sobre uma pesquisa que estava sendo feita para desenvolver novos medicamentos. Os pesquisadores estavam à procura de voluntários e ela resolveu se candidatar. Após o processo de seleção e uma nova biópsia, a surpresa: a cirrose já era F4, um dos estágios mais avançados da complicação.
Felizmente, após oito semanas, a carga viral foi negativada, ou seja, o vírus estava indetectável no sangue. Josiane terminou as 24 semanas de tratamento, mas não tem boas recordações do período. “Emagreci 10kg, perdi cabelo e tive que sair da empresa em que trabalhava há 10 anos”, enumera. Diarreia, vômito, dor de cabeça e febre também eram efeitos colaterais comuns. De “brinde”, como ela mesma diz, veio a depressão. “Até aquele momento, se alguém me perguntasse o que era depressão, eu diria que era coisa de quem não tinha o que fazer. Isso até ela se instalar na minha vida.”
Após o término do tratamento para hepatite C, Josiane segue com acompanhamento psiquiátrico e medicamentos específicos para controlar a depressão. “Fui muito forte nesse tempo, ouvia as pessoas dizerem que eu era guerreira e não queria que elas me vissem fraca”, desabafa. “Eu dizia que estava bem, mas, por dentro, não estava.” A família foi um ponto que a ajudou a ir em frente: o marido e os dois filhos adolescentes serviram de apoio quando as coisas tornavam-se mais complicadas. Amigos, naturalmente, também entraram na briga contra a doença. “A hepatite trouxe algumas pessoas para perto e afastou outras”, pondera. “Sempre deixei claro que estava doente, falava sobre as formas de contágio. O problema foi que o quadro depressivo fez com que eu mesma me afastasse.”
Todo o esforço valeu a pena: o tratamento acabou há seis meses e, no começo de agosto, Josiane recebeu a tão esperada ligação do hospital, anunciando que o vírus continua indetectável. Apesar disso, a cirrose continua. “Não vou me curar dela nunca, mas, pelo menos, o vírus não está mais ‘machucando’ meu fígado”, comemora. Superada a doença, Josiane se dedica agora a divulgar a importância de encarar a hepatite C de frente e de alertar possíveis portadores desavisados. “A hepatite não tem cara, tem cura. A doença pode estar mais perto do que se imagina, inclusive em nós mesmos”, alerta.