Depressão na gravidez: do tabu ao tratamento

Estudo da UFMG mostra que 17% das mulheres têm depressão na gestação. Ideia da grávida plena e feliz desencadeia preconceito aos sintomas da doença e dificulta diagnóstico

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Valéria Mendes - Saúde Plena Publicação:10/06/2015 09:00Atualização:09/08/2016 16:50
Depressão na gravidez pode ser tratada com terapia e uso de medicação tem se mostrado seguro (ILUSTRAÇÃO: Soraia Piva) (Soraia Piva / EM / D.A Press)
Depressão na gravidez pode ser tratada com terapia e uso de medicação tem se mostrado seguro (ILUSTRAÇÃO: Soraia Piva)


“As pessoas me olhavam com jeito de que eu deveria estar feliz por estar grávida, mas eu passava a maior parte do meu tempo chorando. A dificuldade em se aceitar a depressão vem de um tabu, do equívoco de as pessoas pensarem que se trata de um estado de espírito. Eu mesma tive dificuldade em aceitar a doença. A médica que acompanhou meu pré-natal não percebeu, trabalhava em uma UTI neonatal, sempre estive cercada de médicos, ninguém nunca mencionou a possibilidade de depressão na gravidez, nenhum dos meus atestados de afastamento durante a gestação consta depressão como justificativa”. O depoimento da técnica de enfermagem Daniele Azevedo, de 24 anos, mãe de Laura, 1 ano e 7 meses, ilustra bem o desconhecimento da depressão que afeta as grávidas. No entanto, pesquisa desenvolvida pelo Departamento de Saúde Mental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que acompanhou 247 gestantes mostra que 17,34% delas sofrem com a doença. Dados internacionais apontam que 80% das mulheres ao redor do mundo que desenvolvem a depressão não são diagnosticadas durante os 9 meses de gestação e, por isso, não recebem o tratamento adequado.

Por si só, a depressão não é muito bem aceita socialmente como doença e é percebida muito mais como um aspecto da vida humana. No caso das mulheres grávidas, não se sentir plena e completamente feliz de carregar no ventre uma nova vida é motivo, inclusive, de culpa e muito julgamento. A idealização da maternidade dificulta não apenas que as mulheres procurem ajuda, mas também que recebam tratamento. Para agravar ainda mais a situação, muito se fala em depressão pós-parto, mas a depressão na gravidez ainda é pouco conhecida. Psiquiatra e doutorando pelo programa de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da UFMG, Tiago Castro vai abordar o tema de sua pesquisa no XVII Congresso Mineiro de Psiquiatria, que acontece entre 11 e 13 de junho, na sede da Associação Médica de Minas Gerais.

Daniele Azevedo só iniciou o tratamento contra a depressão quando chegou ao seu limite, quatro meses após o nascimento de Laura, mesmo apresentando os sintomas desde o início da gestação. “Vomitei do dia que eu descobri que estava grávida até o dia em que minha filha nasceu. Eu estava sempre muito cansada, não tinha fundamento para me sentir assim. Passei a gravidez inteira deitada, desatenta, sem foco, sentindo um enorme vazio”, relata.

“Se não existe desconfiança, não se procura”. A afirmação do psiquiatra Tiago Castro que liderou o estudo da UFMG intitulado ‘What is the best tool for screening antenatal depression?’ ajuda a entender a razão da dificuldade em se diagnosticar a depressão na gravidez. Para ele, falta ao profissional de saúde que presta o atendimento no pré-natal pensar nessa possibilidade. “Estudos internacionais demonstram que o marido da gestante deprimida pode também desenvolver depressão. Estando ambos com os sintomas, nenhum dos dois vai perceber a doença”, pontua.

O especialista cita como sintomas da depressão na gravidez o humor irritado ou triste, alterações do sono ou do apetite para mais ou para menos, sentimento de culpa, de menos valia, de ter decepcionado alguém ou de estar sendo punida, dificuldade para se concentrar e tomar decisões. “Quando é um caso mais grave de depressão, pensamento de morte”, reforça. O especialista reforça que a depressão é a principal causa de suicídio.

Sentimento de culpa
Daniele e o pai de Laura não planejavam engravidar. “Sou evangélica e na minha igreja ainda é tabu a gravidez antes do casamento. Fiquei com muito medo e só contei para minha família quando já estava com a data do casamento marcada, foi tudo organizado às pressas e meus pais tiveram certa dificuldade em aceitar. Acho que tudo isso contribuiu para a depressão”, conta.

Na gestação, a técnica em enfermagem foi diagnosticada com hipotensão postural, que a impedia de ficar em pé por muito tempo e a afastou de suas funções profissionais. “Como trabalhava em uma UTI neonatal, tinha muito medo de minha filha nascer prematura. Ela veio ao mundo com 39 semanas e 4 dias de um parto normal induzido; minha bolsa estourou, mas eu não tinha contração. Mesmo sem ser prematura, a Laura ficou seis dias internada em uma UTI e eu fiquei em pânico completo no hospital”, conta.

Como se não bastasse a depressão na gravidez, Daniela teve depressão pós-parto. “Ao longo de minha trajetória como profissional de saúde lidei com muitas mães em depressão pós-parto, mas não consegui perceber a doença se manifestando em mim, não conseguia ver o quadro depressivo, achava que o que sentia era normal, consequência dos hormônios da gravidez e do parto”, afirma.

Foi uma amiga que percebeu que Daniele estava ficando cada vez pior e a levou a um psiquiatra. “Meu marido não aceitou o diagnóstico e passei por todo o tratamento sem ele acreditar na depressão, meu médico conversou com ele algumas vezes para explicar que não era frescura”, revela.

A técnica em enfermagem afirma que a depressão a transformou em uma mãe superprotetiva e ela conta que não deixava que a filha saísse de perto dela. “Aos poucos, o tratamento foi ajudando e eu conseguia, por exemplo, abrir a janela para ver a beleza do dia”, narra.

Para ela, que passou a gestação inteira deitada em uma cama achando que a vida não tinha o menor sentido, o tratamento vale a pena independentemente do julgamento. “O tratamento é isso: retomar o curso da vida. Na depressão, a gente dá uma desviada”, sintetiza.

Risco aumentado
Os fatores de risco para a depressão na gravidez, segundo o psiquiatra Tiago Castro, podem apresentar variações de acordo com o estudo e a cultura, mas ele cita os que aparecem frequentemente nas pesquisas científicas: episódio de depressão antes da gravidez, histórico na família de depressão, história de agressão, violência doméstica física ou psicológica, falta de apoio no pré-natal e as mulheres mais pobres têm um risco maior de desenvolver a doença. Além desses, existem ainda fatores genéticos e muito possivelmente imunológicos, que podem predispor ou favorecer essas grávidas a ficarem deprimidas. “No estudo desenvolvido na UFMG constatamos também como fator de risco mulheres com história de aborto, espontâneo ou não, e aquelas que já tinham filhos”, cita.

Medicação na gravidez
O termo em inglês antenatal depression – traduzido para o português como depressão na gravidez - ainda não consta no Manual de Estáticas de Diagnósticos (DSM) da Associação de Psiquiatria Americana, já que não se tem certeza de que existiria uma particularidade dessa condição ou se a depressão que ocorre fora da gestação tem as mesmas características da depressão na gravidez. O psiquiatra Tiago Castro afirma, no entanto, que a depressão durante a gestação aumenta o risco de a mulher ter depressão pós-parto.

Caso da farmacêutica Maria José Barbosa Duarte, 45 anos, mãe de Gabriel, 6 anos, e dos gêmeos Lucca e Marina, de 1 ano e cinco meses. Ela foi diagnosticada com depressão nas duas gestações e, além de fazer o acompanhamento terapêutico, precisou de medicação. No caso dela, o diagnóstico foi certeiro em razão de, anteriormente, ela já ter tido episódio da doença.

Mesmo assim, no caso da gestação de Gabriel, não foi imediato. “A gravidez foi passando e comecei a sentir uma grande tristeza, um vazio, uma vontade de chorar... Eu achava que era hormonal, que as grávidas ficam mais sensíveis mesmo, mas como já tinha tido depressão, fiquei desconfiada”, conta.

Maria José se assustou com o diagnóstico que recebeu do psiquiatra, já que sabia da restrição das gestantes a medicamentos em geral. “Eu pensei que passaria os nove meses daquele jeito, mas quando o médico avisou que teria que ser medicada fiquei com medo de o neném nascer com problema. Conversei com meu ginecologista que deixou a decisão nas mãos do psiquiatra. No terceiro mês, iniciei o remédio”, diz.

Tiago Castro afirma que os benefícios do tratamento com medicação para a depressão na gravidez superam os riscos: “Já se sabe que uma depressão não tratada pode levar às alterações na criança de neurocircuitos cerebrais, neurotransmissores e, às vezes, alterações genéticas”. No caso de depressões leves, a literatura médica tem mostrado que os resultados do tratamento terapêutico ou do tratamento com medicamento se equiparam em termos de eficácia. “As mulheres precisam procurar ajuda e receber tratamento para não causarem prejuízos a si próprias e ao bebê”, reforça. Segundo o especialista, a medicação também não impede o aleitamento materno.

No quarto mês de vida de Gabriel, a farmacêutica sentiu os sintomas da depressão pós-parto e foi preciso aumentar a dose dos remédios. “A maternidade assusta, ficamos mais fragilizadas”, observa. Mesmo medicada, o garotinho foi amamentado até 1 ano de vida.

A história da gestação dos gêmeos foi muito semelhante à do primogênito. “Um mês depois da confirmação da gravidez do Lucca e Marina, passei a tomar medicação. Foi uma gestação muito tranquila, eles nasceram de 37 semanas, mas não precisaram sequer de UTI. Quando eles completaram um ano comecei a diminui a dose até retirá-la por completo”. Os caçulas também foram amamentados durante um ano e, nos seis primeiros meses de vida, com alimentação exclusiva de leite materno. Para Maria José, o tratamento possibilitou a ela ser uma mãe presente, paciente e melhor.

Medo da morte
“O momento mais feliz da minha vida foi quando eu me descobri grávida. Veio como uma surpresa e eu andava nas nuvens”, conta a mestranda em negócios e políticas internacionais, Ana Paula Holtz, 33 anos, que mora na Dinamarca e teve sua filha Laura, 3, no país europeu. No entanto, a cabeça nas nuvens pela realização de um sonho foi sendo minada pelos sintomas da gestação. “Minha gravidez não foi nada do que eu tinha imaginado. Eu comecei a enjoar lá pela sétima semana e esses enjoos persistiram até o quarto mês. Eu também tive infecção urinária praticamente a gravidez toda, azia, falta de ar e dores horríveis nas pernas. Eu passei a mancar no início do segundo trimestre e manquei até o final”, narra.

A mãe de Laura conta que idealizava uma gravidez saudável e ativa em que ela pudesse correr, andar de bicicleta e comer bem. “Nada disso se concretizou. Eu me preocupava demais com as infecções urinárias reincidentes, eu sentia muitas dores e desconforto, me cansava demais e, para piorar, eu não conseguia dormir direito, só dormia quando chegava em estado de exaustão. Por outro lado, tudo correu bem. A Laurinha crescia ótima, saudável, eu não tive pressão alta, nem diabetes gestacional, mas ganhei muito peso”, diz.

A barriga crescia e Ana Paula passou a sentir “muito medo”. “A primeira vez que notei meu medo foi pouco antes do ultrassom morfológico (exame que é realizado para rastrear síndromes, malformações e doenças congênitas). Eu fiquei muito tensa com receio de a Laura ter algum problema e parei de falar no bebê. Meu marido percebeu que eu evitava o assunto e eu me abri com ele contando o motivo”, recorda-se.

Mesmo com o resultado positivo do exame, a sensação de insegurança permaneceu. “Eu brinco que existe um esporte internacional de assustar mulheres grávidas e isso me atrapalhou demais. Parece que todo mundo adora falar desgraça perto de uma gestante”, diz. Próximo ao sexto mês, Ana Paula passou três noites chorando de tristeza. Segundo ela, por que pensava que iria morrer no parto e a filha cresceria órfã. “Meu marido tentava me ajudar e ele telefonou para o serviço de emergência para buscar orientação. Mas quem acha anormal uma grávida chorar por motivo bobo?”, alerta.

Curiosamente, Ana Paula lia muito sobre depressão pós-parto pelo receio de que acontecesse com ela. “Coloquei meu marido para se informar também. Estávamos tão preocupados com a possibilidade da depressão pós-parto que nem ao menos notamos que eu provavelmente já estava com depressão”, pontua.

O resultado do desconhecimento da doença não apenas pela população em geral, mas também pelos profissionais de saúde, resultou em uma gravidez em que a sensação de medo foi a que mais predominou. “Medo de morrer. Medo de não ser boa mãe. Medo da minha filha não ter saúde”, desabafa.

A angústia de Ana Paula não era notada também pelos amigos, conhecidos e familiares já que ela era do tipo que andava com ultrassom na bolsa e mostrava a todos as imagens de Laura dentro da barriga. Só depois do nascimento da garotinha que a depressão na gravidez foi cogitada. “Na Dinamarca, depois que um bebê nasce, a prefeitura envia uma enfermeira para fazer visitas regulares em casa. Essa enfermeira verifica a saúde do bebê e da mãe. Na primeira visita, ela ficou por aqui por duas horas e pediu para que eu contasse tudo sobre a gravidez, fui detalhista e ela então cogitou que provavelmente eu tive depressão”, lembra.

Hoje, a maternidade é um prazer para Ana Paula: “O tempo me mostrou como eu cuido bem da minha filha e o quanto nós conseguimos fazê-la feliz. Tenho certeza que ela se tornará uma adulta fantástica”, resume.

XVII Congresso Mineiro de Psiquiatria
Data: 11 a 13 de junho
Local: Associação Médica de Minas Gerais
Inscrições: http://www.psiquiatria2015.com.br/inscricoes.php
Mais informações: http://www.psiquiatria2015.com.br/index.php

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