Pais distribuem brinde em voo para prevenir passageiros sobre possível choro de bebê: atitude simpática ou sintoma de intolerância?
Brasileiro que estava no voo de Miami a Dallas, nos EUA, relatou o caso em rede social e desencadeou debate sobre o significado da atitude dos pais norte-americanos
Valéria Mendes - Saúde Plena
Publicação:28/11/2014 10:30Atualização: 28/11/2014 16:54
O brasileiro Jacson Boeing, de 37 anos, é pai de duas meninas, uma de 9 e outra de 1 ano e oito meses. Em uma de suas viagens a trabalho para os Estados Unidos passou por uma situação inusitada que se tornou notícia no Brasil e inflamou discussões sobre o direito de “ser criança”, convivência e tolerância. Editor de um site de tecnologia, Jacson fazia um voo de Miami a Dallas quando recebeu de um casal um pedido antecipado de desculpas caso o bebê que estava com eles chorasse. Além de tampões de ouvido e guloseimas, um bilhete: “Olá. Sou uma menininha de 8 meses e esse é meu primeiro voo! Normalmente sou um bebê feliz, mas gostaria de me desculpar com antecedência se eu ficar inquieta, assustada ou chateada porque meus ouvidos doem. Mamãe e papai estão fazendo o possível para me acalmar, e esperamos que esses doces e tampões de ouvido ajudem a tornar sua viagem comigo um pouco mais fácil. Tenha um bom voo!”.
Jacson fotografou o pacote, postou em seu perfil no Facebook e relatou: “O bebê dormiu como um anjo de Miami a Dallas”. A publicação recebeu 183 curtidas, foi compartilhada 27 vezes e a atitude dos pais norte-americanos foi admirada com unanimidade pela rede de amigos do editor do adrenaline.com. As palavras ‘sensacional’, ‘incrível’ e ‘fantástico’ apareceram mais de uma vez. Com a repercussão na mídia, no entanto, vozes dissonantes surgiram e a história rendeu polêmica em fóruns de maternidade e paternidade, sites especializados e nas redes sociais.
Se a forma de comunicação de um bebê é o choro, os pais estariam pedindo desculpas pelo fato de aquela criança de 8 meses ser um bebê, por ela existir ou por terem escolhido ter filhos? “Entendo os dois lados, é natural que as crianças chorem em viagens de avião por se sentirem desconfortáveis, por dor de ouvido ou outro motivo. Mas achei simpático aquele casal ‘quebrar o gelo’ e criar uma situação que desarmou os passageiros. Não acho que essa atitude seja necessária, mas acho válida. Pessoas que viajam a trabalho estão sempre muito cansadas e tudo que elas querem é sentar no avião e descansar. As pessoas que, por algum motivo, tinham alguma ressalva pela companhia do bebê no avião, que estariam de cara feia, acabaram vendo o gesto como um sinal de trégua”, analisa Jacson Boeing.
O brasileiro estava sentado no corredor ao lado dos assentos do casal. “Foram os próprios pais que entregaram. O pai da menininha me deu seis pacotinhos e pediu para que eu passasse para os demais. Todos aqueles que estavam na proximidade receberam o kit. Foram distribuídas entre 30 e 40 unidades. Como estava muito perto deles, vi que um passageiro elogiou a atitude e eles contaram que era a primeira vez que viajavam de avião com a criança. Pela reação das pessoas, fiquei com a sensação de que não era a primeira vez que viviam aquela situação. Deve ser um hábito frequente por lá”, supõe Jacson.
Coordenadora do Laboratório de Casal e Família do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Isabel Cristina Gomes diz que a reação de estranheza com que a notícia foi recebida por algumas famílias é resultado de o Brasil ainda ser um país em que a maioria dos casais tem filhos. “É da nossa cultura, mas começamos a dar sinais de acompanhar um movimento que existe nos Estados Unidos há muito tempo que é o casal optar por não ter filhos. Começamos a construir outra possibilidade de ‘ser família’ sem crianças e não importam quais sejam os argumentos. A sociologia aponta para o fato de as pessoas se colocarem socialmente de forma mais individualista, isso muda um pouco a noção que a gente sempre teve de a criança ser a total dona do espaço, de conquistar todas as atenções”, observa.
Segundo a especialista, a cultura norte-americana já não tem como característica a proximidade afetiva, “de querer que todos se entendam e que compartilhem daquilo que você está passando. Lá já é muito comum restaurantes e hotéis que não aceitam crianças. Os casais se agrupam em torno apenas da vida adulta e não é toda pessoa que tem disponibilidade para criança”. Dessa forma, para Isabel Cristina Gomes, a atitude do ‘kit desculpa’ é respeitosa, pois parte do princípio de que o outro não tem a obrigação de aceitar o que está acontecendo. “São valores da cultura americana da não intromissão no espaço do outro. No Brasil, pais e mães tentam colocar os filhos, principalmente os bebês, nesse lugar narcísico: ‘como o outro não vai entender a ‘fofura’ do meu filho?’ Os casais brasileiros ainda recebem do entorno social uma reação de espanto ao se depararem com aqueles que não desejam filhos. Em contraposição, nos Estados Unidos, ter filhos gera no entorno uma outra atitude: ‘preciso tomar cuidado para ver se meu filho não vai incomodar o outro’”, pondera.
A professora da USP chama atenção, inclusive, para a mudança nos modelos de ‘ser família’. Isabel Cristina Gomes prefere o termo parentalidade – em substituição à maternidade e paternidade – para dar conta da pluralidade parental dos dias de hoje. “Mudou porque o papel da mulher na sociedade se transformou. A avó de hoje se coloca de forma diferente da avó do passado, não assume mais um papel de dona de casa que depois vai cuidar dos netos. Como resultado concreto, diminuem as possibilidades de a criança ser cuidada na família. Os modelos sociais mudam e não devemos ter a noção de que foi para pior. Mudou, mas a criança de hoje ganha em qualidade e presença do pai”, avalia.
Para ela, a identidade social da mulher ligada principalmente à maternidade como única identidade possível vem perdendo cada vez mais força apesar de ainda ser uma realidade em determinada estratificação social. “Antigamente, mulheres que não podiam ter filhos carregavam um peso enorme, mas agora, ser mãe passa a ser uma escolha”, reforça.
Desculpa, eu tenho filho
A psicanalista e psicopedagoga Cristina Silveira acredita que o casal se sentiu previamente constrangido pela pressão dos passageiros norte-americanos em relação ao comportamento esperado das crianças dentro dos voos, o que, para ela, parece estar se disseminando nas companhias aéreas por todo o mundo. “Em alguns voos internacionais as crianças de até 12 anos já foram banidas da primeira classe e as companhias reservaram locais nas aeronaves para aqueles adultos que querem silêncio e sossego”, afirma.
Para ela, tais atitudes em relação ao “isolamento” das crianças dentro dos voos, por exemplo, são apenas reflexos de uma cultura em que a infância não tem mais lugar. “As crianças não passam de um incômodo já que a opinião predominante é que elas deveriam se comportar, ficar quietas, em silêncio, sentadas e robotizadas, ou seja, adultizadas”, completa.
Cristina Silveira enxerga a desvalorização da infância. “Criança bonitinha é aquela que fica quieta em sala de aula ou em lugares públicos, é aquela que está “além do seu tempo”, é aquela que não dá trabalho. O mundo tem pressa e a criança demanda tempo. A infância exige paciência, empatia e o mais importante: exige tempo. Na atualidade, tempo é algo que não existe mais. A intolerância chegou à infância porque, no mundo moderno, criança não pode ser criança”, observa.
Cristina Silveira reforça que a criança normalmente é curiosa, alegre e criativa. “Ela está descobrindo um mundo de possibilidades em que seus sentidos são testados a cada nova descoberta. É um momento que deve ser protegido e respeitado por todos os adultos. O brincar de uma criança, seu sorriso, suas perguntas, seu tempo, merecem nosso acolhimento e essa mesma tolerância deve ser oferecida em um momento de medo, de dor ou de um incômodo porque o adulto é o referencial dessa criança. Se uma criança incomoda, algo não está certo”, defende a psicóloga.
Para ela, o comportamento inadequado é outra coisa. “Por falta de limites ou de outras necessidades não supridas, os pequenos podem ultrapassar o conceito do razoável. Nesse caso, a interferência a ser realizada deve ser no sentido de educá-los, de conduzi-los para o caminho certo e não de isolá-los ou julgá-los. Pedir desculpas por uma criança estar presente em um voo é o cúmulo da intolerância”, avalia Cristina.
A psicóloga diz que o episódio é um convite à reflexão. “Cada criança que encontramos nos remete ao nosso passado - à nossa infância e aos cuidados que recebemos ou não -, mas também ao nosso futuro: como vamos transformar isso dentro de nós? Respeitar uma criança é respeitar não só aquele bebê presente naquele lugar público, mas é mostrar respeito e acolhimento consigo mesmo. Praticar a tolerância e o entendimento da fragilidade da infância é conscientizar-se de que cada um de nós tem uma parcela de responsabilidade nesse processo, como educador e como modelo para essa nova geração. Isso é maturidade”, enfatiza.
Opinião de mãe, opinião de pai
Jacson Boeing se recorda de uma viagem em família, quando a filha caçula tinha 9 meses, em um voo com duração de três horas. Segundo ele, a garotinha chorava porque não queria ficar parada. “O que a gente pode fazer? Temos que lidar da melhor forma possível para manter o conforto e a segurança dos nossos filhos. Costumo pensar ‘essa situação estressante tem data e hora para acabar’. Também me preocupei em diminuir o desconforto para aqueles que dividiam a situação com a gente e tentei remediar da melhor forma possível”, relata.
A arquiteta Bebel Soares, 39 anos, é mãe de Felipe, de 5, e não considera a hipótese de colocar em prática a ideia do casal norte-americano. “Não tenho que ficar pedindo desculpas por ter um filho”, diz. Para ela, as famílias têm muito medo do julgamento de terceiros e evitam, inclusive, levar as crianças em lugares predominantemente frequentados por adultos com medo de elas incomodarem. Vai a um restaurante? Tem que ter um parquinho... E as criança não aprendem a transitar em certos lugares e como se comportar”, acredita a idealizadora do Padecendo no Paraíso, um grupo sobre maternidade que reúne mais de 6 mil mulheres.
A publicitária Flávia Pellegrini, 34 anos, é mãe de Cecília, 4 anos, e Olívia, de três meses. Ela diz que a princípio, o ‘kit desculpa’ “é uma atitude gentil e simpática, que consideramos fofa, mas se refletirmos sobre a situação que a criança vivenciará - uma viagem em um ambiente estranho, que irá lhe causar desconforto e o fato de ela ainda não saber como comunicar o que está sentindo - percebemos que representa um contexto não apenas da cultura americana, mas que encontramos aqui no Brasil, de que a criança não pode ser criança”.
Para ela, os pais estão preocupados com ‘aqueles olhares julgadores’ sobre a educação de seus filhos, mesmo quando se trata de um bebê. “Sabemos que as crianças não sabem comunicar sobre seus sentimentos na primeira infância e muitas vezes usam o choro como recurso, ou até mesmo a birra. Elas não deveriam ser condenadas por isto”, avalia.
Flávia acredita que a sociedade tem se tornado menos solidária e condescendente no geral. “Há uma pressão social para que nos comportemos de uma determinada maneira. Temos que ser pais perfeitos, com soluções para todos os problemas. No caso das crianças, percebo que há uma pressão social para que se comportem como ‘miniadultos’. Muitas vezes, impostas pelos próprios pais que se apegam a manuais publicados para evitar as famigeradas birras, para impor um modelo de comportamento. Os pais temem o julgamento de que não estão sendo bons pais, de que não estão dando uma educação exemplar aos filhos e quando a criança se comporta mal na visão de terceiros, esse temor vem à tona”, afirma.
Como idealizadora e mediadora de um blog na sobre o universo materno infantil, o Napracinha, Flávia diz que percebe que os pais se envergonham, por exemplo, da birra do filho. “Mas ao invés de se colocar no lugar da criança e avaliar o que ela está tentando dizer, buscam uma solução rápida, seja atendendo ao pedido do pequeno, seja indo embora, seja pedindo desculpas aos envolvidos”, pondera.
Para ela, especificamente na situação vivida por Jacson Boeing, um julgamento negativo representa uma insensibilidade sem tamanho. “Se nós, adultos, já sofremos, por exemplo, com dor de ouvido, dor de cabeça, sono durante o trajeto, imagine um bebê. Precisamos ser gentis com os outros e tentar nos colocar no lugar daqueles pais ou das próprias crianças”, acredita.
Crianças choram e têm pouca ou nenhuma noção de regras de etiqueta ou protocolos sociais. Elas correm, falam alto ou gritam, mexem, são curiosas e se intrometem. Características que são da essência da infância e não de mau comportamento. Se irritar por isso ou se mostrar hostil em uma situação em que adultos e crianças partilham o mesmo espaço não alteram esse comportamento, mas como foi dito pelas famílias entrevistadas, resultam em constrangimento para os pais. O fato é: nenhum bebê vai parar de chorar simplesmente porque é a vontade de um adulto. Então por que não mostrar-se solidário? Excluir as crianças do convívio social é uma opção? O que essa intolerância diz sobre nós enquanto humanidade? Deixe sua opinião.
O brincar de uma criança, suas perguntas, a curiosidade em descobrir o mundo e o tempo delas merecem nosso acolhimento?
Imagem do 'kit desculpa' recebido por Jacson Boeing em voo dentro dos Estados Unidos
Jacson fotografou o pacote, postou em seu perfil no Facebook e relatou: “O bebê dormiu como um anjo de Miami a Dallas”. A publicação recebeu 183 curtidas, foi compartilhada 27 vezes e a atitude dos pais norte-americanos foi admirada com unanimidade pela rede de amigos do editor do adrenaline.com. As palavras ‘sensacional’, ‘incrível’ e ‘fantástico’ apareceram mais de uma vez. Com a repercussão na mídia, no entanto, vozes dissonantes surgiram e a história rendeu polêmica em fóruns de maternidade e paternidade, sites especializados e nas redes sociais.
Se a forma de comunicação de um bebê é o choro, os pais estariam pedindo desculpas pelo fato de aquela criança de 8 meses ser um bebê, por ela existir ou por terem escolhido ter filhos? “Entendo os dois lados, é natural que as crianças chorem em viagens de avião por se sentirem desconfortáveis, por dor de ouvido ou outro motivo. Mas achei simpático aquele casal ‘quebrar o gelo’ e criar uma situação que desarmou os passageiros. Não acho que essa atitude seja necessária, mas acho válida. Pessoas que viajam a trabalho estão sempre muito cansadas e tudo que elas querem é sentar no avião e descansar. As pessoas que, por algum motivo, tinham alguma ressalva pela companhia do bebê no avião, que estariam de cara feia, acabaram vendo o gesto como um sinal de trégua”, analisa Jacson Boeing.
O brasileiro estava sentado no corredor ao lado dos assentos do casal. “Foram os próprios pais que entregaram. O pai da menininha me deu seis pacotinhos e pediu para que eu passasse para os demais. Todos aqueles que estavam na proximidade receberam o kit. Foram distribuídas entre 30 e 40 unidades. Como estava muito perto deles, vi que um passageiro elogiou a atitude e eles contaram que era a primeira vez que viajavam de avião com a criança. Pela reação das pessoas, fiquei com a sensação de que não era a primeira vez que viviam aquela situação. Deve ser um hábito frequente por lá”, supõe Jacson.
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Jacson Boeing, 37 anos: "Entendo os dois lados, é natural que as crianças chorem em viagens de avião por se sentirem desconfortáveis, por dor de ouvido ou outro motivo. Mas achei simpático aquele casal 'quebrar o gelo' "
A professora da USP chama atenção, inclusive, para a mudança nos modelos de ‘ser família’. Isabel Cristina Gomes prefere o termo parentalidade – em substituição à maternidade e paternidade – para dar conta da pluralidade parental dos dias de hoje. “Mudou porque o papel da mulher na sociedade se transformou. A avó de hoje se coloca de forma diferente da avó do passado, não assume mais um papel de dona de casa que depois vai cuidar dos netos. Como resultado concreto, diminuem as possibilidades de a criança ser cuidada na família. Os modelos sociais mudam e não devemos ter a noção de que foi para pior. Mudou, mas a criança de hoje ganha em qualidade e presença do pai”, avalia.
Para ela, a identidade social da mulher ligada principalmente à maternidade como única identidade possível vem perdendo cada vez mais força apesar de ainda ser uma realidade em determinada estratificação social. “Antigamente, mulheres que não podiam ter filhos carregavam um peso enorme, mas agora, ser mãe passa a ser uma escolha”, reforça.
Desculpa, eu tenho filho
A psicanalista e psicopedagoga Cristina Silveira acredita que o casal se sentiu previamente constrangido pela pressão dos passageiros norte-americanos em relação ao comportamento esperado das crianças dentro dos voos, o que, para ela, parece estar se disseminando nas companhias aéreas por todo o mundo. “Em alguns voos internacionais as crianças de até 12 anos já foram banidas da primeira classe e as companhias reservaram locais nas aeronaves para aqueles adultos que querem silêncio e sossego”, afirma.
Bebel Soares, 39 anos: "Não tenho que ficar pedindo desculpas por ter um filho"
Cristina Silveira enxerga a desvalorização da infância. “Criança bonitinha é aquela que fica quieta em sala de aula ou em lugares públicos, é aquela que está “além do seu tempo”, é aquela que não dá trabalho. O mundo tem pressa e a criança demanda tempo. A infância exige paciência, empatia e o mais importante: exige tempo. Na atualidade, tempo é algo que não existe mais. A intolerância chegou à infância porque, no mundo moderno, criança não pode ser criança”, observa.
Cristina Silveira reforça que a criança normalmente é curiosa, alegre e criativa. “Ela está descobrindo um mundo de possibilidades em que seus sentidos são testados a cada nova descoberta. É um momento que deve ser protegido e respeitado por todos os adultos. O brincar de uma criança, seu sorriso, suas perguntas, seu tempo, merecem nosso acolhimento e essa mesma tolerância deve ser oferecida em um momento de medo, de dor ou de um incômodo porque o adulto é o referencial dessa criança. Se uma criança incomoda, algo não está certo”, defende a psicóloga.
Para ela, o comportamento inadequado é outra coisa. “Por falta de limites ou de outras necessidades não supridas, os pequenos podem ultrapassar o conceito do razoável. Nesse caso, a interferência a ser realizada deve ser no sentido de educá-los, de conduzi-los para o caminho certo e não de isolá-los ou julgá-los. Pedir desculpas por uma criança estar presente em um voo é o cúmulo da intolerância”, avalia Cristina.
A psicóloga diz que o episódio é um convite à reflexão. “Cada criança que encontramos nos remete ao nosso passado - à nossa infância e aos cuidados que recebemos ou não -, mas também ao nosso futuro: como vamos transformar isso dentro de nós? Respeitar uma criança é respeitar não só aquele bebê presente naquele lugar público, mas é mostrar respeito e acolhimento consigo mesmo. Praticar a tolerância e o entendimento da fragilidade da infância é conscientizar-se de que cada um de nós tem uma parcela de responsabilidade nesse processo, como educador e como modelo para essa nova geração. Isso é maturidade”, enfatiza.
Opinião de mãe, opinião de pai
Jacson Boeing se recorda de uma viagem em família, quando a filha caçula tinha 9 meses, em um voo com duração de três horas. Segundo ele, a garotinha chorava porque não queria ficar parada. “O que a gente pode fazer? Temos que lidar da melhor forma possível para manter o conforto e a segurança dos nossos filhos. Costumo pensar ‘essa situação estressante tem data e hora para acabar’. Também me preocupei em diminuir o desconforto para aqueles que dividiam a situação com a gente e tentei remediar da melhor forma possível”, relata.
Flávia Pelegrini, 34 anos: "Sabemos que as crianças não sabem comunicar sobre seus sentimentos na primeira infância e muitas vezes usam o choro como recurso, ou até mesmo a birra. Elas não deveriam ser condenadas por isto"
A arquiteta Bebel Soares, 39 anos, é mãe de Felipe, de 5, e não considera a hipótese de colocar em prática a ideia do casal norte-americano. “Não tenho que ficar pedindo desculpas por ter um filho”, diz. Para ela, as famílias têm muito medo do julgamento de terceiros e evitam, inclusive, levar as crianças em lugares predominantemente frequentados por adultos com medo de elas incomodarem. Vai a um restaurante? Tem que ter um parquinho... E as criança não aprendem a transitar em certos lugares e como se comportar”, acredita a idealizadora do Padecendo no Paraíso, um grupo sobre maternidade que reúne mais de 6 mil mulheres.
"A intolerância chegou à infância porque, no mundo moderno, criança não pode ser criança" - Cristina Silveira
Para ela, os pais estão preocupados com ‘aqueles olhares julgadores’ sobre a educação de seus filhos, mesmo quando se trata de um bebê. “Sabemos que as crianças não sabem comunicar sobre seus sentimentos na primeira infância e muitas vezes usam o choro como recurso, ou até mesmo a birra. Elas não deveriam ser condenadas por isto”, avalia.
Flávia acredita que a sociedade tem se tornado menos solidária e condescendente no geral. “Há uma pressão social para que nos comportemos de uma determinada maneira. Temos que ser pais perfeitos, com soluções para todos os problemas. No caso das crianças, percebo que há uma pressão social para que se comportem como ‘miniadultos’. Muitas vezes, impostas pelos próprios pais que se apegam a manuais publicados para evitar as famigeradas birras, para impor um modelo de comportamento. Os pais temem o julgamento de que não estão sendo bons pais, de que não estão dando uma educação exemplar aos filhos e quando a criança se comporta mal na visão de terceiros, esse temor vem à tona”, afirma.
Como idealizadora e mediadora de um blog na sobre o universo materno infantil, o Napracinha, Flávia diz que percebe que os pais se envergonham, por exemplo, da birra do filho. “Mas ao invés de se colocar no lugar da criança e avaliar o que ela está tentando dizer, buscam uma solução rápida, seja atendendo ao pedido do pequeno, seja indo embora, seja pedindo desculpas aos envolvidos”, pondera.
Para ela, especificamente na situação vivida por Jacson Boeing, um julgamento negativo representa uma insensibilidade sem tamanho. “Se nós, adultos, já sofremos, por exemplo, com dor de ouvido, dor de cabeça, sono durante o trajeto, imagine um bebê. Precisamos ser gentis com os outros e tentar nos colocar no lugar daqueles pais ou das próprias crianças”, acredita.
Crianças choram e têm pouca ou nenhuma noção de regras de etiqueta ou protocolos sociais. Elas correm, falam alto ou gritam, mexem, são curiosas e se intrometem. Características que são da essência da infância e não de mau comportamento. Se irritar por isso ou se mostrar hostil em uma situação em que adultos e crianças partilham o mesmo espaço não alteram esse comportamento, mas como foi dito pelas famílias entrevistadas, resultam em constrangimento para os pais. O fato é: nenhum bebê vai parar de chorar simplesmente porque é a vontade de um adulto. Então por que não mostrar-se solidário? Excluir as crianças do convívio social é uma opção? O que essa intolerância diz sobre nós enquanto humanidade? Deixe sua opinião.